É Cannabis ou maconha? Parte 3 – o apagamento cultural por trás da escolha de linguagem

Publicado por portadesaida em

É maconha ou Cannabis? (parte 3) - o apagamento cultural por trás da escolha de linguagem

por Giovanna C. Romaro.

Tempo de leitura: 12 min.

Apesar das leis e decretos ao longo das décadas, o uso da Cannabis sativa nunca deixou de existir em nossa cultura. Quando se fala em guerra às drogas, alguns brincam “Parabéns, drogas, por vencerem mais um ano essa guerra”, mas na realidade não é bem assim.

Meme com ilustração de um homem de pele bege claro dirigindo um carro. De frente para ele, uma mão segura um cartão de cores, com variações entre o bege mais claro até o marrom bem escuro, no qual as cores mais claras são definidas como “jovem” e as mais escuras como “traficante”.
Meme sobre diferenciação racial. Fonte: Vice.

Mesmo que as iniciativas governamentais não tenham alcançado a desejada redução do consumo de substâncias, essas leis foram um completo sucesso quando olhamos para o objetivo inicial de eugenia: até os dias atuais a parcela negra da nossa sociedade tem pago com a liberdade e a vida a tal conta da guerra às drogas.

Entenda melhor como os ideais eugenistas influenciaram na classificação racial em relação à maconha, lendo a Parte 2 deste texto em nosso blog.

Não é por acaso que a palavra “maconha” tem sido mais presente em publicações que abordam crimes, tráfico, doença ou violência. A relação que vemos deste termo no Brasil com sua origem “imigrante” é bastante similar à relação feita nos EUA com a palavra “marijuana”, tradicionalmente utilizada por imigrantes oriundos do México e de outras localidades da América Central. Especialmente na imprensa estadunidense a diferença de sentido entre os termos “marijuana” e “hemp” (cânhamo, em língua inglesa) se apresenta na diferença de abordagem temática. A intenção de “limpeza” da hereditariedade de certas características se faz presente em ambos os contextos.

Impacto racial das escolhas terminológicas

Você se lembra de alguma vez ter lido uma notícia sobre tráfico de “cannabis”? E tráfico de “cânhamo”? Bom, nem eu. É evidente que para falar de tráfico ou crime organizado a escolha lexical é unânime: “maconha”. 

Como se isso por si só já não fosse preocupante, dado o histórico linguístico que retomamos na parte 1 deste texto, há outra diferença muito frequente nesta categoria jornalística, que é a escolha lexical para se referir às pessoas flagradas ou investigadas pela suposta ligação com a planta.

Indicamos a leitura do estudo feito pelo João Victor Pacifico Damasceno Rocha, chamado “Diferenciação racial de traficantes de drogas na mídia : um estudo de análise de discurso crítica”, que verifica a diferença de tratamento destas pessoas pela mídia, considerando o contexto econômico e racial.

Reprodução de duas manchetes do G1. Na primeira o título "Polícia prende jovens de classe média com 300Kg de maconha no Rio" e na segunda com o título "Polícia prende traficante com 10 quilos de maconha em Fortaleza".
Comparativo de manchetes. Fonte: Pragmatismo Político.

Como a Lei de Drogas 11.343/2016 não especifica uma quantidade mínima para caracterizar tráfico e diferenciá-lo do uso pessoal, a Justiça analisa caso a caso de forma subjetiva, abrindo brecha para que os sujeitos sejam julgados conforme a convicção de cada juiz e possibilitando um viés racial ou de classe. Esta falta de objetividade nos leva a uma sobrecarga do sistema prisional brasileiro, com maior incidência de pretos e pardos. De acordo com dados da Agência Pública, a população negra é a mais condenada por tráfico no Estado de São Paulo, mesmo quando apreendida com uma quantidade menor, em comparação com a população branca.

No episódio 6 do Porta de Saída Podcast, aprofundamos bastante sobre como as atualizações da Lei de drogas propiciaram cada vez mais o encarceramento em massa e o genocídio da população periférica, em especial a população negra feminina.

Pensando na comunicação midiática sobre as drogas – em especial a Cannabis sativa – percebemos um tratamento diferenciado que está diretamente ligado a questões do uso da língua. Em “Um olhar dialógico para a polêmica na imprensa: os sentidos de ‘maconha’ nas capas de revista”, da pesquisadora Carolina G. da Silva, podemos encontrar algumas abordagens a respeito da escolha lexical e sua relação com a trajetória histórica:

“Tendo em vista esse complexo contexto histórico sobre a planta e seu consumidor, não importa se foram, portanto, portugueses ou africanos que introduziram a planta no Brasil; se originalmente o uso da erva era recreativo, medicinal, espiritual ou industrial. Importa que, no senso comum, a valoração negativa do signo maconha, foi historicamente construída a partir do valor que a sociedade atribuía aos sujeitos que a consumiam e a suas práticas.” 

Há cerca de 10 anos, a imprensa fazia discussões sobre os usos da Cannabis sativa, partindo da novidade de países que iniciaram seus processos de legalização do uso da planta, como o Uruguai e alguns territórios dos EUA. As capas na imprensa brasileira da época refletiam uma preocupação com a popularização que a “maconha” poderia ter por aqui:

Capa da Revista Veja (2012).
A capa da Revista Galileu é branca com o nome da revista em cinza ocupando todo o topo. No centro há uma fotografia de uma folha de Cannabis sativa, verde com cinco pontas. Sob ela, lê-se “maconha” em cinza do lado esquerdo e o subtítulo à esquerda “Sim, faz mal. Mas proibir não é pior? O grande laboratório da legalização começa no Uruguai e nos EUA em 2013.”
Capa da Revista Galileu (2013).

Anos mais tarde, quando análises mais recentes da ciência indicavam benefícios à saúde e já como prescrição para inúmeros sintomas e condições, algumas publicações na imprensa começaram a – digamos assim – escolher melhor as palavras a serem usadas. 

Desde então, passamos a encontrar mais vezes o termo “cannabis”, “cannabis medicinal”, “maconha medicinal”. A diferença de sentido também se evidencia quando notamos que é possível encontrar mais vezes o termo “cannabis” desacompanhado do termo “medicinal”, do que o termo “maconha”, que sempre necessita de seu acompanhante para conferir legitimidade aos benefícios da planta. Assim como os dicionários já demarcavam a diferença de sentido, podemos notar que “maconha” por si só é entendida publicamente enquanto droga e, para ser considerada um remédio, precisa se afirmar: “maconha medicinal”.

A capa da Revista SuperInteressante tem uma moldura vermelha, contendo o nome da revista no topo à esquerda em branco. Dentro da moldura, há uma fotografia composta por comprimidos coloridos organizados para formar o contorno e preenchimento de uma folha de Cannabis sativa, com sete pontas, sobre fundo verde. Logo abaixo de sua representação, há o título em branco “Maconha medicinal” e o subtítulo “Com uma guerra judicial envolvendo crianças, mães e o governo, a discussão sobre as propriedades médicas da maconha pega fogo no país.”
Capa da Revista SuperInteressante (2014).

Para além da capa, a Revista Superinteressante provoca o leitor ao utilizar a expressão “pega fogo” retirando do contexto da maconha fumada e colocando em evidência as discussões sobre o uso medicinal da planta. Podemos encontrar certa irreverência nesta publicação, contrastando com grande parte da mídia hegemônica que não escolhia o termo “maconha” para falar de saúde.

Porém o excesso de cuidado com o uso da palavra “maconha” nos meios de comunicação tradicionais – revistas, jornais e televisão – destoa bastante se comparamos com os termos escolhidos pela própria população brasileira. Quando aprofundamos a compreensão sobre os significados dos termos “maconha”, “cannabis” e “cânhamo”, temos que levar também em consideração o que o público consome sobre este tema na web, que tem sido outro espaço de informação importante além dos canais mencionados.

Gráfico comparativo de buscas pelos termos “maconha” (azul), “cannabis” (vermelho) e “cânhamo” (amarelo) no Google, entre 2017 e 2022.
Gráfico comparativo de buscas pelos termos “maconha” (azul), “cannabis” (vermelho) e “cânhamo” (amarelo) no Google, entre 2017 e 2022. Fonte: Google Trends.

Ao analisar o interesse do público, no período de 2017 a 2022, vemos que as buscas pelo termo “maconha”, variam entre 50 e 100 pontos, enquanto o termo “cannabis” mal chega aos 20 pontos e o termo “cânhamo” fica ainda mais abaixo na popularidade. Essa pontuação é calculada de acordo com o alcance geográfico e de tempo daquele termo, para comparar a popularidade das pesquisas por termo na web. Segundo Lang, “Em termos matemáticos, isso seria representado pela seguinte equação: volume total de consultas do termo em região / número total de consultas nesta mesma região em determinado ponto do tempo.”

Índice das principais pesquisas relacionadas ao termo “maconha” entre 2017 e 2022. Fonte: Google Trends
Índice das principais pesquisas relacionadas ao termo “maconha” entre 2017 e 2022. Fonte: Google Trends

Já quando analisamos as pesquisas relacionadas a cada um dos termos, no Google Trends, temos uma gama de possibilidades de análise dos discursos que permeiam esses nomes. O termo maconha geralmente está relacionado com “fumar”, “folha de maconha”, “pé de maconha”, “efeito”, “cigarro”, “drogas”. Já o termo “cannabis” fica relacionado principalmente com “sativa”, “medicinal”, “planta”, “semente”, “óleo”, “cultivo” e “canabidiol”. E, por último, o termo “cânhamo” geralmente é relacionado com “tecido”, “semente”, “linho”, “canabidiol”, “Bíblia” e “óleo”. 

A pesquisadora Marina Lang fez uma análise sobre as buscas destes termos no Google e no Facebook, em sua dissertação de mestrado, que possui dados bastante interessantes. Apesar de terem passado 7 anos desde então, os dados demonstram que as buscas sobre “cannabis” aumentaram um pouco, mas ainda são quase 4 vezes menores do que as buscas sobre “maconha”, hoje no Brasil. 

Mas como eu escolho qual nome usar para essa planta?

Considerando as questões históricas e etimológicas das palavras, conforme falamos na parte 1 deste texto, há algumas indicações motivadoras para escolha de palavras nos dias de hoje.

De fato, pode haver uma lógica para optar pelo uso da palavra “cânhamo”, quando quer se referir à planta utilizada para fins de produção de fibras industriais, já que historicamente sua origem indica maior uso para fabricação de papel e tecido. Assim como há certa lógica para optar pelo uso da palavra “cannabis” ao se referir a questões de pesquisa científica ou aplicação em remédios e medicamentos, já que sua origem tem relação com um contexto mais filosófico. Há também um indicador forte para relacionar as palavras “maconha”, “diamba” e “liamba” ao uso recreativo (ou adulto), já que historicamente a palavra vem de um contexto cultural da prática do fumo. 

Apesar disso, temos que lembrar que a planta continua sendo a mesma e o uso que se faz dela depende diretamente da cultura. O que pra uns significa fumo, para outros significa terapia – às vezes utilizando a mesma palavra.

Temos que reconhecer que o tamanho distanciamento que se deu entre essas palavras tem motivações de caráter eugenista. Afinal se todas denominam uma mesma planta, por que algumas palavras deveriam ser mais estigmatizadas do que outras? 

Conforme o mercado legalizado de produtos à base da Cannabis sativa vai se firmando no Brasil, deveria ser de interesse público que a escolha de palavras também considerasse a dívida histórica que nosso país tem com as populações escravizadas, encarceradas e dizimadas em contínuas ações de segregação racial. Seja esse interesse científico, econômico ou social, há de se compreender que – proibida ou não – a palavra “maconha” é a mais popular na nossa cultura. 

Escolher outros termos pode até vestir o discurso com uma fantasia de que nosso passado não existiu, mas esse passado é bem real e o proibicionismo presente continua ferindo gravemente uma parcela da nossa sociedade. Apagar o uso de uma palavra também carrega o apagamento de uma cultura, de uma história e de um povo.

Referências:


portadesaida

Conteúdo de divulgação científica focado no uso terapêutico da Cannabis sativa.

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