Texto escrito por Ana de Medeiros Arnt e Victor Guida de Freitas
Várias matérias de jornais e revistas (e até em mídias sociais) quando falam sobre descobertas e curiosidades da Arqueologia usam fotos de esqueletos humanos e múmias, chamando a atenção do público. Mas, por mais interessante que sejam, há uma pergunta importante a fazer:
O uso dessas imagens é correto?
Bom, depende.
Ainda que não existam leis sobre o assunto, há diversas questões éticas sobre o compartilhamento de fotos de remanescentes humanos que vêm ganhando força nos últimos anos. E abordaremos algumas delas aqui nesse post de hoje!
Uma questão principal é: esqueletos e múmias são o que sobrou fisicamente de pessoas que viveram no passado. Isto quer dizer que não são apenas “objetos achados que nos falam do passado”. São o passado de pessoas que pertencem a culturas específicas. O estudo arqueológico e histórico que envolve culturas, especialmente a partir do corpo ou partes de corpos remanescentes precisa respeitar estas culturas e suas compreensões de vida e morte, não ferindo, dessa forma, sua existência, costumes e tradições.
Pode parecer bobagem ou detalhe. Mas todas as sociedades humanas possuem rituais, mitos e tabus que envolvem a morte e os processos de morte. E estes processos envolvem crenças religiosas, costumes familiares de respeito e tradições que são mantidas e passadas ao longo de gerações.
Estudar populações a partir dos seus remanescentes humanos envolve (ou deveria envolver) cuidar de todos os aspectos culturais, para não ultrajar estas populações e culturas – mesmo que elas não mais existam (em caso de sociedades que foram extintas, por exemplo). Portanto, o que estamos tentando dizer aqui é que estes corpos, ou suas partes remanescentes, devem ser tratados com o mesmo respeito e dignidade que as pessoas vivas, incluindo o respeito pelas questões culturais dos povos a que pertencem.
O que isto tem a ver com as fotografias?
Aqui adentramos um cuidado que diz respeito à ética e responsabilidade não apenas com o manuseio destes corpos, durante a pesquisa, mas sua exposição ao comunicar uma pesquisa realizada. O uso das fotos deve ser sempre justificado, uma vez que estamos expondo corpos de pessoas que já faleceram. O propósito dessa exposição não deve ser feito sensacionalista, ou a partir de narrativas de romantização ou objetificação dos remanescentes.
Como assim? Ora, a exposição a partir do sensacionalismo diz mais respeito ao possível choque de cultura, a partir de um olhar para uma cultura diferente da nossa, que acaba inserindo valores nossos como superiores, racionais ou melhores, por exemplo. A objetificação também tem uma perspectiva similar. Torna a cultura estudada como “o outro”, que pode ser tratada não como cultura humana, mas como coisa. Uma cultura humana estudada a partir da “objetificação” sempre insere valores sociais hierarquizantes. Ou seja, colocando uma sociedade (a nossa, que seria civilizada, correta, superior) que tem a liberdade e o direito de estudar a outra sociedade (a outra, inferior, selvagem, antiga, pouco tecnológica, etc.).
No fundo, este modo de perceber culturas estudadas dentro do contexto arqueológico, antropológico e histórico, se vincula também ao modo como a ciência vem se estabelecendo ao longo dos séculos. Isto é, dentro de uma sociedade que é eurocêntrica e percebe grande parte das sociedades e civilizações que vivem fora de seus padrões civilizatórios como inferiores, possuindo sentidos e racionalidades menores (ou até inexistentes), que as colocam como culturas e sociedades que podem ser objeto da ciência – sem que se pense nas relações de responsabilidade ou ética sobre isso.
Ao lidar com diferentes culturas é preciso responsabilidade
Sempre que possível, é importante que a exposição de corpos e pertences de culturas e sociedades pesquisadas ganhem a permissão para tal exposição. A permissão deve ser concedida pelos descendentes, sejam familiares vivos ou grupo cultural.
Todavia, os cuidados não param por aí. O contexto deve ser identificável na foto ou exposição. Isto é, o sítio arqueológico em que se encontra/foi encontrado, a que grupo cultural pertence, etc. Colocar informações complementares em legenda ou na matéria também ajuda, como quem encontrou e a que pesquisa faz parte. Com isto, estamos inserindo não apenas a exposição de um corpo, pelo corpo em si, mas informações que trazem àquele corpo sua história, dentro de um panorama de respeito e compreensão de costumes da sociedade.
Além disso, outra questão relevante gira em torno da diversidade de formas que os grupos culturais existentes lidam e enxergam a morte e seus mortos. Por exemplo, para muitos grupos, a exposição de remanescentes humanos (incluindo fotos) de seus membros é dolorosa e prolonga o luto. Neste caso, as autorizações para exposição devem lidar também com a compreensão dos modos de vivenciar os lutos, noções possíveis de vida após à morte, vínculos com questões sagradas, dentre outros elementos.
Percebam que pouco importa, neste caso, o que pesquisadores compreendem sobre a vida após a morte e como lidam com estes rituais. Não se trata dos pesquisadores – se trata das pessoas e das culturas que estão envolvidas na pesquisa e o respeito a estas crenças e compreensões de suas culturas. A produção de conhecimento deveria partir de relações de respeito, ao se propor de forma ética.
A exposição de remanescentes humanos em mídias sociais
Já em relação às mídias sociais, aqui há um direcionamento bem específico – embora pouco discutido fora da própria arqueologia. Sendo bem direto e pragmático, não se recomenda a divulgação de imagens de remanescentes humanos.
Pode parecer radical e pode soar censura. Mas há uma explicação, vamos lá! Quando colocadas nessas plataformas, dificilmente se mantém o controle sobre quem tem acesso a essas fotos e as informações que circularão. Essa superexposição possibilita o uso indiscriminado das fotografias, o que pode levar a reutilização das imagens em situações ofensivas (modificação da imagem para criação de memes e afins, por exemplo). Aqui estamos retomando alguns conceitos já apresentados neste texto, que se vinculam à ética sobre rituais, crenças e tabus sobre a vida e a morte destas culturas.
Isto gera mais desinformação e ultraje sobre estas culturas, do que possíveis aprendizados em si. Falar sobre culturas diferentes da nossa, como parte de ideais de divulgação científica, devem trazer, junto, noções de ética e responsabilidade.
A comunicação científica também apresenta conceitos sobre como se faz ciência e porque se faz ciência. Além disso, estão presentes na apresentação de dados, para públicos externos, questões de ética sobre relações humanas e valores sociais. Ao ter compreensão disto, faz-se necessário que a comunicação seja pensada como uma ferramenta de compreensão da diversidade humana e suas diferentes culturas. Ou seja, sem objetificação ou sensacionalismo, sem a produção de hierarquias sociais que possibilitem a inferiorização de populações diferentes de quem está pesquisando.
Finalizando
A seguir, daremos algumas diretrizes diretas, em síntese, sobre imagens com remanescentes humanos. Lembrando que o ideal é não expor imagens de remanescentes humanos, principalmente na internet, seja em matérias de jornais ou mídias digitais. Caso cogite fazê-lo, é fundamental considerar:
a) quem terá acesso a essas imagens;
b) qual o propósito da utilização dessas imagens;
c) como essas imagens serão usadas;
d) se há permissão de descendentes para expor as imagens;
e) o contexto ao qual os remanescentes humanos fotografados estão associados;
f) onde essas imagens serão expostas (evento fechado, matérias jornalísticas, publicações acadêmicas, exposições, etc); entre outras questões.
Por fim, lembre-se sempre que conteúdos de ciência, produzidos dentro da perspectiva da divulgação científica, devem ter como objetivo pensar o conhecimento como ferramenta de compreensão do mundo social e natural. A compreensão destes conhecimentos e modos de produzir estes conhecimentos, academicamente, também dá condições para tomarmos decisões éticas neste mesmo mundo que estamos estudando e vivenciando. O ponto levantado hoje é um dos elementos que nos possibilita pensar sobre a responsabilidade da comunicação científica.
E é fundamental para consolidarmos uma ciência e uma comunicação da ciência cada vez mais ética e empática em sua rotina diária.
Para Saber mais
Batista, Maria Manuel Baptista (2009) Estudos culturais: o quê e o como da investigação, Carnets [Online], Première Série – 1 Numéro Spécial.
British Association of Biological Anthropology and Osteoarchaeology (BABAO) (2019) Recommendations on the ethical issues surrounding 2D and 3D digital imaging of human remains.
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Santos, Emilly Cristine dos (2019) Remanescentes humanos no contexto arqueológico: dilemas sobre repatriação de vestígios sensíveis, Revista de Arqueologia 32(1):69-83.
Girotto Junior, Gildo (2021) Ensino de ciências descolonizado: espaço de todos os saberes PEmCie, Blogs de Ciência da Unicamp.
Hall, Stuart (1997) A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo Educação & Realidade, 22(2)
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Squires, Kirsty, & García-Mancuso, Rocío (2021) Desafíos éticos asociados al estudio y tratamiento de restos humanos en las ciencias antropológicas en el siglo XXI Revista argentina de antropología biológica, 23(2), 034.
Ulguim, Priscilla (2018) Digital remains made public: sharing the dead online and our future digital mortuary landscape, Online Journal in Public Archaeology Special Volume 3:153-176.
Os autores
Ana de Medeiros Arnt é bióloga, doutora em educação, pesquisadora no grupo Cultura, Educação e Divulgação Científicas (CeDiCiências), professora no Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da Unicamp.
Victor Guida de Freitas é Bioarqueólogo e divulgador científico no grupo “Arqueologia e Pré-História”. Mestre em Arqueologia pelo Museu Nacional/UFRJ e Doutorando em Arqueologia na mesma instituição. No mestrado, estudou a dieta e saúde oral de populações pré-coloniais costeiras conhecidas como “sambaquieiras”. No doutorado, atua no estudo de transformações induzidas pelo fogo nas múmias humanas egípcias do acervo do Museu Nacional e no potencial bioantropológico desses remanescentes.