Escolha uma Página

Semana passada escrevi um pouco sobre as minhas expectativas em relação ao Zoneamento Agroecológico da Cana, divulgado pelo governo na última quinta-feira (17/09). Ótimos comentários foram feitos sobre o post, o que gerou uma boa discussão por lá.  Após a divulgação do estudo base e do projeto de lei sobre o Zoneamento eu pensava em fazer uma análise mais profunda do material e divulgar a minha opinião. Bem, o Glenn Makuta se apressou e publicou primeiro suas relevantes considerações sobre o estudo base no Tubo de Ensaios, aqui do ScienceBlogs Brasil. Neste contexto gostaria de fazer minhas considerações sobre o estudo base e o projeto de lei. Antes gostaria que vocês tivessem acesso a esses documentos, que podem ser baixados neste link da Assessoria de Comunicação do Ministério do Meio Ambiente.

Estudo base do Zoneamento

capa_estudo_zoneamento_cana.jpg
Em termos gerais, como ressaltado pelo Ítalo no último post, posso dizer que o estudo base utilizado pelo governo para fazer o Projeto de Lei sobre o zoneamento da cana é de extrema qualidade. A ideia é simples. Removemos as áreas consideradas como prioridades para a conservação (Amazônia e Pantanal) e as “áreas com cobertura vegetal nativa” da análise. As áreas atualmente ocupadas pela agricultura, agropecuária e pastagens são divididas de acordo com a sua potencializada para o plantio de cana. Então vemos que não há problema algum. Somente as áreas já utilizadas pelo homem entram no zoneamento. Certo? Bem, vamos com calma. Primeiro eu faço uma pergunta simples. As fronteiras dos biomas Amazônia e Pantanal estão bem definidas no estudo, como mostra a figura abaixo. Mas o que seriam “áreas com cobertura vegetal nativa”? Este termo não está bem definido e é apenas citado no texto. O projeto de lei segue a mesma lógica. Se uma área tem apenas 10 ou 20% de “vegetação nativa”, apenas esta área estará fora do zoneamento? Não encontrei respostas no estudo e nem no projeto de lei.

mapa_amazonia_pantanal_limites.jpg
Outro ponto. A exclusão da Bacia do Alto Paraguai do zoneamento da cana foi uma decisão considerada de “última hora”. O problema está na localização desta área, bem próxima ao epicentro da indústria sucroalcooleira no Brasil. Já existem atividades rurais em áreas do Pantanal, mas estas não entraram no Zoneamento. Por qual motivo? O único motivo é agradar o mercado externo. Se uma área de Cerrado ou Mata Atlântica foi incluída no zoneamento, porque não uma área do Pantanal? Não estou achando errado a exclusão do Pantanal do zoneamento, mas acho que a lógica para isso ser feito não apresentou nenhuma consistência ou argumento científico. O sub título do estudo fala em “Preservar a vida”, mas, neste caso, só se ela for da Amazônia ou Pantanal.

Voltando ao problema das “fronteiras”, gostaria de ressaltar o mapa abaixo sobre a potencialidade do centro-oeste para o plantio de cana. Podemos ver o mesmo mapa dos biomas mostrado anteriormente, acrescido das áreas aptas para a expansão da cana. A pressão sobre o bioma teoricamente intacto do Pantanal é algo realmente preocupante.

mapa_amazonia_pantanal_limites.jpg
Um ponto interessante do estudo está na exclusão das área com declividade maior do que 12% do zoneamento. Estas áreas não poderiam ser mecanizadas, o que fortaleceria o uso das queimadas. Este tipo de ferramenta para limpar a área e facilitar a colheira ainda é utilizado em boa parte das plantações de cana e os seus efeitos serão futuramente discutidos aqui no blog na série sobre biocombustíveis. O único problema que vejo nesta medida é o aspecto social por privilegiar o agronegócio perante a agricultura familiar. Mas este com certeza não é o único problema da agricultura familiar no Brasil. Esse papo de que álcool e o biodisel irão ser produzidos por agricultura familiar ficou no papel. E com certeza não sairá dele.

Resumindo, o estudo como um todo será de grande importância para aumentar a produção de cana. Ele indica áreas de alta, média e baixa aptidão para o plantio, sendo fundamental para a agroindústria direcionar os seus esforços. A única parte voltada a conservação deste estudo está nas áreas excluídas do zoneamento. O nome “Agroecológico” dado ao zoneamento está muito mais para o “Agro” do que para o “Ecológico”. Mesmo assim, dentre os impactos esperados pelo estudo encontrei um no mínimo estranho:

“Produção de biocombustíveis de forma sustentável e ecologicamente limpa”

 (Página 9)

Acho que o estudo teria que ser muito mais profundo para achar que esse seria um impacto do mesmo. Excluir a Amazônia e o Pantanal do zoneamento não faz com que a cana seja sustentável e ecologicamente limpa, se é que isso existe. Por isso a análise do projeto de lei que se baseou neste estudo é de grande importância. É nele que teremos o que realmente será implementado.

Projeto de lei do Zoneamento

projeto_lei_zoneamento_cana.jpgEstou longe de ser um especialista em legislação, mas vou tentar analisar alguns pontos do projeto de lei. Já no primeiro artigo, parágrafo único, temos uma informação lógica mas interessante:

” Parágrafo único.  As  medidas  previstas  nesta Lei não se aplicam a outros produtos
advindos da cana-de-açúcar, tais como cachaça, rapadura, ração animal e açúcar mascavo.”

Acho que temos um problema em relação ao nome estudo e do projeto. Não era zoneamento da cana-de-açúcar? Pelo parágrafo acima está mais para zoneamento da produção de álcool e açúcar branco. Mas vamos em frente. No artigo terceiro, inciso segundo:

” Fica vedada, a partir da vigência desta Lei (…) II – a supressão, em todo o território nacional, de vegetação nativa para a expansão do plantio de cana-de-açúcar;” 

Voltamos ao início do post. “Vegetação nativa”? Qual extensão da área? Este seria um artigo muito bom, se não fosse a continuação dele…

 “§ 1o
  Para os efeitos do inciso II, os órgãos ambientais competentes deverão exigir
dec
laração do interessado de que a área onde a vegetação será suprimida não será destinada ao cultivo de  cana-de-açúcar
para a produção de açúcar, etanol e demais biocombustíveis derivados da cana-de-açúcar.
 
 § 2o
  As vedações previstas neste artigo não se aplicam à expansão do plantio da cana-de-
açúcar para suprimento da demanda decorrente:
  I – da instalação e operação de unidades industriais que possuam licença ambiental
regularmente concedida até 17 de setembro de 2009; e
  II – da ampliação das unidades em funcionamento, caso o pedido de licenciamento
ambiental da ampliação tenha sido protocolado até a data referida no inciso I.”

No primeiro parágrafo vemos um ponto interessante. Se o latifundiário declara que vai plantar milho ele pode devastar a área que quiser. Depois ele pode repentinamente mudar de ideia e plantar cana. Aí sim ele estará contra a lei! Ponto de vista curioso. Será que este sistema de “declarar” o que vai plantar vai realmente funcionar? 

Já no segundo temos um problema crítico em qualquer tipo de projeto de conservação. Tudo será para um ponto em diante e não mexemos no que já está em funcionamento. Recentemente o Saci publicou uma reportagem sobre uma usina localizada em Roraima (dentro da área protegida a “sete chaves” pelo governo, Amazônia). O projeto da usina parece que já está em trâmite, então pelo projeto de lei a usina poderia ser implementada? E ainda pior, baseado no inciso segundo do segundo parágrafo ela poderia ter sua área ampliada? Claro que segundo o projeto os Biomas Pantanal e Amazônia estariam “protegidos”, mas não é bem assim…o projeto de lei fala que a “expansão” do plantio será vetada nestes biomas. Algo que pode ser interpretado de outra maneira.

O artigo quarto fala da parte de mecanização, um dos pontos fortes do estudo de base. Segundo ele:

“Art. 4o
  Fica vedada a utilização de fogo, nas áreas mecanizáveis, como método
despalhador e facilitador do corte de cana-de-açúcar de acordo com o cronograma previsto no Anexo, ressalvadas as legislações estaduais ou municipais mais restritivas.
§ 1o
  Para os fins do disposto no caput, consideram-se mecanizáveis aquelas áreas acima
de cento e cinquenta hectares com declividade igual ou inferior a doze por cento em solo com estruturas que permitam a adoção de técnicas usuais de mecanização da atividade do corte da cana-de-açúcar. 
 § 2o
  A existência de áreas com estruturas de solo que impossibilitem a mecanização do
corte da cana-de-açúcar deverá ser comprovada pelo interessado, mediante laudo técnico que delimite as referidas áreas, o qual deverá ser aprovado pelo órgão ambiental competente.”

Entendi. Então a medida que vetaria o uso do fogo é só para áreas “mecanizáveis”, o que significa que as outras áreas poderão utilizar o fogo? Existe uma decisão do STJ vetando o uso do fogo em São Paulo, mas isso é muito pouco. Acho que o projeto de lei ficou devendo nesta parte.

Em anexo ao projeto de lei temos os números mágicos citados pelo Minc no dia da apresentação do zoneamento.

eliminacao_queimadas_zoneamento_cana.jpgUma palavra faz toda a diferença. Repararam no “passíveis”? A eliminação vangloriada pelo Minc de 100% das queimadas em 2017 tentará ser atingida apenas nas áreas passíveis de mecanização. As outras áreas poderão continuar as queimadas, sem problemas (pelo menos fora de São Paulo).

Considerações finais

Como eu disse anteriormente, um bom estudo depende de um bom projeto de lei para ser implementado. Se o estudo tem brechas, o projeto de lei também e, além disso, políticos já começarem a propor e pressionar por alterações no projeto original, as consequências podem não ser muito boas. Gostaria de fechar este post com uma frase do Minc sobre o zoneamento:

“O argumento da situação externa foi decisivo. Lá fora tem essa discussão sobre alimentos e devastação. Consegui o apoio da Unica (usineiros) e agora vamos poder dizer que nosso etanol é 100% verde. Se não fosse, usariam barreiras para impedir a exportação do etanol.”

“Lá fora” eles discutem sim sobre a pressão do plantio de cana sobre os alimentos. Também discutem “lá fora” sobre a perda de biodiversidade que o plantio para a produção de biocombustíveis pode causar. Também discutem “lá fora” sobre a eutrofização de corpos aquáticos pelo uso indiscriminado de fertilizantes em monoculturas. “Lá fora” eles dão valor para a emissão total do ciclo da cana e não apenas para se ela é plantada na Amazônia e no Pantanal. “Lá fora” eles consideram o Cerrado como um Hotspot de Biodiversidade. Não podemos e nunca poderemos dizer que o etanol é 100% verde. E é por este motivo que nos próximos posts eu falarei sobre os problemas da “energia que se planta”, como dizia o logo do biodisel.