Podando a desinformação, ou Por que a Cannabis precisa da divulgação científica no Brasil de hoje?

Publicado por portadesaida em

Podando a desinformação, ou Por que a Cannabis precisa da divulgação científica no Brasil de hoje?

por Bruno S. Moraes

Com um amplo leque de discursos sobre a planta, sejam estes contrários ou favoráveis a sua legalização e uso medicinal ou recreacional por adultos, gerar conteúdo sobre divulgação científica da cannabis é um desafio necessário para melhor informar a população.

Cannabis medicinal foto criada por jcomp – br.freepik.com

É pouco provável que exista uma planta tão controversa no mundo de hoje quanto a espécie Cannabis sativa. Conhecida popularmente no Brasil por uma infinidade de nomes com origens etimológicas diversas, como maconha, liamba, diamba, pito de pango, brenfa ou ganja, a planta — que é classificada filogeneticamente como pertencendo à mesma espécie do cânhamo — acumula também uma segunda infinidade culturalmente derivada: os inúmeros e, muitas vezes, enganosos discursos a seu respeito.

Neste texto, vamos apresentar um pouco de cada uma das pontas extremas deste amplo gradiente, entre a total estigmatização e o discurso de destruição da família e sociedade que acompanharam a “guerra às drogas” e a tendência igualmente irresponsável de pintar a Cannabis como uma panaceia para a saúde, um hábito completamente inofensivo ou uma solução para todos os problemas contemporâneos enfrentados pela sociedade humana.

Este buffet de informações erradas e mal embasadas é o que mais se encontra circulando nas redes sociais — e fora delas, como na sessão de votação do PL 399/2015 na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Nosso argumento é o de que uma das melhores formas de evitar a indigesta confusão que se segue é uma dieta a base de divulgação científica, jornalismo bem-feito e informação transparente e checada com comprometimento.

O Século XX e a proibição

Reprodução de reportagem “Maconha, a Planta do Diabo”, da Revista O Cruzeiro (22/02/1947), . A tarja para preservar a dignidade da pessoa destacada na reportagem foi adicionada pelo Porta de Saída.

O recorte jornalístico acima não é uma ocorrência isolada, nem no contexto brasileiro e nem no global. Quando organizações, pesquisadores, ativistas e profissionais das mais diversas áreas se referem à política global de perseguição à cânabis e às drogas reforçada na virada do Séc. XIX para o Séc XX como uma campanha de demonização, o uso do termo não é um exagero. É essencialmente indissociável da campanha pela proibição do comércio, posse e uso da planta a noção de que ela estava relacionada à degeneração moral. A relação também se dava na tríade do uso da planta, dessa suposta “degeneração” e das práticas culturais de povos estigmatizados pelo racismo europeu, que motivou a invasão das Américas e a escravização de povos na África: nos Estados Unidos, a perseguição foi a pessoas negras e de origem latina; e, aqui no Brasil, à população negra, especialmente a praticante de religiões afrobrasileiras. Este mesmo cenário contribuiu também para uma dificuldade em pesquisar a planta, ou mesmo conversar sobre ela — mesmo na Academia.

Para uma discussão mais detalhada, inclusive focada no uso de justificativas consideradas científicas para políticas e argumentações racistas em favor da proibição no Brasil, indicamos o excelente artigo dos pesquisadores da UFPR Aknaton Toczek Souza e Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (em caso de servidor fora do ar, tente fazer o download pelo Internet Archive). Ao nosso texto, basta esta reflexão dos motivos por trás desta proibição, muitos dos quais são repaginados nos dias atuais, mantendo o moralismo e a noção de que a proibição estaria protegendo as famílias brasileiras de uma suposta degeneração. Este tipo de discurso foi, por exemplo, comumente utilizado durante a votação do PL 399/2015 como justificativa para votar contra o Projeto de Lei.

Adicionalmente à pauta moral, as preocupações com a saúde coletiva e individual são parte fundamental do discurso contrário ao uso terapêutico ou adulto da cânabis e seus derivados. Também aqui aparece muitas vezes a encruzilhada entre o que é considerado científico em uma época e posteriormente constatado como distorção ou propaganda. Três exemplos importantes merecem destaque nesta discussão sobre saúde: a afirmação de que a cânabis mataria neurônios, a de que seu uso pode causar esquizofrenia ou outros quadros psicóticos e a chamada “teoria da porta de entrada”, que afirma que o principal risco do uso da planta estaria no fato de ela “empurrar” quem a utiliza para o uso de drogas mais perigosas como a cocaína e os opióides.

O Porta de Saída Podcast discute em maior profundidade alguns destes mitos na sua segunda temporada. Por hora, o resumo é o de que as duas últimas afirmativas não têm grandes evidências no mundo real, com dados de pesquisas recentes e amplas sugerindo que a planta não está relacionada nem à progressão para drogas mais pesadas e nem como único fator na ocorrência de episódios psicóticos em pacientes em risco. Em ambos os casos, a controvérsia é complicada ainda mais por pesquisas que demonstram o contrário: o uso da planta foi associado a menores probabilidades de uso diário de drogas injetáveis e à recuperação de pacientes com dependência de crack. E o uso de plantas com alta concentração do canabinoide canabidiol (CBD) e seus derivados aparece cada vez mais como uma alternativa terapêutica para reduzir a incidência de surtos em pacientes com esquizofrenia.

Mais uma reprodução da Revista O Cruzeiro, da reportagem “Três Chagas Sociais”. Destaque para a associação do uso da cânabis à degeneração do indivíduo, e sua causa no “desajustamento social”, ambos discursos de estigmatização da condição social da pobreza. Outro destaque importante é a legenda “Os Cigarros da Loucura”

Já a primeira afirmação, a de que a cânabis causaria dano e morte neuronal, é um potente exemplo do mau uso da autoridade científica para corroborar ideologias: a origem deste mito se deu pelos resultados do pesquisador Robert Galbraith Heath, da Universidade de Tulane, que descreveu a morte de neurônios em macacos Rhesus que teoricamente haviam consumido 30 cigarros de Cannabis por dia em um período de 90 dias. Mesmo levando em conta que este número em si já seria alto demais para ser considerado um parâmetro realista de comparação com o uso recreacional praticado pela maioria das pessoas que o fazem, a análise posterior dos cadernos do pesquisador revelou um cenário ainda menos realista: os animais haviam sido expostos à fumaça de 63 cigarros de cânabis em um período de apenas cinco minutos, com o uso de máscaras de gás, que os impediam de respirar oxigênio. A conclusão é a de que a morte neuronal estava associada não à Cannabis, e sim à fumaça rica em monóxido e dióxido de carbono.

Um exemplo do quanto discursos como estes ainda pautam a atuação de organizações pela erradicação das drogas pode ser visto nos materiais da Fundação Internacional para um Mundo Sem Drogas, o que é preocupante ao se levar em conta o papel de organizações como essa na educação de agentes de segurança e de grupos diversos da sociedade civil.

Mas, se por um lado, a desinformação para “demonizar” a cânabis pode ser um problema, o movimento em favor de sua liberação e o discurso em torno de seus benefícios medicinais também não estão livres de sua dose de manipulação da verdade…

Existe mentirinha do bem?

NÃO É VERDADE ESSE BILETE! Imagem ‘fake’ que circulou em redes sociais, associando o uso da Cannabis sativa a uma suposta proteção ao novo coronavírus. Este é apenas um dos exemplos mais recentes de disseminação de notícias falsas “pró-cânabis”

Que os malefícios da cânabis foram artificialmente exagerados no discurso público, e seus benefícios escondidos, não há dúvida. Afinal, a planta tem uma história de mais de 11 mil anos junto à humanidade, tendo sido utilizada para redução de dores, prevenção de crises epilépticas e asma desde pelo menos 2.500 anos atrás. Um pouco antes da proibição, na virada do Séc. XIX para o XX, farmacopeias ocidentais já começavam a incluir a Cannabis como uma indicação terapêutica. Mas a proibição atrasou em quase um século as pesquisas que poderiam entender melhor e com métodos mais modernos os seus benefícios reais.

Graças a essa proibição, a própria descoberta do Sistema Endocanabinoide — um sistema de moléculas que estão presentes no organismo da maioria dos animais vertebrados e regula uma série de funções no organismo — só se deu na década de 1990. Nós temos um episódio na nossa primeira temporada que conta um pouco mais sobre este sistema e sua descoberta.

O fato de as pesquisas sobre a atuação da cânabis serem tão recentes e estarem ocorrendo de forma acelerada, em resposta à sua liberação em alguns países e ao estabelecimento de uma poderosa indústria de produtos baseados na planta, abre as portas para o exagero de suas potencialidades terapêuticas.

A cânabis está sendo testada para muitas condições de saúde, em estudos dos mais variados desenhos experimentais. O que muitas vezes acontece neste campo é similar à forma com a qual outras pesquisas em saúde entram no debate público: o exagero de dados em fase inicial, a extrapolação de resultados obtidos em animais ou culturas de célula para possíveis aplicações em seres humanos, e a não-distinção entre estudos de metodologia pouco robusta e aqueles conduzidos com maior rigor e obtendo resultados de maior confiabilidade. Reforçamos que isto não é uma particularidade dos estudos com a Cannabis. Afinal, quantas curas do câncer você já viu sendo reportadas por aí?

Mesmo para condições de saúde com maior número de estudos em favor da Cannabis como uma opção terapêutica, a falta de nuance ao apresentar os resultados ao público em geral — seja por veículos jornalísticos ou por páginas de redes sociais com foco no assunto — podem gerar a falsa impressão de que não há controvérsias sobre a eficácia desse tratamento, e que ele funcionará para todas as pessoas que sofrem daquela condição. Adicionalmente, a falta de padronização nos estudos e a ampla variedade de cultivares da planta dificultam respostas mais diretas, mesmo para estas condições para as quais há um maior número de evidência como a dor crônica. Entender estas limitações e apresentá-las ao público não é um detrimento à Cannabis como terapia, e sim uma questão ética de tratar a informação com responsabilidade.

A que viemos?

Nosso projeto, seja no podcast ou no blog, é orientado pelo princípio ético citado acima, e pelo modo de lidar com a informação da divulgação científica. Isso significa ir atrás e interpretar literatura acadêmica sobre o assunto e, principalmente, conversar com especialistas sempre que possível: afinal de contas, quem melhor tem bagagem para interpretar uma nova informação ou comentar um dado consenso é quem trabalha diretamente com aquele assunto.

Para os dois extremos de desinformação sobre a maconha, acreditamos que o melhor antídoto é a divulgação científica bem feita, a checagem de fatos e o estímulo ao pensamento cético por parte da população em geral. Há muitos assuntos para tratar, e descobertas a serem realizadas pela ciência canábica em expansão. E, para cada nova descoberta, podemos esperar também uma pá de mentiras. Continuaremos podando ambas as coisas, e esperamos que você venha conosco!

Referências:

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Souza, A. T. ; Moraes, P. R. B. . O Evolucionismo na proibição da Maconha. Geographia Opportuno Tempore , v. 4, p. 133-148, 2018. http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/Geographia/article/viewFile/32550/23631 (em caso de servidor fora do ar, tente fazer o download pelo Internet Archive: https://web.archive.org/web/20191010011051/http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/Geographia/article/download/32550/23631)

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https://congressoemfoco.uol.com.br/temas/economia/deputados-apostam-no-combate-a-fake-news-para-liberar-remedios-de-cannabis/


portadesaida

Conteúdo de divulgação científica focado no uso terapêutico da Cannabis sativa.

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