A falha do Duplo Negativo-Inator

Hoje (dia 1 de junho de 2020) completamos 1 ano de postagens, para comemorar esta data especial trouxe uma análise do meu desenho animado favorito, Phineas e Ferb. Em especial, o episódio 187, “Enormes Bolas d’Água”.

Neste episódio está bastante calor e o Dr. Doofenshmirtz (um cientista do mal) sente falta do inverno quando ele costumava sair para tomar uma gemada. Por isso, ele vai até onde tomava gemada no inverno e pede uma gemada, mas a funcionária diz que gemada só é servida no inverno, e não é inverno. Ele fica irritado e bravo, mas não resolve nada, então volta para sua casa e decide resolver isso do seu próprio jeito.

Ele constrói o Duplo Negative-Inator, uma máquina que dispara um laser e que acrescenta uma negação em uma sentença negativa, fazendo dela uma dupla negação. Assim, segundo o plano do Dr. Doofenshmirtz, ele usaria o laser na funcionária da padaria que acrescentaria um “não” à frase original, ficando assim: “gemada só servida no inverno, e não não é inverno”. Logo, a dupla negação implicaria que é inverno e ela serviria gemada para ele.

Imagem do respectivo episódio

Deixando de lado a complexidade do plano, chegamos no ponto principal deste post. A ideia de que uma dupla negação seja igual a uma afirmação, não é sempre verdade.

Estamos habituados, até mesmo nos cursos universitários de Matemática em começarmos a estudar lógica a partir da Lógica Clássica, e imaginar que só exista ela. Que tudo se resolve com Lógica Clássica, que podemos sair por ai atribuindo status de V e F nas proposições que chegaremos numa tabela verdade que nos indicará todas as instâncias possíveis para determinada afirmação. De fato, de 2009 quando ingressei na Matemática, até começo desse ano (2020), estava seguro de que a Lógica Clássica resolvia tudo… mas então fui estudar um pouco o assunto e conheci outras lógicas, como a Lógica Positiva, Lógica Minimal e a Lógica Intuicionista.

Em termos de recursos e ferramentas, são lógicas mais simples (temos menos propriedades para usar do que na Lógica Clássica). Porém, esta escassez de recursos também é responsável por suas complexidades elevadas. Pois por exemplo, na Lógica Positiva não temos o conceito de negação, não é possível negarmos nada, então para representarmos uma sentença que seria simples de se escrever com uma negação, as vezes precisamos dar várias voltas em outros conectivos ou até mesmo é impossível de ser feita.

Se a história pareceu complicada, na Lógica Minimal as coisas pioram, pois apesar de termos a negação, não há definição sobre o que seja um Absurdo (uma situação em supomos algo e chegamos que é falso e verdadeiro ao mesmo tempo). Nesta lógica, isto existe, porém não é definido, existe e ponto final…

Na Lógica Intuicionista o Absurdo já é definido, porém não ainda falta um princípio que é a diferença entre esta lógica e a Lógica Clássica, chamado de “Terceiro Excluído”. Isto significa que uma afirmação qualquer pode ser Verdadeira ou Falsa, e não há um terceiro status possível para ela. Assim, qualquer afirmação na Lógica Clássica é Verdadeira ou é Falsa. Mas na Lógica Intuicionista isto não é definido.

A primeira vez que ouvi sobre as Lógicas Minimal e Intuicionista, pensei que elas eram mais simples por terem menos regras, ou pelo menos mais fracas do que a Lógica Clássica. Mas o fato de terem menos regras permite algumas coisas muito bizarras… por exemplo, é possível representar a Lógica Clássica a partir da Lógica Minimal ou Intuicionista. Ou seja, os dois sistemas lógicos com menos regras conseguem suportar todas as afirmações de um sistema com mais regras.

Mas o que isso tudo tem a ver com aquele episódio de Phineas e Ferb?

De fato, o Dr. Doofenshmirtz criou uma máquina que insere uma negação nas sentenças negativas. Na esperança de que atingindo a funcionária da padaria, ela serviria uma gemada ao dizer que “não não é inverno”. Ou seja, o Dr. Doofenshmirtz supos que o mundo funciona inteiramente na Lógica Clássica, na qual uma dupla negação é igual a uma afirmação.

Um exemplo que a Lógica Clássica é predominante é a Matemática usual. Nela vemos que multiplicar um número por (-1) inverte seu sinal. Se ele era positivo, passa a ser negativo, se ele era negativo passa a ser positivo. Assim uma dupla multiplicação por (-1) seria equivalente a uma dupla inversão de sinal, fazendo-o positivo.

Outro exemplo no qual esta inversão funciona também são com as transposições de matrizes. Seja A uma matriz, seja B a matriz transposta de A, se transpormos B, teremos de novo a matriz A. Ou seja, a dupla transposição de uma matriz, é equivalente a uma dupla negação na Lógica Clássica.

Porém na nossa comunicação usual, nos assemelhamos por vezes da Lógica Intuicionista. Por exemplo na própria fala da funcionária sobre a gemada.

“gemada só é servida no inverno, e não é inverno”.

Inserindo uma negação ficaria:

“gemada só é servida no inverno, e não não é inverno”.

Vamos analisar melhor esta frase, separando-a em parênteses.

“gemada só é servida no inverno, e (não (não (é inverno)))”.

Temos a afirmação é inverno.

Temos então a negação da afirmação (é inverno), que gera as seguintes possibilidades:

  1. (é verão)
  2. (é outono)
  3. (é primavera)

Por fim, temos a negação de uma das 3 possibilidades acima.

1.1 (é outono)
1.2 (é primavera)
1.3 (é inverno)

2.1 (é primavera)
2.2 (é inverno)
2.3 (é verão)

3.1 (é verão)
3.2 (é outono)
3.3 (é primavera)

Logo, dizer que “não (não (é inverno))” é diferente de dizer “é inverno”.

Sim, tirando outras falhas que o Dr. Doofenshmirtz insere aos seus planos (como por exemplo botões de autodestruição) e a presença de um inimigo que o impede (Perry o Ornitorrinco), seu próprio plano inicial já se sustentava em uma estrutura lógica que não admite o princípio do “Terceiro Excluído”. Ou seja, ainda que ninguém o impedisse, ele poderia terminar sem beber sua gemada.


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. A falha do Duplo Negativo-Inator. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 3. Ed. 1. 1º semestre de 2020. Campinas, 22 maio 2020. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/2148/. Acesso em: <data-de-hoje>.

4 thoughts on “A falha do Duplo Negativo-Inator

  • 1 de junho de 2020 em 19:53
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    Bom dia!
    Eu tenho um experimento interessante, que diz toda afirmação ou negativa, são condições dadas pelo efeito psicomaterial, ou seja toda possibilidade da linguagem é um efeito material de memórias pré, logo é possível verificar este efeito, a partir de um experimento entre luz, espaço, e campo escuro. Tenho trabalho em um projeto que pretende espelhar esses sistemas cognitivos em um modelo de neurointernet.

    https://www.facebook.com/157290148262550/posts/573251283333099/

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  • 1 de junho de 2020 em 21:14
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    Nossa, que legal! Esse projeto caso funcione tem um potencial imenso.

    Mas sobre sua relação com este post, para mim não está muito clara. Pois quando falamos em afirmação ou negação na lógica, estamos bem longe da associação psicológica de um ser humano afirmar ou negar algo, e isso não é nem um pouco estranho nesta área. Poderíamos ter um ornitorrinco de chapéu afirmando algo, ou uma planta afirmando algo... Para matemáticos isso é tão natural quanto tantas outras coisas que nos é natural, por exemplo o número Zero.

    Basta olhar para a ideia de infinito, com a qual trabalhamos tanto na matemática mas que é uma ideia inconcebível fisicamente ou computacionalmente.

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  • 2 de junho de 2020 em 09:29
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    Muito bom a sua resposta, só um pequeno detalhe, o sistema que estudo é possível analisar qualquer características da linguagem, física, matemática, lógica etc, incluindo infinitos.

    Nesse sitema não é possível existir algo que não seja físico.

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    • 2 de junho de 2020 em 17:02
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      Quando você diz que este sistema admite infinitos, você se refere a infinito enumerável ou infinito não-enumerável? Você tem algum artigo sobre esse tema para me indicar, gostaria de ler sobre isso para entender mais, pode postar aqui nos comentários.

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