Quem tem medo de artista? (V. 3, N. 8, 2017)

Um homem nu, imóvel, dentro de uma bolha de plástico inflável. Por seu corpo, escorre uma substância viscosa e transparente, que seca e vai tornando mais difíceis seus movimentos. Quando a substância está completamente seca, ele começa a se mexer, realizando uma série de movimentos para se livrar da espécie de casca – ou segunda pele – que sobre ele se formou.

Essa cena poderia fazer parte de um filme de ficção científica, mas é uma breve descrição da performance do artista paranaense Maikon K. No dia quinze de julho de 2017, ele foi preso pela Polícia Militar, em Brasília, durante a exibição dessa performance, intitulada DNA de DAN. A alegação dos policiais para a prisão foi a prática de ato obsceno, uma vez que Maikon estava nu e realizava a ação em frente ao Museu Nacional da República, dentro de uma mostra de teatro.

O caso teve grande repercussão na mídia e toca numa questão incômoda: não é raro que artistas sejam vítimas de ações arbitrárias ou até mesmo sejam perseguidos por instituições que representam o poder estabelecido.

Isso não acontece por acaso.

Primeiro de tudo…

Artistas incomodam.

Como vimos no post anterior, artistas buscam ampliar as potencialidades de um meio expressivo. Eles querem ir além do que já foi feito. E além do que já foi dito. Em outras palavras, eles falam do que têm vontade, da maneira como desejam. Assim, acabam por produzir obras que desestabilizam o olhar e desafiam o entendimento, gerando muitas vezes estranhamento e até mesmo rejeição por parte do público e da crítica.

E isso não é ruim. Para falar a verdade, faz parte do diálogo que se estabelece entre artista e espectador. Podemos não gostar do que ele produz, questionar ou mesmo ignorar suas obras. Mas nunca proibi-lo de criar com liberdade. Nesse caso, saímos da esfera do gosto e da apreciação para entrar na do autoritarismo.

Se a proibição ocorre por parte de instituições oficiais, o caso torna-se ainda mais grave. É sinal de que ou o autoritarismo já está instalado, ou há grandes chances de que se instale como política oficial, com graves consequências para todos os cidadãos.

Corpo, nudez e arte

A alegação de que o artista deveria ser preso por estar sem roupa desconsidera um fato muito importante: o corpo humano – inclusive o corpo nu – sempre esteve presente nas artes, seja como objeto de estudo e representação, seja como próprio meio da obra, o que é muito comum na arte contemporânea, especialmente com as performances.

As motivações dos artistas para utilizar o corpo como tema ou meio de seu trabalho variam de acordo com o momento histórico em que vivem (ou viveram), ou mesmo com suas motivações pessoais.

Na antiguidade clássica, por exemplo, o corpo humano era considerado a perfeita expressão de uma beleza idealizada, harmônica. Mais tarde, no Renascimento, para artistas como Leonardo da Vinci, o corpo era objeto de conhecimento artístico e científico. Também houve momentos em que o corpo foi visto como veículo das expressões humanas mais profundas (no Expressionismo, por exemplo).

Da antiga Grécia até os dias de hoje, nota-se o enorme interesse dos artistas pelo corpo humano.

 

Um dos muitos estudos anatômicos de da Vinci. No Renascimento, esse tipo de desenho – proibido pela Inquisição por ser feito a partir da observação de cadáveres – tornou-se uma prática artística bastante comum.

 

Pintores expressionistas transfiguram as formas, inclusive do corpo, numa tentativa de trazer para a exterioridade emoções intensas.

Nos dias de hoje, é comum os artistas tratarem o corpo de maneira a levar o público a refletir sobre a existência humana, numa sociedade que deseja controlar os corpos.

A performance DNA de DAN, por exemplo, coloca o espectador diante de questões como estas: o que significa ter um corpo, num ambiente dominado pela artificialidade? É possível o ser humano libertar-se da “casca” de cultura tecnocientífica que o “recobre” , para viver num corpo livre?

São muitas as reflexões que podemos fazer a partir de propostas artísticas como essa. Por isso, quando se trata de arte, é preciso ir além de uma compreensão rasa, que, por exemplo, associa nudez a crime.

Críticas ao artista são possíveis, mas devem ser feitas de forma não autoritária, considerando a necessidade de debate. Isso é fundamental numa sociedade que se pretenda democrática: zelar pelo direito de livre expressão não só de seus artistas, mas de todos seus cidadãos.