A ciência pelos olhos da Profa. Dra. Yara Costa Netto Muniz

Publicado por Bruna Bertol em

Por Msc. Bruna Bertol

Profa. Dra. Yara Muniz. Arquivo Pessoal.

É com muita alegria e satisfação que hoje, na minha estreia como colaboradora do Blog, trago para vocês um pouco sobre a trajetória e a visão da Professora universitária, bióloga e geneticista Dra. Yara Costa Netto Muniz.

Yara graduou-se em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2000 e obteve seus títulos de Mestrado (2003) e Doutorado (2008) pelo Programa de Pós-Graduação em Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) – Universidade de São Paulo (USP). Posteriormente, realizou 3 pós-doutorados: no Brasil pela FMRP/USP; na França pela FMRP-USP em parceria com o Service de Recherches em Hémato-Immunologie (CEA) e, finalmente, de volta ao Brasil e à instituição onde tudo começou, seu terceiro pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e do Desenvolvimento (CCB/UFSC), o que lhe abriu portas para ingressar na universidade como docente após aprovação em concurso público. Foi nesta época do pós-doutorado na UFSC em que tive o prazer de conhecê-la, há cerca de 8 anos atrás. Talvez ela não saiba, mas a professora Yara foi e ainda é uma grande inspiração para mim, e teve uma influência enorme na minha carreira científica ao me motivar a buscar por um mestrado na FMRP-USP. Por esta e demais razões é que hoje tenho o título de mestrado e estou atualmente no Doutorado pela mesma instituição.

Atualmente professora efetiva na UFSC desde setembro de 2013 pelo Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética (BEG/CCB/UFSC), Yara leciona para os cursos de Graduação em Ciências Biológicas (Licenciatura, bacharelado e EaD) e Medicina, porém, já lecionou para os cursos de Odontologia, Psicologia e Nutrição. É credenciada em dois programas de Pós-graduação (1) Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-graduação em Biologia Celular e do Desenvolvimento (PPGBCD) e (2) Mestrado Profissional em Ensino de Biologia em Rede Nacional (PROFBio). Já orientou e orienta atualmente alunos de doutorado, mestrado, iniciação científica e Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), além de já ter sido escolhida como Professora Homenageada da Turma 18-1 do Curso de Ciências Biológicas – Licenciatura Noturno.

É como muito entusiasmo que Professora Yara carinhosamente compartilha conosco suas experiências e opiniões sobre ciência, mulheres e o ambiente de trabalho, inspirações, dificuldades e carreira. Confira abaixo seus comentários na íntegra.

Cientista – era isso que você queria ser quando crescesse?

Demorei muito tempo para começar a pensar o que eu queria ser quando crescesse. Fui uma criança muito livre e que aproveitou muito a infância. Com 10 anos eu comecei a pensar no que eu não queria ser e que se resumia em “não quero fazer coisas chatas quando eu crescer”. Por volta dos 14 anos pensei que seria muito legal ser professora. Eu via essa profissão com algo muito especial, eu amava o que meus professores eram capazes de me fazer descobrir. Eu achava isso sensacional! E, também cheguei a conclusão que a vida de professor não era constituída por dias iguais e, portanto, não seria chata. Biologia foi um acaso na minha vida. Foi muito mais uma escolha por exclusão e probabilidades empíricas do que uma escolha emocional. Eu tinha 16 anos e escolhi na fila do banco, do último dia / minuto, para fazer a inscrição para o vestibular (a inscrição não era on-line, obviamente). Foi quando comecei a faculdade que a minha vida mudou, parece que amadureci da noite para o dia, virou uma escolha racional e emocional, decidi que eu seria o melhor que eu poderia ser, pois aquela escolha seria eu para o resto da vida. Dediquei-me e investi na minha formação, fui a melhor estudante que eu poderia ser, participei de dezenas de congressos, organização de inúmeros eventos, discussões. Entrei para o PET (na época Programa Especial de Treinamento, hoje Programa de Educação tutorial), e recebia uma bolsa para dedicação exclusiva à graduação, com obrigação de atingir o tripé, Educação, Pesquisa e Extensão, universitário. Assim, no meu primeiro ano busquei estágio de pesquisa em laboratório e descobri que o fazer ciência era um caminho que combinava muito comigo. Sendo assim, eu só soube realmente o que eu queria ser, na universidade. Foi quando eu decidi investir todas as minhas forças para ser Pesquisadora e Professora, dentro de uma instituição de ensino público. E hoje eu sou o que eu decidi ser e estou onde exatamente decidi estar, e é isso que conto aos meus estudantes no primeiro dia de aula. Não foi e não é fácil, mas a gente tem que lutar todos os dias para ser o que desejamos ser. E eu sou e estou realmente muito feliz, e me apego nessa ideia de ser e estar onde sonhei, para fazer o melhor e lutar pela manutenção da pesquisa, educação e extensão no nosso país, dentro das instituições universitárias. Pois ter tido a oportunidade de estudar em uma instituição que promovia essa ligação com a pesquisa, e condições para dedicar-me, com certeza me fez ver um mundo muito maior, e foi muito impactante na minha formação.

Algum cientista ou descoberta científica a inspirou na escolha dessa carreira?

As minhas verdadeiras inspirações, são as pessoas com quem eu convivi. Começando pelos meus pais (Elza e Milton) que são biólogos, geneticistas e professores universitários. E que não me influenciaram de forma direta a seguir os seus passos, mas sempre foi nítido que amavam o que eram e onde estavam. Minha orientadora de TCC, ProfaDraIlíada Rainha de Souza, que foi quem me apresentou a genética molecular, me incentivou fortemente e me ajudou muito a seguir esse caminho (e assim o faz até hoje!). Durante minha infância e adolescência nenhum cientista especial me chamou a atenção. Mas eu adorava as minhas aulas de história, pois era onde eu aprendia a descobrir explicações para as realidades expostas. E essa busca de explicações, sempre foi algo que me fascinava. Lia com alegria enciclopédias, na quinta série li um volume inteiro sobre Biologia (já tinha escolhido as ciências biológicas e não sabia), mas o projeto genoma humano, que acontecia enquanto eu fazia graduação, me fascinou e essa ideia me fez acreditar que a genética seria ainda mais fascinante nos anos posteriores. E está sendo! E um pesquisador me chamou muita atenção, Dr. Luigi Luca Cavalli Sforza, e seus trabalhos de genética de populações, que mostram que a diversidade genética entre população é similar a diversidade dentro de uma mesma população. Essas demonstrações realmente me impactaram. Além da ideia de que podemos saber muito sobre populações (humanas ou não) estudante o DNA é algo que para mim é simplesmente magnífico! Não é o que eu faço hoje, mas é o que me fascina. Nos dias de hoje muitos trabalhos científicos me inspiram, mas cientistas que me inspiram no dia a dia, são o que eu conheço e estão ou que já estiveram ao meu lado, que ajudam a carregar o piano. São esses próximos que me motivam, me dão força e me inspiram.

De que forma sua trajetória como cientista começou e como se encontra atualmente? Existem dificuldades? 

Minha formação foi em genética de populações humanas, é a área que eu carrego no coração. Hoje trabalho com associação genética com doenças autoimunes e câncer. Não foi uma escolha, também foi um acaso, mas também é uma área que gosto muito. Quando terminei meu doutorado tive uma oportunidade de pós-doutorado com um projeto de associação de polimorfismos de um gene e câncer. E quando passei no concurso, essa era a linha de pesquisa mais promissora, pois eu tinha acesso a amostras e consegui financiamento. Em quase 6 anos de pesquisa dentro da instituição não gastei mais do que 50.000 reais em equipamentos e insumos. Escrevi um projeto, foi aprovado com cortes, recebi o $ com atraso de mais de ano, tive muita dificuldade para gastar o dinheiro recebido e, ao final, passei pela prestação de contas mais difícil da minha vida, que me fez desejar nunca mais passar por isso (mas obviamente não posso me dar a esse luxo. Projetos eu escrevi, e escrevo, mas apesar do mérito, a resposta é “não temos dinheiro!”). E esse dinheiro não é gasto – é investimento em pesquisa e formação de pessoas. Hoje a verba disponível em 2019 é de 200 reais por aluno de Pós-graduação por semestre.

No meu grupo de pesquisa avaliamos variações genéticas entre indivíduos que possam explicar a suscetibilidade, ou não, às doenças. As principais variações que estudamos no momento são em um gene que produz uma proteína que é capaz de inibir a resposta imunológica. Há situações que essa inibição é importante, pois permite a gravidez, diminuí os sintomas de doenças autoimunes e reduz quadros inflamatórios. Porém há outras situações que essa inibição não é boa, como por exemplo no controle da multiplicação de células cancerígenas e desenvolvimento de infecções virais. E entender como diferenças entre os indivíduos podem modificar a regulação da produção dessa (e de outras) moléculas imunorreguladoras é muito importante, podendo gerar resultados que permitam diagnóstico e prognósticos mais precisos, tratamentos mais eficazes, maior sobrevida e qualidade de vida.

Você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher?

Esse é um assunto muito delicado. E tenho refletido muito sobre isso. Talvez seja a pergunta mais difícil de responder porque é difícil aceitar que isso aconteça. A não aceitação leva a negação, e, portanto, é muito complicado identificar essas dificuldades no dia-a-dia, pela negação e pela aceitação social. Desde pequena eu nunca deixei de fazer algo por ser mulher. E nunca permiti ser podada em algo por esse motivo. Muito cedo percebi que ser mulher não era tão legal e eu realmente desejei ter sido menino (e às vezes ainda desejo). Eu me sentia livre, mas percebia que se eu fosse menino eu seria bem mais. Por muito tempo, quando me faziam perguntas deste tipo eu respondia que o fato de eu ser mulher nunca tinha gerado dificuldade na minha vida, mas… (sempre seguia com um porém) eu explicava que eu tinha uma vida de certa forma privilegiada e que embora eu não sentisse em mim, sentia por várias outras que sofreram e sofrem muitas dificuldades, simplesmente pelo fato de serem mulheres.

Eu sempre percebi que o mundo de todos não era igual ao meu mundo. Sei que fui privilegiada pela minha situação familiar, sócio-econômica e racial. Sou mulher, classe-média, branca, com pais professores universitários que fizeram de tudo para eu estudar, tive excelente escola, fui incentivada a ler muitos livros, a fazer pesquisa, inglês, esportes, tive inúmeras oportunidades culturais e de lazer e muito apoio emocional e financeiro para continuar minha formação, mesmo após a graduação (só consegui o emprego tão almejado na universidade, 13 anos após minha formatura). Sendo assim, eu cheguei aonde cheguei com muito esforço, sim, não foi nada fácil, mas sei que larguei na frente de muita gente. Outros não chegaram academicamente nem na metade do meu caminho, não por incapacidade, mas porque tiveram muito mais barreiras para ultrapassar do que eu tive. E sei que ser mulher é uma das barreiras que precisam ser vencidas, sim. Hoje eu sei que mesmo no meu mundo, e que eu negava (e talvez ainda negue) houve sim, dificuldades e impedimentos. Durante minha Pós-Graduação, foi quando essa percepção foi muito forte, tomei conhecimento de inúmeros casos de desmerecimento feminino. Ou não aconteciam comigo diretamente, ou aconteciam, mas eram muitos leves e eu não percebia. Desde pequena aprendemos a conviver com comentários e ações que diferenciam pessoas pelo seu gênero, e muitas destas diferenciações de tão comuns, passam a ser consideradas normais e até corretas. Mas não são. Foi quando eu me inseri no mercado de trabalho como profissional, primeiro em escolas e mais recentemente na universidade, é que eu realmente percebi tratamentos profissionais realmente muito diferenciados.

Escutei de diretora que eu deveria tomar cuidado com as minhas ações e falas, pois a gente (mulher) tem que saber o nosso lugar e dar exemplo as nossas alunas. Dentro da universidade percebo muitas vezes “mansplaining” (termo em inglês que se refere a situação em que um homem comenta ou explica algo a uma mulher de uma maneira condescendente, confiante, e, muitas vezes, imprecisa ou de forma simplista) comigo e com colegas. Em um evento formal fui a única a ser apresentada pelo meu primeiro nome (nada contra), no entanto, todos os demais (homens) tiveram sua titulação (exatamente igual a minha) e nomes completos apresentados. Rapidamente percebi que eu e outras mulheres somos interrompidas com muito mais frequência durante uma fala. Fui tratada de forma bastante agressiva por um posicionamento, o que não ocorreu com uma pessoa masculina com o mesmo posicionamento, no mesmo momento. Sendo eu responsável por uma determinada função administrativa, já recebi e-mail de prestador de serviço dizendo que trataria com outro que ia saber responder suas dúvidas (obviamente homem e sem me perguntar o que gostaria de saber). Assim, enumerando esses poucos casos (há muitos outros), a minha resposta só pode ser sim a sua pergunta. E percebo que tenho dificuldades até hoje de percebê-las, a maior parte dos eventos citados foram outras pessoas que perceberam por mim. É infinitamente mais fácil identificar essas ações preconceituosas com a outra, do que comigo mesma. Sou feminista, tenho um discurso feminista e sei a luta diária que é para não negar e, principalmente, não naturalizar ações machistas. Mas ainda tenho dificuldades de aceitar que acontecem comigo, e nesse sentido tenho dificuldades de agir quando estou em situações onde sou discriminada por ser mulher. A luta é diária.

Descreva, em poucas palavras, a ciência pelos olhos da Profa. Dra. Yara Costa Netto Muniz.

A ciência pelos meus olhos é a coisa mais linda e intrigante que a humanidade pode fazer! Tenho uma visão idealista da ciência pura, do método científico, da busca de resposta para todas as perguntas, da formulação de novas perguntas, da possibilidade de contestação, do conhecimento pelo conhecimento. A não verdade absoluta é talvez a o que mais me aproxima da ciência. Essa possibilidade infinita. Essa ideia que eu tenho de que mais importante que as respostas geradas pelos resultados, são as novas perguntas criadas. Essa constante movimentação e mudança. A ideia de que a confirmação ou a negação de uma hipótese não é o fim. Os resultados, geram reflexões, que geram discussões, que geram explicações e novas questões. E esses mesmos resultados posteriormente podem geram outras explicações. E assim vamos gerando conhecimento.

No entanto, sei que a ciência é uma ação humana. E em sendo uma ação humana, ela é uma ação política. E a ciência é uma ação muito poderosa, e por isso sofre intenso controle. A forma de controle sobre essa ação diz muito sobre a sociedade, sobre seus princípios e sua moral. Por outro lado, eu também acredito que, por meio da ciência, podemos modificar a sociedade. Não como um molde. Mas como uma forma de fazer ver além, perceber os riscos da homogeneidade de pensamento e ações, aprender a discutir, aprender a ouvir e ver coisas diferentes, a contestar e entender que as coisas mudam e mudam com ações.

Agradeço imensamente à Profa. Yara pela oportunidade de entrevistá-la. É um prazer enorme divulgar um pouco do seu trabalho e dar visibilidade para mulheres cientistas com tanta paixão e dedicação, não só pela ciência, mas pela educação brasileira.


Bruna Bertol

Possui graduação em Farmácia (2014) e mestrado (2016) em Imunologia Básica e Aplicada pela USP de Ribeirão Preto, onde cursa seu doutorado. Em 2019 realizou 1 ano de estágio sanduíche na Universidade do Colorado, Anschutz Medical Campus – Aurora, CO, USA. Trabalha com imunologia tumoral e imunoterapia. Acredita na educação como instrumento de emancipação feminina e transformação social.

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