Projeto investiga variações e padrões de cromossomos sexuais e B de animais – Parte II

Projeto investiga variações e padrões de cromossomos sexuais e B de animais – Parte II

Quem gostou da primeira parte da reportagem, vale a pena conferir a continuação aqui. Na postagem anterior, introduzimos conceitos e tipos de cromossomos sexuais conservados ou não, definições e histórico  de cromossomos B,  importância e tipos de polimorfismos [variações] cromossômicos, um olhar sobre o drive – mecanismo de perpetuação que cromossomos B podem realizar na meiose -, entre outros tópicos básicos e avançados da Citogenética.

Agora vamos desenvolver alguns achados sobre polimorfismos em cromossomos sexuais, bem como discutir sobre a função que os cromossomos B podem representar para espécies ou para indivíduos que portam esses cromossomos extras. Nesse contexto é que continua o projeto temático “Cromossomos sexuais, cromossomos B e seus enigmas: sistemas modelo para estudos de evolução cromossômica e genômica”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Além desse projeto apresentar abordagens diferenciais e novas perspectivas, há quem considere que desvendar enigmas de cromossomos é desvendar parte dos mistérios da evolução biológica dentro dos organismos.

Nesta segunda parte da reportagem para o blog DNA explica, seguimos com algumas contribuições de Cesar Martins (coordenador do projeto), Adauto Lima Cardoso (pós-doutorando do projeto) e Jordana Oliveira (doutoranda do projeto). Mas, além disso, concentramos atenção nas falas de mais dois pesquisadores do temático:

  • Diogo C. Cabral de Mello do Departamento de Biologia Geral e Aplicada, no Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro (SP);
  • Marcelo R. Vicari do Departamento de Biologia Estrutural, Molecular e Genética, na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) no Paraná.  

UMA PITADA SOBRE POLIMORFISMOS DOS CROMOSSOMOS SEXUAIS DE GAFANHOTO E DE PEIXE

Os polimorfismos que ocorrem nos cromossomos sexuais estão entre os mais importantes e curiosos, afinal, são alterações que podem ter efeito na razão sexual e na reprodução sexual das espécies.  Diogo Cabral de Mello comenta que, em se tratando de cromossomos sexuais de gafanhotos, “há espécies ou populações com o sistema sexual ancestral do tipo X0, onde os machos têm um cromossomo X e as fêmeas têm dois XX, mas também há populações com sistemas sexuais derivados em que os machos são do tipo XY e que podem ter múltiplas variantes”. A partir disso, o grupo de pesquisa de Diogo está investigando se os machos que possuem um tipo específico de cromossomo Y apresentam alguma vantagem em relação aos machos que possuem outras variantes deste cromossomo na população. Porém, o maior achado que Diogo obteve até então foi dentro do próprio cromossomo Y, indicando que este tem pelo menos cinco variantes. “Observamos em uma população da espécie Ronderosia bergii de gafanhoto que ocorrem pelo menos cinco tipos de cromossomos Y e que a frequência de cromossomos Y é maior em embriões do que em adultos. Por isso, temos uma hipótese de que esta variante, que é a que permanece até a vida adulta, é mais vantajosa para indivíduos portadores”, explica o geneticista. Outra hipótese do seu grupo de pesquisa é que “deve haver uma pressão seletiva do ambiente para deixar uma variante de cromossomo Y mais comum na população”.

Os polimorfismos de cromossomos sexuais também são bastante pesquisados em peixes pelo grupo de Marcelo Vicari. Diferentemente dos mamíferos, Marcelo salienta que “na grande maioria dos organismos, pouco se sabe como os cromossomos sexuais estão organizados e, menos ainda é conhecido sobre quais os genes que atuam na determinação do sexo”. O sistema de cromossomos sexuais ZZ/ZW é apenas um de vários que ocorrem em espécies de peixes e é este sistema que Marcelo está estudando em uma espécie conhecida vulgarmente por charuto ou canivete. “Nesse peixe, ao contrário dos humanos, é a fêmea que tem as duas possibilidades de cromossomos sexuais, ou seja, elas são ZW, enquanto os machos são ZZ”, pondera o geneticista. Após estudos que associaram Citogenética e Genômica, Marcelo e colaboradores já identificaram e caracterizaram a maior parte das sequências de DNA que tornaram o cromossomo sexual W claramente diferente do Z. Com esse conjunto de dados, Marcelo pretende entender se alguns desses genes descritos estão envolvidos na determinação do sexo desse peixe. Sobre isso, Marcelo ressalta que “o mecanismo genético de determinação do sexo (genes que desencadeiam a formação do sexo do embrião) não é conhecido para nenhuma espécie de peixe que ocorre nos rios brasileiros”. Além disso, “ao conhecer esses genes determinantes do sexo em sistemas ZZ/ZW, poderemos explorar a determinação sexual de outras espécies que possuem sistemas sexuais similares”, acrescenta o pesquisador.


À direita, cromossomos submetidos à técnica de FISH (Fluorescent in situ Hybridization) para localização de segmentos específicos de DNA no cromossomo sexual W. À esquerda, localização de elementos transponíveis de DNA nesse cromossomo (En/Spm, Tc1-Mariner e Helitron). Crédito: Marcelo R. Vicari.

CROMOSSOMOS B SÃO APENAS PARASITAS OU TRAZEM ALGUMA VANTAGEM PARA A ESPÉCIE?

A resposta é depende, pois os estudos têm demonstrado que a função do cromossomo B varia entre as espécies. Para Jordana, “se considerarmos que os cromossomos B vieram dos cromossomos A não associados ao sexo (os chamados cromossomos autossômicos que fazem parte do cariótipo regular), e que cada espécie tem seu conjunto de cromossomos autossômicos, então os cromossomos B poderão ter uma função ou um comportamento específico em cada espécie”.

No roedor que o projeto temático estuda, há sequências de genes que ocorrem tanto nos cromossomos sexuais quanto nos cromossomos B e, por isso, o grupo de pesquisa está fazendo análise em larga escala, produzindo milhões de sequências de genes para tentar entender quais sequências são essas compartilhadas e se elas possuem alguma função. Uma informação curiosa que relaciona os cromossomos sexuais e B de algumas espécies é que quando os cromossomos B estão presentes no organismo, geralmente determinam o sexo feminino. Nesse sentido, Cesar e seu grupo de pesquisa têm tentado entender melhor porque há o favorecimento de fêmeas na meiose [divisão de células sexuais] e se isso traz algum valor adaptativo.

Para o geneticista Diogo Cabral de Mello, há uma tendência de generalizar os cromossomos B como “egoístas” por duas razões: uma é pela questão histórica de casos clássicos descobertos em que esses cromossomos afetam seus hospedeiros, reduzindo caracteres de eficácia biológica, como vigor e viabilidade de gametas; outra é porque esses cromossomos realizam o drive meiótico para se perpetuar e acabam acumulando nas células, como se  houvesse apenas benefícios para os cromossomos B e nenhum benefício para seus hospedeiros. Porém, com o avanço dos estudos, “hoje conhecemos diversos casos em que os cromossomos B podem conferir alguma vantagem para o indivíduo ou para população, ou casos em que os cromossomos B atuam na diferenciação de um fenótipo externo (cor, tamanho, peso, sexo) ou de algum aspecto molecular da célula”, acrescenta o pesquisador. Para Diogo, um dos exemplos mais interessantes nesse sentido é uma espécie de roedor em que os indivíduos machos portadores de cromossomos B possuem maior massa corpórea e, com isso, tendem a ter uma vantagem adaptativa para passarem o inverno. 

ALGUMAS NOVIDADES SOBRE CROMOSSOMOS B DE GAFANHOTO ESTUDADOS NO PROJETO TEMÁTICO

Como já citado anteriormente, um dos modelos de estudo do projeto temático é uma espécie de gafanhoto (Abracris flavolineata), cujas populações coletadas no projeto estão distribuídas em bordas de florestas de diferentes regiões do Brasil (Norte, Nordeste e Sudeste) e até na Argentina. Do ponto de vista populacional, essa e outras espécies de insetos possuem cromossomos B em que predomina heterocromatina – fração do genoma que é pobre em genes e que está associada a DNAs repetitivos.

Gafanhoto Abracris flavolineata. Crédito: Diogo C. Cabral-de-Mello.

Porém, Diogo Cabral de Mello encontrou cromossomos B muito distintos em composição para o que é conhecido em gafanhotos até então. “Curiosamente, aqui em Rio Claro-SP, nós  encontramos uma população da espécie Abracris flavolineata de gafanhoto que tem cromossomos B completamente eucromáticos (geralmente ricos em sequências de genes). Com sequenciamento genômico associado a estudos cromossômicos, nós identificamos que existem muito mais sequências do cromossomo B que são eucromáticas”, explica Diogo. Em outras palavras, “é como se as regiões eucromáticas típicas das regiões ricas em genes dos cromossomos A (regulares) estivessem mais representadas nos cromossomos B (extras)”, acrescenta o geneticista.   

Esses dados diferem de outras populações da própria espécie, como a população da Argentina que tem cromossomos B heterocromáticos. Para Diogo, isso permite explorar questões interessantes a nível evolutivo: “o fato dos cromossomos B em algumas populações terem uma característica mais conservada do que outras sugere que há populações com origens ou tempos evolutivos diferentes, mesmo sendo da mesma espécie”. Por exemplo, “o cromossomo B da população desse gafanhoto na Argentina pode ser mais antigo ou ter se diferenciado mais rápido do que a população da região de Rio Claro, uma vez que os cromossomos B têm a tendência evolutiva de se heterocromatinizar”, pontua Diogo.

O QUE DISTINGUE ESTE PROJETO TEMÁTICO EM RELAÇÃO A OUTRAS PESQUISAS?

Na América Latina, há inúmeros grupos de pesquisa investigando a estrutura e a função de cromossomos sexuais de animais, mas para Cesar o projeto temático possui alguns diferenciais: um deles é utilizar modelos biológicos em relação aos cromossomos sexuais que possuem um material genético ainda em intensa dinâmica evolutiva, como insetos e peixes; outro é abordar uma intersecção entre cromossomos sexuais e cromossomos B em uma espécie de roedor.

Em relação às análises, o grupo de pesquisa também está permitindo um entendimento mais amplo sobre os polimorfismos cromossômicos estudados graças à integração de abordagens. “É muito mais frequente vermos pesquisas que analisam cromossomos apenas olhando diretamente para eles por meio de técnicas citogenéticas, mas em nosso projeto, além desse tipo de análise, utilizamos metodologias moleculares e genômicas para buscar responder nossas questões”, complementa Adauto.

Adauto e Jordana, pós-doutorando e doutoranda, pesquisadores e bolsistas do projeto temático que fazem parte do grupo/laboratório de Cesar no Instituto de Biociências de Botucatu (IBB) da Unesp.
Marcelo R. Vicari, geneticista e docente da UEPG que é pesquisador do projeto temático.

Outro diferencial do projeto temático é a sinergia entre seus pesquisadores, tanto em investigação quanto em divulgação. Marcelo destaca que “os grupos se complementam e se somam no que cada um tem maior experiência e conhecimento e, desta forma, tentamos entender e responder as perguntas científicas sob diferentes pontos de vista”. Além disso, neste projeto existe um grupo voltado só para divulgação científica que já produziu e tem produzido diversos materiais. “Aprendi com a experiência do temático que embora o objeto da investigação possa ser extremamente específico e de difícil compreensão, sempre há possibilidade de usar parte do assunto em uma linguagem acessível para todo público”, acrescenta Marcelo.

OLHANDO EM PERSPECTIVA… A IMPORTÂNCIA DA CIÊNCIA BÁSICA E SUAS POSSÍVEIS RELAÇÕES COM CIÊNCIA APLICADA

Com todo o avanço da Genômica nos últimos anos, os estudos cromossômicos tornaram-se mais práticos e abrangentes, quando comparados aos estudos clássicos que descreviam genes de cromossomos Y da mosca Drosophila melanogaster. Diogo Cabral de Mello ressalta que “hoje em dia, o avanço genômico aliado à Citogenética otimizou a obtenção de informações sobre o conteúdo dos cromossomos sexuais de diversas espécies, sem que para isso sejam necessários trabalhos exaustivos em laboratório”.

Recentemente, o grupo de pesquisa do geneticista começou a analisar a composição gênica de cromossomos sexuais (X e Y) de espécies animais que são consideradas ‘pragas’ para agricultura convencional. Diogo comenta que “há duas famílias de percevejos que têm uma diversidade bastante alta, uma é Coreidae e a outra Pentatomidae, e quando olhamos as pragas agrícolas, percebemos que várias das espécies é da família Pentatomidae. É justamente nesta família que temos os cromossomos sexuais XY, enquanto a família Coreidae tem o sistema sexual X0”. A partir disso, Diogo e colaboradores estão investigando se o sistema sexual diferenciado em XY pode estar relacionado a alguma vantagem adaptativa para suas espécies, como possuir genes ou outras sequências de DNA que possam conferir resistência a metabólitos secundários de defesa das plantas ou até inseticidas. “Isso não seria uma aplicação direta, mas tem potencial para subsidiar um melhor entendimento sobre biologia e dinâmica de insetos que trazem prejuízos ao ambiente agrícola”, acrescenta o pesquisador.

Ainda sobre cromossomos sexuais, Marcelo Vicari pondera que “entender como se dá a determinação do sexo em espécies de peixe nativas do Brasil pode abrir perspectivas do ponto de vista ecológico e de conservação”. Os peixes possuem uma diversidade de sistemas sexuais não conservados, inclusive em parte das espécies a determinação do sexo não se dá por genes presentes nos cromossomos sexuais, mas sim por genes presentes em outros cromossomos e/ou fatores ambientais como temperatura. Considerando que Marcelo está estudando espécies que possuem cromossomos sexuais diferenciados, um dos seus objetivos é  reconhecer quais genes estão envolvidos na determinação do sexo nessas espécies e, subsequentemente, testar se as vias genéticas reconhecidas sofrem modulação por fatores ambientais capazes de determinar o sexo do embrião. A partir desses dados, “talvez seja possível no futuro prever e controlar os desvios da razão sexual oriundos por alterações ambientais, o que pode ser relevante para a conservação das espécies impactadas pela poluição”, explica o geneticista. 

Para Marcelo, decifrar os enigmas de cromossomos sexuais de peixes nativos também pode subsidiar aplicações para aquicultura. “Podemos gerar métodos moleculares para a identificação do sexo das matrizes e, quando um dos sexos desenvolve mais e é mais produtivo, direcionar a produção para a geração deste especificamente”, acrescenta o pesquisador.

Imagem de capa:

Células com cromossomos de um embrião macho do gafanhoto Abracris flavolinata. Localização de uma família de DNA satélite (a mais abundante do genoma da espécie) pela técnica de FISH (Hibridização in situ fluorescente). O cromossomo B está indicado pela seta. Créditos:  Diogo C Cabral-de-Mello e Diogo Milani.

CONHEÇA O AUTOR

Adriane Pinto Wasko

Bióloga pela UFSCar, mestre e doutora em Genética e Evolução pela UFSCar e pós-doutora pela UNESP. É docente do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB) – UNESP, desenvolve projetos de pesquisa voltados à conservação de espécies de aves ameaçadas de extinção e, também, coordena a Agência de Divulgação Científica e Comunicação (AgDC) do IBB.

Vinícius Nunes Alves

Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas pelo IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU. Atualmente é estudante de especialização em Jornalismo Científico pelo Labjor/UNICAMP e colunista do jornal Notícias Botucatu.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *