Por Martin A. Schwartz
Originalmente publicado no Journal of Cell Science e traduzido por Rafael Soares
Reencontrei recentemente uma velha amiga que não via há anos. Éramos alunos de doutorado na mesma época, ambos estudando ciência mas em diferentes áreas. Ela deixou a área e foi para faculdade de direito em Havard e agora é advogada sênior de uma grande organização ambiental. Num determinado momento a conversa pendeu para o porque de ela ter largado a academia. Para meu total espanto ela disse que saíra porque se cansou de se sentir estúpida. Após alguns anos se sentindo estúpida todos os dias ela percebeu que estava pronta para fazer outras coisas.
Para mim ela era uma das pessoa s mais brilhantes que eu conheci, e a sua carreira posterior prova esta constatação. O que ela disse me incomodou. Eu continuei pensando naquilo, até que no dia seguinte caiu a ficha. A ciência me faz sentir idiota também. O que acontece é que eu me acostumei com isso. Tanto me acostumei a isto que persigo ativamente novas oportunidades de me sentir estúpido. Não sei o que eu faria sem este sentimento, e até acho que é assim que deve ser. Deixe-me explicar.
Para a maioria de nós, uma das razões para gostarmos de ciências na escola era que nós éramos bons nisto. Mas esta não pode ser a única razão – fascínio por entender o mundo físico e uma necessidade emocional de descobrir novas coisas devem existir também. Mas para a escola e a faculdade a ciência consiste em fazer aulas, e ir bem nas aulas significa dar as respostas certas nas provas. Se você souber as respostas você passa bem e se sente esperto.
No doutorado, onde você tem um projeto de pesquisa, a coisa é bem diferente. Para mim foi uma tarefa amedrontadora. Como eu poderia formular a pergunta que me levaria a uma descoberta significativa; desenhar e interpretar um experimento para que as conclusões fossem absolutamente convincentes; prever obstáculos e achar maneiras de circundá-los, ou, caso falhasse nisso, resolvê-los quando aparecessem? Meu projeto de doutorado era interdisciplinar e, por um tempo, sempre que tive um problema eu podia importunar alguém em meu departamento, que tinha especialista em várias disciplinas de meu interesse. Eu me lembro de um dia em que Henry Taube (que ganhou o prêmio Nobel dois anos depois) me disse que não sabia como resolver um problema que eu estava tendo, mesmo se tratando de sua área.
Percebi que eu era apenas um aluno de trinta anos e que Taube deveria, por baixo, saber 1000 vezes mais do que eu. Se ele não tinha a resposta, então ninguém tinha.
Foi aí que entendi: ninguém sabe. Por isso mesmo que é um problema em pesquisa. E sendo a MINHA pesquisa, era minha responsabilidade resolvê-lo. Ao encarar este fato resolvi o problema em poucos dias. (E não era realmente muito difícil; apenas tive que testar algumas poucas coisas.) A moral da história é que a área das coisas que eu não sabia não era apenas vasta; era, na prática, infinita. Ao invés desta constatação ser desencorajadora, ela era libertadora. Se a ignorância é infinita, a única atitude que nos sobra é dar o melhor de nós.
Eu gostaria de dizer que os programas de pós-graduação geralmente fazem um desserviço para a formação do estudante de duas formas. Primeiro porque os estudantes não percebem o quão difícil é fazer pesquisa. Mais difícil ainda pesquisa de grande importância. É muito mais difícil que ir bem nas aulas, mesmo nas mais exigentes. O que torna a pesquisa difícil é o mergulho no desconhecido. Nós simplesmente não sabemos o que estamos fazendo. Até termos um resultado, nós nem ao menos estamos certos se estamos fazendo as perguntas certas ou os experimentos adequados. Para atrapalhar, ainda temos a competição por financiamento e visibilidade em revistas de prestígio . Mas fora isto, fazer pesquisa relevante é intrinsecamente difícil, por isso qualquer mudança nos cursos, departamentos ou instituições não vão diminuir esta dificuldade intrínseca.
Segundo, nós não ensinamos nosso alunos a serem ignorantes produtivos – ou seja, se eu não me sinto estúpido, significa que eu não estou realmente me esforçando. Não estou falando de ´ignorância relativa´, como quando os outros alunos na turma lêem as lições, estudam, passam na prova, e você não. Também não estou falando de pessoas brilhantes que estejam em áreas que não aproveitam seus talentos. Ciência envolve confronto com a ´ignorância absoluta’. Aquela que é um fato existencial inerente a nosso esforço de adentrar no desconhecido. Exames de admissão e bancas de defesa atingem seus objetivos quando forçam o aluno até começar a dar respostas erradas ou desistir e dizer, ´não sei´. O objetivo do exame não é avaliar se o aluno responde todas as perguntas. Se ele responder, quem falhou no teste foi a banca. O objetivo real é identificar as fraquezas do aluno, primeiro para ver onde ele deve se esforçar mais, e segundo para saber se o conhecimento dele estaciona no nível alto o suficiente para tocar um projeto de pesquisa.
Estupidez produtiva significa ser ignorante por escolha. Focar em uma questão importante nos coloca numa posição de ignorância. Uma coisa boa em ciência é que ela nos permite tropeçar por aí, errar de vez em quando, e mesmo assim nos sentirmos bem, contanto que aprendamos algo com isso tudo. Claro que isto é muito difícil para alunos que estão acostumados a ter a resposta certa. Claro que um bom nível de confiança e equilíbrio emocional ajudam, mas eu acho que educação científica deve fazer mais para atenuar esta grande transição: de aprender as descobertas de outras pessoas para começar a fazer as suas próprias. Quanto mais confortáveis estivermos sendo ignorantes, mais profundamente poderemos penetrar no desconhecido para fazer grandes descobertas.