Arte feia (V. 3, N. 11, 2017)

No último post falamos dos recentes ataques sofridos por artistas contemporâneos brasileiros, que tiveram sua expressão cerceada. De lá para cá, a polêmica sobre a liberdade do artista – e da arte – cresceu, atingindo importantes instituições, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Os comentários dos que defendem essas ações incluem a ideia de que os artistas não fazem arte. Alguns afirmam também que a verdadeira arte se perdeu em algum momento do passado, em que as obras eram realmente bonitas. Para eles, o que se faz hoje é feio e, portanto, não pode ser considerado artístico.

Em outras palavras, tem-se a impressão de que a arte do passado era bonita, e que a do presente é feia. Mas será que isso é verdadeiro?

Primeiro de tudo…

Beleza e feiura não são conceitos estáticos, eles mudam conforme o momento histórico e a sociedade em que se desenvolvem. Cada cultura tem o seu belo e o seu feio. Eles não são idênticos aos de outras culturas e inclusive podem variar numa mesma sociedade, com o passar do tempo.

Isso significa que algo hoje considerado feio, pode ser bonito no futuro, e inclusive artístico.

Uma falsa impressão

Arte não é sinônimo de beleza. Ela sempre se relacionou com o feio de alguma forma, em todos os momentos históricos.

No senso comum, predomina a ideia de que, para algo ser artístico, deve retratar, de maneira bela, o que é naturalmente belo. Por exemplo, uma paisagem natural, o retrato de uma criança, etc.

Assim, só seria artístico algo tido como bonito no sentido da contemplação, isto é, aquilo que é “bom de olhar”, porque desperta em nós sentimentos pacíficos, como calma e bem-estar.

Mas o fato é que o feio sempre esteve presente nas obras artísticas, como na pintura que segue.

Peter Paul Rubens, Cabeça de Medusa, c. 1617.

Nesse caso, podemos dizer que Rubens , importante pintor do período conhecido como Barroco, pintou algo feio (no sentido de não ser bom de olhar) de uma forma bonita. Essa forma bonita era aquela tida como “a correta” em sua época e, portanto, aceita por todos.

O feio, aqui, existe para referir-se a uma conhecida história: o mito da Medusa.

Modernismos…

Mas a arte não precisa apenas retratar o feio de forma bonita. Ela pode fazer isso “de forma feia”. É o que começa a acontecer, de maneira muito intensa, no período histórico conhecido como Modernismo.

Não é à toa que as pessoas, em geral, associam a arte moderna à feiura. É que, nesse momento histórico, artistas começaram a se voltar contra a maneira de fazer arte tida como correta.

Isso ocorreu porque as sociedades ocidentais mudaram muito profundamente, num curto período de tempo. E as formas de fazer arte que se desenvolveram até então não interessavam mais aos artistas.

Numa sociedade urbana, industrializada, marcada pela velocidade do trem e dos automóveis, e que em breve se veria diante de duas grandes guerras mundiais, não era mais possível ter uma atitude contemplativa e idealizada.

Eles queriam tratar desse novo mundo de uma maneira inteiramente nova e que correspondesse ao que era vivido. Para isso, subverteram as artes tradicionais e passaram a incorporar novos materiais artísticos ao seu fazer.

Pablo Picasso, A musa, 1935.
Para falar da sociedade em que viviam, artistas modernos subverteram a maneira tradicional de fazer arte.

Em resumo, artistas modernos e contemporâneos não desejavam mais representar o mundo de maneira idealizada. Eles queriam falar sobre uma sociedade marcada pelo caos e pela ruína, usando a matéria oferecida por essa mesma sociedade.

É isso o que faz César, na série de trabalhos intitulada Car compression. Ele se apropria de carcaças de carros descartadas para fazer esculturas.

Ao utilizar o lixo da sociedade de seu tempo, César constrói um monumento a ela. Propõe ao espectador não a contemplação, mas a reflexão crítica: o choque de ver, no lugar do belo, algo feio, mas que traduz o modo de viver contemporâneo, marcado pelo excesso de consumo e, consequentemente, de lixo.

Essa talvez seja a principal chave para compreender a arte de hoje: ela não é feita para a pura contemplação, mas para fazer sentir o nosso mundo e pensar sobre ele.

 

Referências:

ECO, Umberto. História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.

ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.

Arte contemporânea é assim mesmo… (V.3, N.6, 2017)

No post anterior, demos o primeiro passo para nos aproximarmos da arte atual: aceitar que ela é o que pode ser. Por razões sociais e históricas que discutiremos em futuras postagens, aconteceu de ela ser assim. Mas… Assim como?

Primeiro de tudo…

Por enquanto, nos referimos à arte contemporânea de maneira bastante ampla, dizendo que ela é “estranha”, “difícil”, “diferente do que esperávamos”.

Tudo isso é verdade, mas ainda é pouco.

Se quisermos entender (e perceber!) melhor a produção artística de nosso tempo, precisamos compreender o que a palavra “assim” quer dizer nesse caso.

O fato é que ela quer dizer muitas coisas.

A arte contemporânea pode assumir diversas formas, tratar de vários temas. Em outras palavras, ela é marcada pelo ecletismo.

 

Viva a liberdade!

Dizer que ela é eclética significa afirmar que uma de suas características fundamentais é a diversidade. Os artistas contemporâneos não estão presos a uma doutrina ou escola artística, como acontecia no passado. Não há regras a serem seguidas e eles podem criar o que quiserem. Eles são livres para escolher.

Essa liberdade criativa se manifesta em muitos dos aspectos das obras (trataremos disso em outros posts!), mas sem dúvida a face mais visível desse ecletismo se revela nos materiais de que elas são feitas.

O artista inglês Liam Gillick afirma que hoje os materiais artísticos parecem ter sido comprados em “lojas inadequadas”. E tem razão!

Enquanto artistas do passado tinham uma opção limitada de escolhas (grafite, carvão, tinta, argila, por exemplo), os de hoje podem usar qualquer coisa. Mesas, cadeiras, pedras, sapatos, feno, barras de ferro, fotografias antigas. Tudo pode se transformar em material para a arte.

De 1950 para cá, tudo tem se transformado em material artístico. Liam Gillick, por exemplo, usou lenha para fazer essa escultura.

Mas isso não quer dizer que os materiais artísticos tradicionais não sejam mais utilizados. Eles não apenas são usados, como muitas vezes têm seu uso potencializado, por estarem lado a lado com materiais não-convencionais.

Foi justamente o que fez o artista cujo trabalho abre este post. Andrey Rossi utilizou uma mistura de materiais convencionais e não-convencionais, compondo uma  assemblage.

Com carvão e sanguínea sobre papel, ele fez desenhos ao mesmo tempo realistas e “estranhos”. Esses desenhos foram “acoplados” a um livro em cuja capa está encrustado o crânio de um pássaro. O marcador de páginas é uma mecha emaranhada de cabelos. Além disso, há anotações datilografadas e recortes de livros rasurados.

Todos esses diferentes materiais foram arranjados de maneira a compor um todo significativo, que se oferece a nossa fruição.

Esse trabalho nos faz pensar sobre a natureza do conhecimento que se encontra dentro de livros, mas também sobre o fazer artístico, que pode, por exemplo, tomar um livro antigo como suporte para uma colagem.

Mas não é só isso

Ele pode ser compreendido como uma imagem emblemática do que aconteceu com a arte de uns tempos para cá: ela não cabe mais dentro de limites fechados. Esparrama-se para além do aceito. Desafia explicações possíveis. Não se deixa aprisionar por aquilo que está escrito nos livros, embora muitas vezes se apoie sobre eles.

E é por isso que ela é legal: por oferecer-se aos artistas como liberdade de escolha, e aos espectadores, como desafio de interpretação.

 

Referência para a escrita deste texto:

Bourriaud, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009.