Caça ao vampiro no Expresso do Oriente
Era verão em Budapeste no ano de 1931, quando a vampira Helena se preparava para retornar a Paris.
Ser um vampiro exige dentre vários cuidados, uma atenção redobrada com o sol e ao seu caixão enquanto é dia, para isso ela contava com uma comitiva de aproximadamente 20 vassalos dentre estes, homens, mulheres, idosos e crianças para auxiliá-la. Esses vassalos tiveram seu sangue sugado e mente dominada por ela, de modo que continuassem humanos mas fossem obedientes e leais a ela.
No dia da viagem o clima em Budapeste estava bem chuvoso, os vassalos de Helena levavam os pertences dela junto ao seu caixão para a estação de trem. Ali enquanto aguardavam ao trem que vinha de Istambul mas estava atrasado devido a uma tempestade, seus vassalos aproveitaram para ajustar seus relógios de acordo com a estação.
Após o embarque, os vassalos de Helena se certificaram de acomodar seu caixão no vagão de cargas, e ocuparem o último vagão de passageiros para garantir a segurança de sua mestra.
As horas foram passando, e sempre que algum funcionário da ferroviária se dirigia ao vagão de cargas, dois vassalos armados o acompanhavam, garantindo que nenhum mal ocorresse àquele caixão.
Pelo tempo de viagem, os vassalos imaginavam estarem próximos de seu destino, quando são surpreendidos com um forte som de metal vindo do vagão de cargas. Assustados foram ver o que ocorria, a porta do vagão estava trancada por fora, e os vagões haviam sido separados do restante do trem. Seguindo em velocidade menor, os vagões de carga foram se afastando do restante do trem. Os vassalos começam a se mobilizar, alguns tentam quebrar a porta, enquanto outros se dirigem aos vagões dianteiros para frear o trem, mas percebem que a outra porta também encontra-se trancada. Enquanto tentavam arrombar ambas as portas, os vagões foram se afastando tanto quanto era possível enxergar, e do longe viram alguém parado na ferrovia, e logo depois os vagões de cargas seguindo em uma direção diferente do restante do trem.
No vagão de cargas, estava uma moça de 30 anos, de cabelos curtos, pequena e agil, escondida em uma das malas desde antes do trem chegar em Budapeste. Agora que ela havia separado o vagão de cargas do restante do trem, sua velocidade diminuia. A moça olhava para aquele caixão e sabia muito bem o que havia ali, sentindo uma forte aura de morte ao seu redor, corre para a outra porta do vagão, nesse momento a tampa do caixão salta como se fosse um material muito leve, mas ao cair sobre o piso do trem chega a tremer o vagão, indicando seu imenso peso e mostrando as inúmeras travas internas que protegiam aquele sarcófago de ser aberto levianamente. Do caixão, quase que em um piscar de olhos, estava de pé Helena, com 1 metro e 80 de altura, pele de marfim, olhos amarelos e um sorriso que lembrava o de uma fera diante a sua presa, enquanto observava com curiosidade a moça que separou os vagões, exclamando:
Depois depois de tanto trabalho para enganar meus vassalos, nem chegou a tentar abrir meu caixão?
Estava ali realmente com intenção de me matar ou só segue ordens?
A moça diante de Helena, não hesita, passa pela porta do vagão, trancando-a, soltando o vagão dos demais e trancando a porta do seguinte. Helena caminha até o fim de cada vagão, arrebentando a porta trancada com um simples toque, e saltando a distância entre os vagões com a calma e suavidade de um pássaro que voa. Enquanto aquela moça agilmente segue soltando os vagões e trancando as portas, Helena a segue com curiosidade. Até encurralá-la no último vagão, enquanto a moça puxava os freios para reduzir a velocidade do vagão.
Helena sorri, dizendo que ela era muito hábil nisso, com certeza sua família deveria ser do ramo das ferrovias, seria um prazer se ela dissesse seu nome completo, para que ela pudesse matar apenas sua família, já que viajar de trem é tão prazeroso, que detestaria matar outros ferroviários e atrapalhar esse magnífico serviço.
A moça acuada, com olhos de raiva chora diante de Helena, demonstrando seu ódio àquela criatura, declarando que desejava sua morte, dizendo que seu nome era Clarice, quando e onde a vampira fez as atrocidades que fez e que ela havia destruído sua família. Que a odiava todos os dias da sua vida e só traria paz a seus pais e irmãos, o dia que Helena morresse! Helena ouve com curiosidade, respondendo que aquilo tudo que ela disse era deveras interessante, pois era mentira, embora não se importe com seres insignificantes como os humanos, carregava a maldição de ter uma memória eidética, assim, jamais esqueceria de nada, por menos importante que possa ser, e sabia de quem ela falava, e de fato deixou uma menina viva naquele dia, e ela se chamava Clarice, mas não era ela, o rosto era diferente, e isso deixava a história ainda mais curiosa.
Por que mente para mim, Clarice? Tudo bem se eu te chamar de Clarice?
Clarice diz que pretendia atrasar a viagem de Helena até que amanhecesse, onde poderiam quebrar o caixão dela e expor o monstro à luz do sol, e Helena diz que foi um plano ardiloso, alterar a data da viagem, modificar o horário do relógio na estação de trem para dificultar os vassalos de perceberem o atraso e assim não se atentarem ao nascer do sol, seguindo esse plano, era esperado que tivessem até reduzido a velocidade do trem, mas Helena mexendo em seus ombros, diz que não sentiu naquela noite que o trem tivesse reduzido sua velocidade, talvez tenham esquecido disso em seu plano, mas de todo modo não faria diferença.
Helena explica que sua percepção do tempo é perfeita e sua inteligência superior à dos humanos, sabia exatamente quantos segundos haviam se passado desde o embarque, que agora eram 4 e 26 da manhã no horário de Budapeste e mesmo num dia tão próximo ao solstício de verão, o sol em Budapeste não deveria nascer antes das 4 e 47 da manhã e não antes das 5 e 47 da manhã em París. Ou seja, dependendo do quão perto de París elas estavam, isso deveria dar para Helena entre 21 e 81 minutos para matar Clarice, voltar até seu caixão e aguardar seus vassalos chegarem. Na pior das hipóteses (21 minutos), tempo mais do que o suficiente para tudo isso.
Clarice se ajoelha e pede perdão, pede para ser polpada, que ela trabalhava mesmo na ferroviária desde criança e que garantiam que ela não teria que fazer nada, só soltar os vagões e eles fariam o resto. Helena suspira e diz que sabe quando alguém tem ódio, ou medo:
A hora em que você contou sobre sua família, estava mentindo, e agora que implora por sua vida, também mente, mas afinal menina, você espera mesmo ganhar tanto tempo assim mentindo pra mim?
Clarice então sem se levantar, avança na direção de Helena e segura suas pernas com toda a força, nesse momento, Helena acha inusitado e inóquo, afinal, sequer mirou em sua cabeça ou coração, também não carregava armas, nem nada, o que esperava ali segurando suas pernas?
A reação veio em seguida, com o impacto que o trem recebeu, parece que os vagões soltos anteriormente, agora estavam colidindo com o trem, mas isso não era possível, pois esse vagão estava por último, e havia tido sua velocidade reduzida, ele não deveria ter atingido os vagões da frente.
Helena imediatamente tenta saltar, mas se vê presa por Clarice. Com um único golpe, despedaça o corpo frágil da moça e se prepara para saltar, mas tinha sido o atraso suficiente para o trem virar e descarrilhar, levando a uma reação em cadeia com os outros vagões, emprensando Helena entre os escombros.
Irritada com o ataque, Helena se levanta toda multilada, mas regenerando-se rapidamente até de seus ferimentos mais graves, e ergue parte da carroçaria do trem para sair dali e procurar seu caixão. Nesse momento, avista uma paisagem que sua memória reconhece imediatamente como fazendo parte do trajeto em sentido à Istambul junto ao raiar do sol no horizonte mais cedo do que ela podia esperar. Em uma expressão de derrota e satisfação diante os esforços daquela menina, Helena é transformada em cinzas e desfeita com o mais suave dos ventos.
Sobre o post
Sim, isso é um conto de ficção que tive uma inspiração súbita para escrever após terminar de ver a primeira temporada do anime Kimetsu no Yaiba (mais especificamente, o OVA Trem Infinito). No caso, a inspiração foi com vampiros, caçadores e ferrovias, mas o enrede é original. Agora algumas explicações que justificam os eventos do conto e porque ele está nesse blog de matemática.
O fato de Clarice ter solto os vagões de carga, foi parte do plano, visto que existia um desvio nos trilhos, que se encontravam na mesma rota pouco tempo depois. Quando ela soltou os vagões, esses continuaram na sua velocidade, enquanto ela reduziu a velocidade do último. Uma pessoa na ferrovia, mudou a direção na qual os vagões seguiram, fazendo com que percorressem uma distância maior, e mudando a direção novamente para que o último vagão, que estava mais lento do que os outros, fosse pela rota mais curta, mas agora na frente de todos os outros vagões. Com isso, foi apenas questão de tempo até que os demais vagões encontrassem o último, e começassem a colidir. Ganhando tempo para que o plano de expor Helena ao nascer do sol funcionasse.
Baseado na previsão para o dia 15/06/2021 pelo site sunrise-and-sunset.com, que é o período do ano no hemisfério norte em que os dias são mais longos, chegamos que no fuso-horário de Paris/Budapeste, o sol deveria nascer em Paris às 5h47, em Budapeste às 4h47 e em Istambul às 4h32. Isso faz com que a margem de segurança da Helena mesmo com sua perfeita percepção do tempo, estivesse atrasada em 15 minutos (quando Helena disse que na pior das hipóteses faltaria 21 minutos pro nascer do sol, faltava na verdade 6 minutos).
Assim, a derrota de Helena se deu pelo próprio movimento de rotação da Terra no qual Helena não considerou que pudessem estar viajando para o Leste em vez do Oeste. Isso explica também porque no plano de Clarice, não reduziram a velocidade da locomotiva para atrasar Helena de chegar em seu destino, pois era do interesse de Clarice que corressem com a locomotiva o máximo para o Leste quanto fosse possível.
Tentei criar um conto de modo que os caçadores não demonstrassem nenhum poder especial além da sua própria astúcia e do conhecimento científico, ao mesmo tempo que a vampira não fosse diretamente confrontada por armas ou itens, senão a própria luz do sol.
Crédito da imagem de capa à pedram ahmadi por Pixabay
Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):
SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Caça ao vampiro no Expresso do Oriente. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 5. Ed. 1. 1º semestre de 2021. Campinas, 18 abr. 2021. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/2831/. Acesso em: <data-de-hoje>.