É Cannabis ou maconha? Parte 2 – o apagamento cultural por trás da escolha de linguagem

Publicado por portadesaida em

Cannabis ou maconha? Parte 2 - o apagamento cultural por trás da escolha de linguagem

por Giovanna Romaro.

Tempo de leitura: 15 min.

Nem sempre a maconha foi proibida no Brasil e no mundo. Nos doze mil anos de relacionamento da Humanidade com esta planta, apenas nos últimos dois séculos ela passou a ser vista como crime.

Ícone de uma folha de cannabis de sete pontas formada por mini folhas verdes de cannabis, sobre a qual há um círculo vermelho com uma tarja ao meio na diagonal, simbolizando proibição.
Fonte: Gordon Johnson no Pixabay

AVISO DE CONTEÚDO: Este texto contém relatos e registros históricos de casos de racismo estrutural.

Houveram diversas tentativas em introduzir a produção de cânhamo em diferentes regiões da América, durante os séculos XVII e XVIII. Enquanto os ingleses conseguiram por muito tempo garantir sua produção de fibras para a frota marítima, os espanhóis não tiveram tanto sucesso com os cultivos na região da América Latina e nem tampouco os portugueses. Estes últimos estavam bastante interessados no cultivo do cânhamo para suas embarcações, produção de papéis e tecidos. 

As tentativas de cultivo português em terras brasileiras foram três – duas delas em Santa Catarina, em meados de 1772 a 1782 –  mas somente a terceira, em 1783 prosperou na região do Rio Grande do Sul, com a criação da Real Feitoria do Linho Cânhamo. Esta produção contou com pelo menos vinte casais de escravizados. No entanto, cerca de cinquenta anos depois, o cultivo de cânhamo foi abandonado no Brasil, dando lugar a outras produções agrícolas mais interessantes para os governos que se sucederam. O Brasil tinha bastante fama por suas produções de cana-de-açúcar e tabaco, mas o cânhamo nunca teve destaque em sua produção agrícola.

Ainda se tem poucos registros que comprovem quem de fato trouxe a planta, suas sementes e cultivo ao Brasil. O fato é que tanto os marinheiros portugueses quanto os povos escravizados tinham o hábito de fumar as inflorescências secas da planta. De alguma maneira esse uso acabou ficando bastante popular em nosso país, desde o século XVI e continuou crescente. 

Tanto o uso para fabricação de tecidos e papel quanto o uso fumado estavam presentes, mas os registros históricos da época parecem indicar que o público em geral não compreendia que se tratava da mesma planta para os dois usos. Esse distanciamento cultural também promoveu, de certa maneira, um distanciamento linguístico.

Entenda melhor as diferenças linguísticas, lendo a Parte 1 deste texto em nosso blog.

Tempos de proibição (da maconha)

Aqui no Brasil, praticamente não se tem registros históricos que retratam o uso fumado enquanto cultura ou mesmo em relação ao uso medicinal não há nada muito substancial. No entanto, no início do século XIX, começaram a ser relatadas algumas denúncias de comportamentos inadequados à sociedade com o uso do fumo desta erva ou do rapé. Desde heresia à fé cristã até práticas homossexuais, violência, prostituição (comportamentos estigmatizados pela moral da época como se fossem todas frutos de degeneração de caráter) foram relatadas às instituições como causadas pela erva. 

Curiosamente, neste mesmo período, Napoleão Bonaparte criminalizou o uso do haxixe em seus territórios, tentando controlar esta prática cultural – de tradição árabe – que havia se espalhado entre seus soldados. Ainda que, com todos os esforços, alguns países tenham promovido leis proibicionistas em relação à cânabis, o uso “recreacional” (seja pelo fumo da erva seca ou outras formas como o haxixe) nunca deixou de acontecer. 

Com a crescente proibição, esses usos passaram a povoar muito mais os escritos literários, com a devida “licença poética”, como podemos citar as obras “Haxixe em Marselha” de Walter Benjamin, “O comedor de haxixe” de Fitz Hugh Ludlow e “Os paraísos artificiais” de Baudelaire.

Em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro foi uma das primeiras instâncias no mundo a criminalizar a Cannabis sativa: “É proibida a venda e uso do pito do pango, bem como a conservação deles em casas públicas; os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 mil réis, e os escravos e mais pessoas que dele usarem, em oito dias de cadeia.” Após 40 anos, a Câmara de Santos também proibiu o comércio e uso desta planta e, pouco depois, a Câmara de Campinas deliberou pela mesma proibição, em 1876. 

Vale ressaltar que mesmo com leis proibitivas à venda e consumo da maconha, no final do século XIX e início do século XX, as famílias mais ricas podiam encontrar diversos remédios feitos com a mesma planta nas farmácias e boticários, como os “Cigarros Índios”, recomendados para tratar asma. 

Anúncio de jornal antigo, no qual lê-se: "Asthma Catarros Insomnia Cigarros Indios Cannabis Indica De Grimault e C" Logo abaixo há um texto ilegível.
Fonte: anúncio de cigarros índios, 1905 (CARLINI, 2006)

Segundo Duvall em seu livro intitulado Cannabis (2014), há evidências de que grupos indígenas nativos da Amazônia já faziam o uso fumado da diamba, em meados de 1904, tendo tido contato anteriormente com grupos de escravizados foragidos. 

Partindo de relatos antigos, houveram indicações médicas da Cannabis sativa durante o período que vai do século XIII ao XVIII, mas sem muitas evidências científicas. Os estudos científicos a seu respeito só tiveram maior repercussão mundial em 1839 e 1842 com artigos publicados pelo professor de química William O’Shaughnessy, que abordaram aplicações médicas para tétano, cólera e convulsões. Na mesma época, o Dr. J. J. Moreau publicou seu estudo “Do haxixe e da alienação mental: estudos psicológicos”, que investigava a potencialidade da cânabis para a saúde mental.

Já no início do século XX, algumas literaturas médicas destacavam os prejuízos causados pelo uso da planta no Brasil, por exemplo a edição de 1908 do “Formulário e Guia médico”, escrito pelo médico Pedro Luiz Napoleão Chernoviz. E no texto “Fumadores de Maconha: Efeitos e Males do Vício”, publicado em 1915 pelo médico João Rodrigues Dória, observa-se um discurso bastante preocupado em aproximar o uso fumado a determinados grupos raciais e reforçar assim a marginalização tanto da planta quanto destes povos, especialmente ao tratar de religiões de matriz africana, como o candomblé: 

“Nos candomblés – festas  religiosas  dos  africanos,  ou  dos  pretos  crioulos deles  descendentes,  e  que  lhes  herdaram  os  costumes  e  a  fé – ,  é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas.”

Neste mesmo texto, ele relaciona a palavra “assassino” à palavra “haxixinos”, ideia que foi muito difundida no passado, até em dicionários, apesar de não existir evidência de qualquer relação etimológica. 

Fundo branco amarelado, com o título “FUMADORES DE MACONHA: EFEITOS E MALES DO VÍCIO”, seguido de um subtítulo “Memória apresentada ao Segundo Congresso Científico Pan-Americano”, reunido em Washington D.C., a 27 de dezembro de 1915”; Em seguida consta uma citação em língua francesa do texto “Le Opiomanes”, de Dr. Roger Dupouy.
Reprodução da apresentação transcrita, referente ao estudo do Dr. Rodrigues Dória no Segundo Congresso Científico Pan-Americano, em Washington D. C., em 1915.

Esta publicação do Dr. Dória inaugurou um novo momento da Cannabis sativa no Brasil, não mais como um uso cultural, mas como um problema de saúde pública, a partir de uma perspectiva de doença, ou seja, efeitos danosos à saúde causado pelo uso que tais grupos sociais faziam da planta. 

Poucos anos depois, surgiu a ideia de uma toxicomania, que era a falta de controle pessoal sobre o uso de determinada substância. Em seu artigo “Uma nova toxicomania, o vício de fumar maconha”, Júlio Cesar Adiala nos conta que esta ideia foi cada vez mais difundida entre os profissionais da medicina, no período, e foi usada como argumento para a criação de sanatórios dedicados ao tratamento de doenças mentais ligadas ao uso abusivo de entorpecentes. Estes sanatórios seguiam muito de perto ideais eugenistas, cujo objetivo era limpar a sociedade de características que fossem consideradas prejudiciais à hereditariedade de um povo ou uma nação. Não foi apenas a classe médica que comprou e difundiu o discurso eugenista, mas também os juristas e policiais. 

Diversos estudos começaram a surgir nas faculdades de medicina, a partir da publicação do Dr. Dória, corroborando com a ideia de que o “fumo d’Angola” era para as classe mais baixas o que o ópio e a cocaína vinham sendo para as classe mais altas da sociedade. Com este cenário, foi em 1925 que o Dr. Pernambuco Filho representou o Brasil na II Conferência Internacional do Ópio e apoiou a inclusão da Cannabis sativa na lista de substâncias proibidas. A partir de 1936, cria-se a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, que inicia uma grande campanha pela erradicação da maconha em território nacional – bastante alinhada com as políticas proibicionistas levantadas no exterior, especialmente nos EUA. 

No artigo “Breve história da maconha no Brasil e suas relações com a moralidade na formação da República”, Luiza Lima Dias e Saulo Carneiro Pereira dos Santos analisam também os ideais eugenistas que circulavam entre médicos da época e como isso se calcava diretamente com o uso de algumas substâncias:  

“Acreditava-se  que,  a  partir  da  análise  da  hereditariedade,  seria  possível  identificar  aqueles  mais predispostos à loucura, à degeneração, aos vícios, ao crime, antes mesmo que tais males  ocorressem.  Tão  importante  quanto  a  identificação  dessas  características, seria  a  prevenção  a  partir  de  medidas  de  saneamento,  isolamento  e  educação. Assim, o uso de drogas, que fazia parte desse conjunto de hábitos a se combater, também aparecia  como  atributo  a  ser  observado  nos  exames.”

É interessante pensarmos que, nesta época de construção de uma identidade nacional na República do Brasil, havia uma necessidade de desvincular tal identidade com expressões culturais herdadas de povos escravizados. Esta nova Repúlica não queria ser lembrada pelos feitos da colonização e nem tampouco estar relacionada com um herança de “inferioridade”, tal como eram vistos os negros. 

Em 1932, foi publicado o primeiro decreto (20.930/1932) com medidas proibitivas em relação à maconha, a nível nacional.

Já a partir de 1933, ocorrem as primeiras prisões por tráfico de maconha e a imprensa passa a noticiar os malefícios da erva como comparáveis aos do ópio. Segundo Adiala, “sua definição como toxicomania serviria para legitimar a existência de um aparato repressivo e o controle policial que se voltou contra a população pobre”. 

Reprodução de fotos antigas, numa série de quatro fotografias de um homem de pele escura fumando em um insrumento longo que lembra uma flauta. Sob as fotos, lê-se: "QUATRO FASES DO NEGRO AZEITÃO FUMANDO MACONHA"
Fonte: Livro "O Negro brasileiro", de Arthur Ramos (1940). Nas fotos, o representado recomendava fumar na "marica" para proteger a garganta da fumaça quente.

Em outra publicação, já de 1958, Francisco Assis Iglesias relata como eram os clubes de diambistas, conectando o uso cultural da diamba a comportamentos violentos:

“Colocam-se  em  tôrno  de  uma  mesa  e  começam  a  sugar  as  primeiras baforadas  de  fumaça  da  Cannabis sativa.  Depois  de  alguns  minutos,  os efeitos começam a fazer-se  sentir […] o delírio aparece agradável, dando bem-estar,  trazendo  à  mente  coisas  agradáveis,  vai  aumentando,  até  à loucura  furiosa  que  toma  diversas  modalidades,  segundo  o  temperamento de cada indivíduo.

Uns ficam em estado de coma, em completa prostração; os outros dão para cantar,  correr,  gritar;  outros  ficam  furiosos,  querem  agredir,  tornam-se perigosos.”

Entre os séculos XIX e XX, foram diversos os discursos que relacionaram o uso da maconha fumada e do haxixe a grupos raciais de origem africana e árabe, ao mesmo tempo em que outros discursos imputaram este uso a comportamentos violentos ou relacionados à chamada “degeneração moral”. Quando se combinam os dois discursos, é possível compreender por que até hoje alguns grupos são mais criminalizados do que outros quando o assunto é o uso da Cannabis sativa. E aqui já podemos notar que essas diferenças têm tudo a ver com escolhas linguísticas, tradição cultural e discursos.

Em nossa próxima publicação vamos abordar os impactos das escolhas linguísticas na sociedade atual.

Referências:


portadesaida

Conteúdo de divulgação científica focado no uso terapêutico da Cannabis sativa.

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