A ciência pelos olhos da Profª. Drª. Lee Niswander

Publicado por Giovana Maria Breda Veronezi em

A Profa. Dra. Lee Niswander. Arquivo Pessoal.

Na entrevista de hoje que trago para o blog Ciência Pelos Olhos Delas, eu tive o prazer de conversar com um dos maiores nomes da área da Biologia do Desenvolvimento, a Profa. Dra. Lee Niswander.

A Dra. Niswander é Professora Pesquisadora e Chefe do Departamento de Biologia Molecular, Celular e do Desenvolvimento na Universidade do Colorado – Boulder. Ela formou-se em Química pela mesma instituição e obteve seu Mestrado em Bioquímica e Genética na Universidade do Colorado – Ciências da Saúde.

Dra. Niswander em Snowbird, Utah, entre membros atuais e passados do seu laboratório quando se tornou Presidente da Sociedade da Biologia do Desenvolvimento. Arquivo pessoal.

Em seguida, ela realizou o Doutorado em Genética na Universidade Case Western Reserve em Cleveland, Ohio, e Pós-doutorado em Biologia do Desenvolvimento na Universidade da Califórnia – São Francisco.

Tornou-se Pesquisadora contratada do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center e Professora da Escola de Medicina da Universidade de Cornell, em Nova York. Ela então retornou para o Colorado, onde assumiu o cargo de Chefe da Seção de Biologia do Desenvolvimento em Pediatria, na Escola de Medicina da Universidade do Colorado e foi Presidente da Sociedade da Biologia do Desenvolvimento, antes de sua posição atual.

A Dra. Niswander vem realizando extensa pesquisa sobre as bases moleculares de processos fundamentais do desenvolvimento e principais defeitos congênitos em humanos. Atualmente, o foco do laboratório que ela coordena está no estudo de defeitos congênitos originários do mal-fechamento do tubo neural, como a espinha bífida.

Laboratório Iluminado: A Dra. Niswander e membros do seu laboratório no Hotel Stanley em Estes Park, Colorado, onde “O Iluminado” foi escrito por Stephen King. As setas vermelhas marcam os “fantasmas” ao redor. Arquivo pessoal.

Devido às limitações da pandemia da COVID-19, nós marcamos um encontro virtual. Eu estava empolgada com a oportunidade, e ao mesmo tempo um pouco nervosa por ser a primeira vez em que conduziria uma entrevista “pessoalmente”.

Ela me recebeu em seu escritório, para o qual ela voltou pela primeira vez em alguns meses, com um sorriso acolhedor e muita simpatia. Meu nervosismo passou rapidamente, dando espaço para uma conversa muito agradável e inspiradora que tenho a alegria de compartilhar aqui com vocês.

A entrevista foi concedida em inglês. A versão não traduzida está também disponível ao final, na página 2.

Cientista – era isso que você queria ser quando crescer?

Eu acho que sim, mas um tipo diferente de cientista. Quando eu estava na 7a série, eu queria muito ser arqueóloga. Eu ia no quintal fazer escavações e coisas assim. Mais tarde eu pensei em ser arquiteta e ainda amo paisagismo.

Quando eu estava na faculdade, na Universidade do Colorado – Boulder, eu cursava química e trabalhava em um laboratório de química fazendo pesquisa. Mesmo então eu não fazia ideia de que eu poderia ser mais do que técnica, apesar de amar ciência e saber que eu era muito boa nisso.  Como não havia referência de mulheres nessa profissão, eu não imaginava que poderia fazer isso como uma carreira.

Não foi até eu conhecer o Dick [Prof. Dr. Richard E. Davis, Professor Pesquisador na Universidade do Colorado – Anschutz e marido da Dra. Niswander] que eu tive essa realização. Eu era técnica e ele pós-doutorando e ele me perguntou “Por que você não faz pós-graduação?” no que eu indaguei: “Eu posso fazer pós-graduação?”

Inicialmente eu pensei que gostaria de fazer medicina e eu me lembro quando falei para a minha mãe sobre isso. Agora ela se sente muito mal por isso, mas na época ela me aconselhou que eu me tornasse enfermeira em vez de médica. Mas o Dick realmente foi quem me empurrou para a pós-graduação e eu pensei ok, acho que eu poderia fazer isso.

Algum cientista ou descoberta científica a inspirou na escolha dessa carreira? Ou mesmo quando você queria ser arqueóloga, o que a fez pensar nisso?

Eu nem me lembro por que eu pensei que seria legal ser arqueóloga, mas de alguma maneira eu me interessei por isso. Mais tarde, a escolha foi mais relacionada a que área de pesquisa eu gostaria de fazer que realmente me inspirava, e isso foi um pouco aleatório.

Eu comecei minha pós graduação na verdade na Universidade do Colorado – Anschutz. Não se chamava Anschutz na época mas Universidade do Colorado – Ciências da Saúde, e eu estava no laboratório do Bob Sclafani. Dick estava vendo de se mudar, ele havia recebido algumas outras propostas de emprego, e nós fomos para a Universidade Case Western Reserve em Cleveland. Eu acabei então fazendo o Mestrado com Bob. Quando me mudei para Cleveland, estava pensando em que tópico eu realmente queria explorar.

Eu tinha sido aceita no programa de Doutorado em Biologia Molecular mas também havia entrado no programa de Doutorado em Biologia do Desenvolvimento, e a decisão entre os dois foi bem aleatória. Foi algo como “Eu sei Biologia Molecular, eu já trabalhei com isso, eu não sei nada sobre Biologia do Desenvolvimento, eu vou fazer isso!”.

Então eu fiz eu me tornei totalmente inspirada. E há muitas mulheres, maravilhosas mulheres cientistas na área de Biologia do Desenvolvimento. Eu diria que se você nomear os top 20 pesquisadores em Biologia do Desenvolvimento, uma proporção enorme destes seria de mulheres, na verdade.

Eu não sei por que esse meio fomentou tantas mulheres cientistas, mas assim o fez e eu pude conhecer muitas destas grandes mulheres cientistas proeminentes desde muito cedo no meu doutorado.

Meu orientador era um cientista homem, Terry Magnuson, e ele era maravilhoso e conhecia todo mundo. Ele me apresentou para muitas pessoas na área, com quem fiz amizade, mesmo quando eu era essa aluna de doutorado bem iniciante.

Estes cientistas eram proeminentes mas o campo era bem pequeno na época e eu encontrei o meu espaço. Então no geral foi tudo devido ao meu orientador ser uma pessoa e cientista magníficos e também todas essas outras grandes mulheres cientistas que me incentivaram ao longo do caminho.

Você mencionou a alta presença de mulheres na área e é notável para mim também como no seu próprio laboratório você orientou e ainda orienta muitas mulheres. Você sente que, desde que você começou seu laboratório, sempre houveram mulheres interessadas na sua linha de pesquisa ou você sente que isso foi algo que cresceu ao longo do tempo?

Não, tem sido bem consistente ao longo do tempo que nós tendemos a ter mais mulheres do que homens. Sempre foi praticamente dividido entre alunos de doutorado e pós-doutorado, mas dentre essa mistura 60% sempre tende a ser mulheres.

Eu particularmente já pensei muito sobre isso, por que a Biologia do Desenvolvimento ressoou comigo? É a área? Sou eu? Eu acho que provavelmente é uma combinação de ambos, e ter grandes mulheres como modelos profissionais.

Para mim, a Biologia do Desenvolvimento é um quebra-cabeças. Eu acho a Biologia Molecular por si só entediante, é mais in vitro e apesar de você poder investigar interações entre proteínas e coisas assim, não é muito complexo, enquanto a Biologia do Desenvolvimento pega tudo o que sabemos e une em um inteiro.

Nós não estamos olhando apenas para um receptor e como este interage com um ligante, em vez disso nós olhamos em como isso se situa na célula, transduz o sinal e diz para aquela célula fazer algo para se comunicar com a célula ao lado, e então como todas essas células se juntam. 

Para mim, é uma questão muito maior, mais rica e mais complexa, e eu amo quebra-cabeças. Eu acho que em parte esse é o porquê eu realmente gosto disso.

Além de ter orientado várias mulheres, muitas delas agora atuam como Professoras Assistentes ou Professoras Pesquisadoras, o que é realmente incrível.

Sim, eu fico realmente orgulhosa.

O que você acha que foi essencial no seu papel enquanto mentora para ajudá-las em seus caminhos?

Eu acredito fortemente que o meu caminho não é o único caminho. Se as pessoas têm outras aspirações, desde que seja relacionado à ciência, eu não me importo realmente com o que esse caminho possa ser e eu vou te ajudar a percorrer esse caminho da melhor forma que me for possível.

Por um lado, eu tive mais experiência em ajudar a orientar pessoas durante suas trajetórias acadêmicas, obviamente, então quando alguém diz que quer trabalhar no setor privado não-acadêmico ou algo do tipo, eu acho ótimo, mas eu não tenho muitos contatos. Eu vou trabalhar com os objetivos dessa pessoa ao invés de impor as minhas metas para os outros.

Eu não vou tentar dizer “Você é tão boa em ciência, por que você não fica no meio acadêmico?” se não é a paixão dela. Há muitos mentores que vão sentir que aquela pessoa falhou com eles se ela não faz o que eles fazem, e eu não acredito nenhum pouco nisso.

Muito disso se deve à sua habilidade de criar um ambiente de suporte.

Exatamente. Eu tento extrair o melhor de todos e eu não sou de forma alguma uma supervisora que controla cada detalhe. Estou lá para dar suporte e independência. Eu nunca quis ser rigidamente supervisionada em todas as minhas ações e decisões, e não vou fazer isso com outra pessoa.

Eu tive esse colega, ele era talvez 5 anos mais velho do que eu quando eu exerci minha primeira posição como Pesquisadora contratada, e ele me falou uma vez: “a melhor coisa que posso te dizer é que você não pode motivar pelo exemplo”. Não importa o quão duro eu trabalhe, não importa o quão duro seu colega de laboratório trabalhe; se você não se motivar, eu não consigo te obrigar a fazer algo.

Isso não vai te fazer bem a longo prazo porque no final das contas você vai ter que caminhar com suas próprias pernas. Então, de certa forma eu provavelmente dou mais abertura do que deveria, mas eu sempre estou disposta a apoiar as pessoas da forma que for.

Então por que tantos dos meus alunos entraram para o meio acadêmico? Eu tive sorte de poder ter orientado pessoas realmente ótimas no meu laboratório. Eu tenho tido sorte por receber muita gente motivada e boa para trabalhar comigo, e se você tem motivação você pode fazer praticamente qualquer coisa que deseja.

Agora, falando sobre sua carreira, você já enfrentou dificuldades enquanto cientista por ser mulher?

Eu acho que eu tive sorte de duas maneiras. Primeiro, uma mudança cultural estava começando a acontecer. Como eu disse, não havia mulheres que eram referência, especialmente em Química, então eu não sabia que caminho eu poderia trilhar. Mas quando eu cheguei naquele ponto de começar a minha carreira acadêmica, já havia um bom reconhecimento em termos de “isso não é certo e nós precisamos ter mais mulheres [como Pesquisadoras]“, então eu realmente acho que eu tive isso como uma  vantagem.

Por exemplo, eu não faço mais isso provavelmente porque agora eu tenho mais proeminência – eu sempre me apresento como “Lee”, mas quando eu estava me candidatando a empregos, eu colocava “Lee Ann” porque caso contrário achariam que eu era um homem. Veja, eu posso aceitar qualquer uma dessas maneiras, se eu não quero ser reconhecida como mulher eu coloco “Lee”, e eu geralmente costumo usar “Lee”, mas se eu quero ser reconhecida como mulher, então eu escrevo “Lee Ann”.

Talvez outra vantagem tenha sido que também foi uma época de ouro para a Biologia do Desenvolvimento. Havia muitos estudos históricos de Desenvolvimento sendo feitos, e como todas as ferramentas moleculares que estavam se tornando disponíveis, você podia finalmente inserir os conhecimentos de genes e suas funções nas descobertas históricas.

Eu acho que essas duas coisas na verdade ajudaram bastante no fato de eu ter conseguido um emprego enquanto uma boa Bióloga do Desenvolvimento, por ser uma boa Bióloga Molecular, e enquanto mulher. Então de certa forma foi mais uma ajuda do que um obstáculo.

Eu devo dizer que entrar na pós-graduação talvez tenha sido um obstáculo só porque eu não conseguia reconhecer o que eu era capaz de fazer, mas uma vez que eu entrei de fato na pós, no pós-doutorado e depois, não tem sido um problema. Mas também, como eu disse, era uma época boa. Eu publiquei bons artigos e me tornei reconhecida por mim e pela pesquisa que fizemos, então a minha trajetória sempre foi ascendente, felizmente.

Infelizmente, não são incomuns casos de mulheres que tiveram que esconder seus primeiros nomes e assinar com suas iniciais para não serem reconhecidas como mulheres e, dessa forma, pudessem ter seus trabalhos realmente aceitos ou reconhecidos, e eu acho incrível que você fez a mudança justamente para ser reconhecida como mulher.

Sim, mas se tivesse acontecido 5, 10 anos antes, eu não acho que teria feito isso. Provavelmente eu teria só colocado “Lee”, talvez eu não quisesse adicionar meu nome do meio à minha assinatura. Então definitivamente houve uma mudança cultural e um reconhecimento de que as coisas não podem só ser feitas por homens velhos brancos.

Você sentiu diferença indo da Química, um campo em que basicamente não havia mulheres, para a Biologia do Desenvolvimento, em que se vê uma maioria de mulheres pesquisadoras?

Antes de haver a mudança cultural, eu percebi que havia um sentimento em gerações mais velhas de mulheres na Biologia do Desenvolvimento de que havia a necessidade de sacrificar muitas coisas e de ter que lutar para chegar ao topo – de um jeito que, de certa forma, era esperado que eu seguisse aquele caminho também.

Eu tive muitas mentoras excepcionais, mas também havia aquele sentimento de “dê seus pulos, garota” e uma expectativa de que você não iria iniciar uma família e de que deveria se colocar à prova constantemente, porque naquela época isso era necessário para que elas fossem respeitadas.

Então definitivamente houve uma grande mudança que provavelmente começou no final da década de 1980. Eu acho que houve uma convergência de fatores, reconhecer o porquê de haver tão poucas mulheres na ciência e a grande revolução na Biologia Molecular. Nós podíamos fazer coisas, podíamos clonar genes e realizar todo o tipo de coisa que não podíamos fazer antes, então talvez isso tenha dado mais espaço para as pessoas fazerem boa ciência.

Eu me sinto afortunada de ter tido ótimos mentores e mentoras ao decorrer da minha trajetória e sinto orgulho de ser uma boa mentora.

Em conclusão, peço para você descrever brevemente a ciência pelos olhos de Lee

A ciência é divertida, ciência é descobrir, ciência é tão importante nos dias de hoje. Mas para mim é a diversão da descoberta, de poder chegar ao trabalho e ter o sentimento de que isso é incrível e que é o melhor emprego do mundo! É muito trabalho, mas realmente é o melhor emprego do mundo onde mais você consegue viajar nos seus pensamentos e depois testar alguns deles?

Eu gostaria de agradecer a Dra. Niswander por gentilmente dedicar um pouco de seu tempo para conversarmos e compartilhar mais de sua trajetória inspiradora.


Giovana Maria Breda Veronezi

Graduada em Ciências Biológicas pela Unicamp em 2014 e Mestra em Biologia Celular e Estrutural pela mesma universidade. Com o sonho de criança em ser Bióloga realizado, almeja na vida adulta ver a ciência (e o mundo) cada vez mais pelos olhos delas.

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