É Cannabis ou maconha? Parte 1 – o apagamento cultural por trás da escolha de linguagem

Publicado por portadesaida em

É maconha ou Cannabis? (parte 1) - o apagamento cultural por trás da escolha de linguagem

por Giovanna C. Romaro

Tempo de leitura: 12 min.

Canábis, maconha, cânhamo, liamba, erva de Santa Maria, bangue, ganja – os nomes são muitos, mas de onde eles vêm? Todos esses nomes designam a mesma planta ou há diferença?

folha verde de sete pontas, sobre um prato de madeira e, abaixo da folha, há quadrados de madeira com letras combinadas formando a palavra Cannabis.
Fotografia da folha de cânabis sobre um prato de madeira. Abaixo da folha, temos a palavra Cannabis escrita com peças de madeira comuns no jogo de tabuleiro Scrabble.

O que vem à sua cabeça quando alguém fala a palavra “maconha”? E quando alguém fala a palavra “cannabis”? Se, enquanto pensou nessa pergunta, as imagens para as duas palavras foram diferentes, talvez seja a hora de você descobrir de onde vem essa diferença. 

Não podemos negar que cada palavra tem sido aplicada para significar coisas diferentes quando lemos jornais e revistas ou assistimos a um noticiário, principalmente nos últimos anos. Enquanto o termo “Cannabis” vem sempre acompanhado da discussão sobre seu uso medicinal e o termo “cânhamo”, sobre seu uso industrial: nem sempre podemos lembrar da palavra “maconha” nestes contextos, já que ela é muito mais utilizada quando o assunto envolve tráfico, crime organizado e violência. 

Certa vez, encontramos um vídeo de uma aula de graduação que explicava que a maconha era um “preparado” de folhas, flores, galhos e raízes da planta conhecida como Cannabis, utilizado enquanto substância psicoativa. Embora não tenhamos encontrado nenhuma referência que justifique esta explicação, há alguns indícios quando analisamos seus significados nos verbetes. Essas escolhas linguísticas têm algo muito mais profundo, quando analisamos a história e a origem dessas palavras…

Da história ao nome

Cannabis sativa L. é o nome científico cunhado, no século XIII, pelo botânico Lineu a essa planta, que pertence ao gênero Cannabis, família Cannabaceae (a mesma família do lúpulo). Sua fama se dá por diversas razões, sendo três grandes motivações para que seu cultivo tenha acompanhado a Humanidade por mais de dez mil anos: produções industriais com suas fibras, potencialidades terapêuticas e seu uso para diversão. 

No primeiro episódio do Porta de Saída Podcast, contamos mais sobre a relação da humanidade com a Cannabis sativa ao longo da história, entrevistando o historiador Henrique Carneiro.

Há diferentes palavras que denominam esta planta e cada termo possui diferentes origens.

Pesquisas recentes indicam que a origem mais antiga dos cultivares da Cannabis sativa pela Humanidade datam de 10.000 a.C, sendo bastante aceita a hipótese desta agricultura ter sido desenvolvida na China antiga. 

O caractere chinês para a planta, denominado ma (麻), possui diferentes formas de escrita para indicar plantas masculinizadas, feminizadas, frutos ou sementes. Uma de suas variações escritas representava também “dormência”, “falta de sentido”, o que sugere que a planta já era utilizada enquanto substância psicoativa. Já o seu uso na medicina é relatado mais tarde, por volta de 200 a.C., no livro de fitoterapia “Pen T’sao Ching”. Registros da época relataram o uso medicinal para tratar dores reumáticas, constipação intestinal, desarranjos no sistema reprodutivo feminino, malária e outros.

Os povos da Ásia antiga utilizavam as fibras da planta para fabricação de tecidos e cordas, desde 4.000 a.C, e de papel, desde o século I a.C., sendo considerada uma das produções mais ricas e prósperas da região. Na Índia, a Cannabis sativa era narrada como uma planta presente na criação do mundo, junto ao próprio Shiva. A palavra ganja tem sua origem no termo hindu gaanja ou गांजा, que por sua vez é derivado do sânscrito.  Assim como o termo bangue ou bango, que possui origem no hindu bhaang ou भांग. Há um registro sobre plantas medicinais da Índia, onde se encontra uma das primeiras citações sobre o bangue no ocidente, o “Colóquios dos simples e drogas da India”, de Garcia de Orta, cuja edição mais antiga é de 1563. Na cultura hindu, tradicionalmente se utiliza a planta para preparo de uma bebida sagrada, chamada Bhāṅg.

Capa do livro “Colóquio dos Simples e drogas da Índia”, é uma capa de couro antiga com texturas e decalque dourado na lombada.
Capa do livro “Colóquio dos Simples e drogas da Índia”, de 1563. Fonte: Arquivo Nacional Torre do Tombo.

O uso da planta passou por diferentes povos da Ásia, Europa e África, antes de chegar às Américas, durante o período de expansão marítima e colonização. Diversos pensadores da Grécia antiga citavam a planta como muito útil para fabricação de cordas, mas o Império Romano não teve grande interesse em seu cultivo. Segundo o dicionário Priberam, a palavra canábis (ou cânabis) originou-se dos termos latino (cannabis) e grego (kánnabis). 

Nuvem de palavras coloridas. No centro, lê-se o termo “cannabis” e em seu entorno as palavras mais destacadas são “plant”, “hemp”, “cannabinoids”, “effect”, “health”, “production”, “marijuana”.
Fonte: http://www.wordcloudit.com/

As caravanas árabes foram de grande importância na expansão do uso da Cannabis sativa, entre a Ásia, a península Arábica, o norte da África e a Europa. Foi apenas no século XII, com a chegada dos mouros, que este cultivo tomou maiores proporções na Península Ibérica, sendo uma importante fonte para produção de papel e, mais tarde, para a produção de velas e cordas das navegações que atravessaram o Atlântico até as Américas. Os mouros utilizavam tradicionalmente a planta para tratamentos de saúde, tendo até mesmo relatos do século XV sobre o uso do haxixe para crises epiléticas. 

Segundo o dicionário Michaelis, o termo haxixe originou-se do árabe ḥašīš e é uma conhecida resina extraída da Cannabis sativa, com grande potencial para alteração da mente. O uso desta resina perdura até os dias atuais e seu efeito costuma ser mais forte do que o uso fumado das inflorescências, por ter uma dosagem maior de moléculas de THC (delta-9-tetrahidrocanabinol). Já a palavra cânhamo (cáñamo) tem origem na Espanha, região onde os cultivares da planta eram mais fibrosos e utilizados historicamente para fabricação de tecidos, cordas e embarcações. 

Nuvem de palavras coloridas. No centro, lê-se o termo “cânhamo” e em seu entorno as palavras mais destacadas são “industrial”, “cookie”, “brasil”, “cannabis”, “uso”.
Fonte: http://www.wordcloudit.com/

Foram também os árabes que introduziram o uso da cânabis no continente africano, já no século I d. C. em suas caravanas comerciais. Enquanto algumas regiões do norte africano, como o Egito, aderiram ao uso do haxixe, territórios mais centrais preferiram o hábito de fumar a erva seca. A planta, aos poucos, avançou pelo continente, desde a Península Arábica até a Etiópia, Zâmbia e Moçambique. A própria atividade marítima de portugueses na região colaborou para espalhar o uso desta erva pelos litorais da África, indicando que foi assim que chegou a Angola, por exemplo. 

Há outras palavras muito utilizadas na América para denominar a Cannabis sativa: a palavra maconha e a palavra pango tem origem no idioma quimbundo (ma’kaña e pango, respectivamente), falado na região de Angola. A palavra diamba (ou liamba) vem do idioma quicongo (lyamba), falado em regiões da Angola e República do Congo. Ainda que se tenha suspeitas de que a palavra marihuana (ou marijuana) teria origem na expressão ma ren hua – que traduzindo literalmente do mandarim significaria cânhamo-sementes-flores –, a real origem da palavra foi emprestada do idioma quicongo (lyamba), que transformou-se em riamba e depois em mariamba. Na Colômbia, também se utiliza o termo marimba, de mesma origem.

Nuvem de palavras coloridas. No centro, lê-se o termo “maconha” e em seu entorno as palavras mais destacadas são “não”, “uso”, “planta”, “cannabis”, “efeitos”, “califórnia”.
Fonte: http://www.wordcloudit.com/

Se nos aprofundamos nos significados que os dicionários trazem a respeito destes nomes, podemos observar que, enquanto os termos “maconha”, “liamba”, “pango” possuem significados descritos enquanto droga, uso fumado ou substância alucinógena, os termos “cânabis” ou “cânhamo” raramente vem acompanhado destes sentidos mas sim por uma descrição mais técnica, relacionando tais palavras a especificidades botânicas da planta, sua classificação e origem. 

A pesquisadora Caroline Gonçalves da Silva faz uma brilhante análise dessas sinonímias em sua dissertação de mestrado, como podemos citar: “A relação que o dicionário estabelece entre esses dois signos, inicialmente de sinonímia, revela, na verdade, uma relação de contrastes, de oposição: entre o oficial e o cotidiano, o popular e o científico, o lucrativo e o recreativo, o dito e o silenciado.” (2017)

Outra palavra utilizada para a planta é o termo dirijo, de origem regional ao norte do Brasil. A palavra foi bastante difundida entre indígenas e pequenos povoados no interior.

Algumas pessoas dizem que cânabis, cânhamo e maconha são diferentes, mas análises genéticas mais atuais sugerem que são a mesma planta. As palavras têm origens diferentes, porque a planta já havia se espalhado pelo mundo e ganhado muitos nomes quando chegou ao Brasil. O que muda são as subespécies e a sua variação química, dependendo da incidência de sol, tipo de solo, quantidade de água e o clima.

Em nossa próxima publicação vamos aprofundar as motivações sociais que fizeram com que essas três palavras fossem compreendidas de forma tão diferente ao longo do tempo.

Referências:


portadesaida

Conteúdo de divulgação científica focado no uso terapêutico da Cannabis sativa.

0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *