Cerco à última Besta de Gévaudan

Em 1890 houve um inverno assolador na província de Gévaudan no centro-sul da França, que levou oito viajantes (Alberto, Bruno, Cássio, Diego, Eduardo, Francisco, Gabriel e Henrique) a buscarem abrigo num pequeno forte abandonado nas montanhas Margeride. Todos viajavam sozinhos e não se conheciam até o momento. Chegando no local rapidamente se mobilizaram para acender a lenha e encontrar mantimentos, que por curiosidade, estavam bem conservados apesar do local ter sinais de que fora atacado.

Estabilizados da nevasca, foram descansar, mas logo na primeira noite, Henrique foi atacado e desapareceu, deixando pedaços de seu corpo no local, parecendo que um grande animal como um urso o havia devorado.

Os sete remanscentes trancaram todo o forte e buscaram com armas pelo animal escondido. O forte não era grande o suficiente para que aquela criatura pudesse se esconder, sendo a hipótese mais provável de um urso que acordou da sua imbernação e após o ataque voltou para a floresta.

Contudo, na noite seguinte Gabriel foi morto pelo que parecia ser a mesma criatura, imediatamente buscaram aberturas no forte, de onde ela pudesse ter entrado, mas confirmaram que o local todo estava fechado e que aquele animal não estava ali dentro. Isso levou a uma conclusão terrível de que um dos seis seria o responsável pelas mortes.

A desconfiança mútua levou todos a buscarem se proteger dos outros, mas nessa noite ouve-se um disparo e Francisco foi morto. Seu corpo com repleto de dilacerações estava no local e a arma ainda firme em sua mão, parecia ter disparado contra o chão.

O medo seguia, todos buscavam se proteger sem confiar em ninguém mas também incapazes de deixar o forte em meio à nevasca. Na noite seguinte os cinco viajantes foram dormir com as armas preparadas, mas isso não adiantou, ouviram um disparo e Eduardo foi morto, seu corpo repleto de ferimentos estava no local e a arma ainda firme em sua mão, parecia ter disparado contra a parede.

Na manhã seguinte, Alberto chamou os restantes para o salão onde apresentou quatro estojos com pares de pistolas. Disse que todas estavam carregadas e que precisavam dar um fim naquele dilema antes que a Besta matasse a todos. Assim, como ninguém ali poderia provar de fato sua inocência, seria mais do que justo que votassemos apontando as pistolas para dois suspeitos de serem a Besta, e executaríamos assim o mais votado.

AlbertoBrunoCássioDiego
AlbertoXX
BrunoXX
CássioXX
DiegoXX
Votos1232

Após a votação, estava decidido que Cássio seria executado.

Então Diego sem mudar a mira, puxa seus dois gatilhos. Largando em seguida as armas e avançando na direção de Alberto.

O corpo de Diego começava a se modificar, seus braços cresciam, seu rosto se alongava como um focinho de lobo com seus dentes saltando da boca e seus olhos mudaram para uma cor vermelho sangue.

Alberto se viu totalmente paralisado diante aquela situação, não conseguindo falar ou mover seus braços para apontar as armas na direção da Besta, que disse com uma voz que cheirava a morte e parecia oriunda das profundezas:

Sed quid humana infortunii, si satis esset in suffragium mihi in meus exitium
(em latim significa: Mas que azar humano, bastaria um voto se eu contra mim, para minha ruína)

A criatura se aproximava de Alberto, quando Cássio ileso, a surpreende disparando com as duas pistolas a queima-roupa, derrubando-a. Alberto e Cássio disparam mais vezes contra a Besta e depois a queimam. Após eliminarem a criatura, sepultam Bruno que morreu no momento em que a Besta sob a forma de Diego, atirou.

Sobre o post

Isso é um conto de ficção baseado na história da Besta de Gévaudan, que supostamente foi morta por uma bala de prata benzida, a qual veio se incorporar no mito grego do Lobisomen. Contudo, a ideia para essa dinâmica de votos, veio do jogo de dedução social conhecido por “Lobisomen” (ou “Máfia”, “Assassino”, “Cidade Dorme”), proposto por Dimitry Davidoff em 1986.

Embora hajam muitas variações, seu conflito tradicionalmente é centrado numa minoria informada (os Lobisomens), contra uma maioria desinformada (os Aldeões). Esses papéis (Lobisomens e Aldeões) são atribuídos secretamente aos jogadores no início do jogo, cada Aldeão conhece apenas seu próprio papel, e os Lobisomens conhecem uns aos outros. Assim, durante a noite, os Lobisomens atacam os Aldeões, e durante o dia ambos os grupos (Aldeões e Lobisomens) se reúnem para votar em quem consideram suspeitos, e caso alguém receba a maioria dos votos, é eliminado. O objetivo dos Aldeões é que todos os Lobisomens sejam eliminados, enquanto o objetivo dos Lobisomens é que o número de Aldeões e Lobisomens seja igual (garantindo assim que não haverá maioria dos votos contra eles).

Nesse conto, o sistema de votação por pistolas foi inspirado na variação do jogo conhecida por “Lobisomen Incerto”, proposta pelo brasileiro Luis Fernando Dorelli de Abreu, como desafio para o Concurso Internacional de Programação Universitária (International Collegiate Programming Contest), na Regional da América Latina em 2016. Nela temos apenas um jogador no papel de Lobisomen, enquanto todos os demais ocupam o papel de Aldeões. O jogo começa com todos os jogadores acusando dois suspeitos, e então ao final dessas escolhas, o Lobisomen se revela. Nesse momento todos os Aldeões podem escolher entre os dois que acusaram inicialmente, para qual deles será seu voto. Por fim, o Lobisomen pode escolher entre os dois que acusou inicialmente, para qual deles será seu voto. Se o Lobisomen receber a maioria dos votos, ele perde. Se o Lobisomen receber uma quantidade igual ou menor de votos que outro Aldeão, ele vence.

Para deixar claro alguns pontos, a Besta (ou o Lobisomen) nesse conto conseguia paralisar quase totalmente um alvo, por isso as pessoas mesmo armadas, quando atacadas, conseguiam se mexer no máximo o suficiente para puxar o gatilho, não sendo possível apontar para o alvo.

A Besta sabia que se tivessem três armas apontadas para ela, poderia disparar em duas pessoas e usar seu poder para paralisar a terceira. Mas isso não seria o suficiente para impedí-la de puxar o gatilho. Por isso que ela tem por certa a vitória no momento que percebe terem apenas duas armas apontadas para ela.

Alberto sabia que o comportamento da Besta seria independente da votação, ela atiraria em dois viajantes, dando preferência para aqueles que apontassem pra ela. Se a Besta não fosse a mais votada (recebeu 0, 1 ou 2 votos), ela perceberia a vitória mediante aquela situação, eliminando com os tiros dois dos viajantes e paralisando o terceiro. Se a Besta fosse a mais votada (recebesse 3 votos), ela saberia que seria executada, de todo modo atiraria em dois dos viajantes e tentaria paralisar o terceiro antes que este disparasse contra ela.

Contudo, a falha da Besta foi assumir como verdade, a afirmação inicial de Alberto, sobre todas as armas estarem carregadas. Sendo, que Alberto carregou apenas uma arma de cada um dos pares distribuídos nos estojos. No momento que a Besta se viu na vitória (baseada em uma premissa inicial que era falsa), ela disparou com ambas as pistolas, acreditando ter eliminado Bruno e Cássio que apontavam para ela. Mas na verdade, apenas um dos dois foi morto, enquanto o outro permaneceu ileso, livre do poder paralisante da criatura, com uma das duas armas carregadas e a certeza sobre seu alvo.

Crédito da imagem de capa a Alexander Lesnitsky por Pixabay


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Cerco à última Besta de Gévaudan. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 5. Ed. 1. 1º semestre de 2021. Campinas, 20 abr. 2021. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/2850/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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