Demonstrar com charme

Já falamos muitas vezes neste blog sobre demonstrações, sua importância para a matemática e tudo mais. Contudo se engana quem pensa que matemáticos não valorizam a beleza, e não nos referimos aqui as formas geométricas e padrões geralmente associados à imagens. Queremos dizer uma charmosidade ligada aos resultados, mais precisamente, às demonstrações de teoremas.

Demonstrar uma conjectura é uma verdadeira briga de foice no escuro. Não há certo ou errado, o importante é sair de lá com a conjectura demonstrada (seja verdadeira ou falsa). Ninguém julgará um matemático por demonstrar uma conjectura a partir de argumentos obscuros, incontáveis passos e definições confusas… quem consegue demonstrar uma conjectura é em si um herói para esta parte da sociedade, pois uma vez que garantimos sua validade podemos usá-la para propriedades derivadas e como argumento para outras demonstrações. Mesmo que a demonstração revele que a conjectura é falsa, também é um estrondo de alegria, pois o trabalho em cima dela é então encerrado. Temos algumas conjecturas em aberto a mais de 300 anos e até hoje nenhuma certeza sobre elas serem verdadeiras ou falsas, e para piorar o quadro, tem dois teoremas (ou seja, afirmações cuja verdade já foi demonstrada) que nos garantem aspectos um tanto assustadores sobre essa área. O primeiro afirma que não importa quantos axiomas (verdades aceitas) iniciais assumimos, sempre existirão resultados que não poderão ser provados. O segundo afirma que não existe método para garantir que uma determinada afirmação não pode ser provada. Entendeu agora porque provar uma conjectura é uma conquista memorável?

Contudo, um trabalho não tão memorável mas de importância equivalente, aparece um tempo depois da primeira prova aparecer. Inicia-se um processo de lapidação naquele resultado, limpando-o de aspectos obscuros, tentando simplificá-lo ou atingindo-o a partir de abordagens alternativas. Ou seja, ocorre um esforço para deixar a prova daquele resultado, elegante ou charmosa.

Existem várias características que uma prova elegante ou charmosa pode ter, desde a simplicidade, a engenhosidade, a suavidade com que o texto e os termos se relacionam. A ideia em si para uma prova elegante ou charmosa, é que seja agradável de ser lida, não necessariamente que seja simples de ser entendida. Um exemplo agora ajudará a compreendermos esta pseudo-definição.

Tomemos o Teorema de Euclides, que afirma existirem infinitos números primos. Sua demonstração original apresentada por Euclides é a seguinte:

Suponha que existam apenas k primos, p1.p2…pk.
Tome n=p1.p2…pk.
Sendo n+1 maior que pk, n+1 não é primo e não tem um divisor comum com n.
Sendo pj divisor de n e n+1, então divide (n+1)-n=1, o que é um absurdo
.

De fato este texto demonstra a existência de infinitos números primos, porém não é a única forma disso ocorrer. Vejamos uma demonstração parecida, mas que utiliza um resultado um tanto mais engenhoso.

É suficiente mostrar que para qualquer Natural n, existe um primo p maior do que n.
Para isto considere qualquer primo p que divida n!+1

Nessa demonstração, foi possível pular vários passos ao tratarmos de n! (n fatorial). Ou seja, em vez de se preocupar em definirmos o produto de apenas dos números primos, aqui já dizemos o produto dos n primeiros números Naturais. Ou seja, os primos aparecem ai, mas também levamos um monte de outros números que apesar de não ajudar, também não atrapalham. O resultado é uma demonstração extremamente curta, e por esse aspecto, tida como elegante ou charmosa.

Agora vejamos uma outra demonstração deste mesmo teorema, mas dessa vez não se parece em nada com a demonstração original, ela ganha sua charmosidade pela sua excentricidade.

Tome n>1 um Inteiro qualquer.
Sendo n e n+1 inteiros consecutivos, eles são primos relativos.
Então N2=n(n+1) deve ter pelo menos dois diferentes fatores primos.
Analogamente n(n+1) e n(n+1)+1 são inteiros consecutivos, e por isto primos relativos.
Assim N3=n(n+1)[n(n+1)+1] deve ter pelo menos três diferentes fatores primos.
Este processo pode ser continuado indefinidamente

Basicamente a demonstração desenvolve um método que garante a geração de números primos. Este método não é uma estratégia computacional interessante para encontrarmos números primos, mas ela é matematicamente segura, garantindo que se for repetida por um número qualquer de vezes, funcionará. Encontraremos assim infinitos números primos, e se isto ocorre, logo existem infinitos números primos.

Mas não se engane ao pensar que este trabalho tenha apenas um viés estético e que a charmosidade de uma demonstração seja um aspecto desnecessário. Como mencionamos antes, uma demonstração inédita é uma joia bruta, é admirada pelos especialistas porém muito distante de ser compreendida pela maioria das pessoas. O processo de melhorar sua aparência e estrutura, possibilita que o resultado seja compreendido por mais pessoas, e até mesmo a confiança de que o resultado é de fato válido, seja algo mais claro. Dentre outros aspectos, nos próprios livros textos de disciplinas, as demonstrações apresentadas são de preferência aquelas tidas como elegantes, facilitando que o estudante leia e entenda o resultado.

As três demonstrações do teorema de Euclides, foram extraídas e traduzidas do livro que aparece na capa deste post:
ALSINA, C.; NELSEN, R. B. Charming Proofs: A Journey Into Elegant Mathematics. Mathematical Association of America, 2010, p. 10.

Se você quer entender mais sobre esta elegância nas demonstrações, sugiro que leia:
SCHATTSCHNEIDER, D. Beauty and Truth in Mathematics. In: Sinclair N., Pimm D., Higginson W. (eds) Mathematics and the Aesthetic. CMS Books in Mathematics. Springer, New York, NY. 2006.


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Demonstrar com charme. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 3. Ed. 1. 1º semestre de 2020. Campinas, 03 jun. 2020. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/2162/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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