Natureza seletiva

Natureza seletiva

Neste ensaio abordaremos a relação da genética com os princípios da seleção natural, ambas importantíssimas para a teoria da evolução. Gostaria de iniciar com uma importante observação: frequentemente o termo “teoria” é indevidamente interpretado. Devemos recordar que teoria científica é uma espécie de classificação do mais alto status de credibilidade. Isto é, uma teoria é amplamente aceita pois existem fatos sólidos que sustentam a sua explicação. Além disso, as teorias podem ser continuamente testadas e com comprovação científica ganham ainda mais credibilidade. Este é o caso da teoria da seleção natural e da evolução das espécies.

A teoria da seleção natural foi amplamente difundida a partir da segunda metade do século XIX por causa dos trabalhos de Charles Robert Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913). Darwin pertencia a uma família inglesa abastada, dedicando-se a atividades variadas, inclusive a de naturalista. Sua empreitada mais conhecida foi a bordo do navio HMS Beagle, fazendo investigações geológicas e catalogando a diversidade natural ao redor do mundo (inclusive com algumas paradas no Brasil). O trabalho com o material coletado nesta expedição colaborou para que Darwin refinasse suas ideias sobre seleção natural. Wallace era galês, também se dedicou a atividades variadas e dentre as suas expedições como naturalista estão visitas à floresta amazônica no Brasil. Wallace conhecia o trabalho de Darwin, e durante uma expedição ao arquipélago malaio (Malásia e Indonésia, entre 1854-1862) escreveu uma carta para Darwin apreciar suas ideias sobre as bases da seleção natural. Em 1 de julho de 1858 as ideias de Darwin e Wallace foram apresentadas simultaneamente na Sociedade Linneana de Londres. Talvez Darwin seja o mais famoso por ter publicado rapidamente um resumo da teoria no livro “A origem das espécies”, em 1859.

SELEÇÃO NATURAL E EVOLUÇÃO

Uma das grandes questões do tempo de Darwin e Wallace era sobre como poderiam existir tantas e tão diversificadas espécies. Uma corrente de pensamento muito forte na época era o fixismo, que se baseia na ideia de que as espécies são imutáveis e foram criadas exatamente como elas são atualmente. As variações observadas dentro das espécies seriam reflexo de imperfeições naturais (como aquelas geradas em fotocópias) que ocorreriam ao longo das gerações. A suposição de que as espécies poderiam sofrer mudanças ao longo do tempo deu origem ao estudo da Evolução. O que Darwin e Wallace perceberam é que existe na natureza um mecanismo que produz mudanças graduais nas populações ao longo do tempo. Em outras palavras, a seleção natural é um mecanismo para a evolução dos organismos, isto é, um processo que produz descendência com modificação. A teoria da seleção natural possui quatro princípios:

1- Os indivíduos de uma população são variáveis.

Aqui, “população” é um conjunto de indivíduos de uma mesma espécie e que se reproduzem entre si. Lembre-se que “variação” são as diferenças nas características entre os indivíduos da população. Com frequência podemos perceber esta variação na natureza (altura em humanos, cor da pelagem em animais, cor das pétalas de flores etc.).

2- As variações entre indivíduos são, ao menos em parte, transmitidas dos pais para os filhos.

Quem nunca ouviu que determinada característica era igual ou semelhante à do seu pai ou da sua mãe? A transmissão das variações para as próximas gerações é chamada de herança.

3- Em cada geração, alguns indivíduos possuem maior sobrevivência e sucesso reprodutivo do que outros.

“Sucesso reprodutivo” tem a ver com a capacidade de um indivíduo de gerar filhos. Quanto maior o tamanho da prole ou maior o número de sementes, maior será o sucesso reprodutivo de um indivíduo. Em princípio, quanto mais tempo este indivíduo sobreviver maior será sua chance de alcançar a idade reprodutiva e de deixar descendentes.

4- As variações de sobrevivência e reprodução entre indivíduos não são ao acaso, mas são devidas às variações existentes ente indivíduos. Os indivíduos com as variações mais favoráveis são os melhores em sobrevivência e reprodução, e tais variações serão selecionadas naturalmente.

Mas o que determina que uma variação é mais vantajosa do que a outra? A resposta é o ambiente. O meio ambiente está em constante mudança. O clima da Terra (e aqui não falamos apenas de chuvas ou temperatura ao longo do ano) é um exemplo marcante. Há cerca de 20 mil anos uma parte muito maior do planeta era coberta por gelo. Hoje os continentes são separados, mas eles já estiveram todos juntos, formando uma única massa de terra (pangeia). Mudanças no nível do mar e o soerguimento de montanhas também podem resultar na separação ou conexão de diferentes massas terrestres. Parasitas e doenças podem trocar de hospedeiros (a COVID-19 é um triste exemplo para a humanidade). Novas interações ecológicas entre animais e plantas, como a predação, podem surgir. A existência de variação entre indivíduos de uma população é o combustível para que a seleção natural atue no favorecimento das características que permitam que as espécies continuem existindo num ambiente que muda continuamente.

SELEÇÃO NATURAL, EVOLUÇÃO E GENÉTICA

Embora inicialmente muito influente, demorou cerca de 70 anos para que a teoria da seleção natural pudesse ser totalmente aceita entre os biólogos por causa de algumas dificuldades importantes. Dentre as principais estavam os mecanismos de geração da variação nas populações e como estas variações poderiam ser transmitidas de uma geração para a outra. Estas dificuldades surgiram porque nem Darwin e Wallace, nem os demais cientistas da época possuíam muitos conhecimentos sobre genética.

De acordo com a teoria, a cada geração algumas variações são favorecidas e sua frequência aumenta na próxima geração. Assim, é de se esperar que em algum momento a variação se esgote, pois apenas aquela característica que garantir maior sobrevivência e reprodução será preservada. Darwin chega a citar em seu livro que as variações resultariam de pequenas diferenças nas estruturas dos sistemas reprodutores dos indivíduos. Foi só no início dos anos 1900, a partir dos trabalhos com moscas-das-frutas (Drosophila melanogaster) que o geneticista Thomas Hunt Morgan (1866-1945) e sua equipe demonstraram a ocorrência de mutações em genes. Na genética, chamamos de mutações tanto o processo molecular de substituição de nucleotídeos na sequência do DNA dos organismos, como a consequência que esta troca pode ter nas características observáveis dos organismos.

Darwin também não sabia explicar como as variações eram transmitidas dos pais para os filhos. Naquela época a ideia de herança por mistura era a mais difundida. Nesse tipo de herança os filhos teriam características intermediárias entre as características dos pais. O problema da herança por mistura é que, com o tempo, todos os indivíduos teriam características muito semelhantes e dificilmente alguma característica seria mais vantajosa do que as outras. Além disso, a população tenderia à homogeneização e não à variação. Darwin acreditava na teoria de herança dos caracteres adquiridos, proposta pelo naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), na qual as características de um indivíduo poderiam ser modificadas ao longo de sua vida em resposta à intensidade (ou necessidade) de seu uso. Tais modificações seriam herdadas pelos seus filhos que apresentariam estas características levemente diferentes. Ainda assim, os caracteres adquiridos seriam herdados pelos filhos como uma mistura dos caracteres dos pais, e com o tempo a população tenderia a uniformidade. Esta questão só foi resolvida no início do século XX após a redescoberta dos trabalhos de Gregor Mendel (1822-1884). A partir da observação de diferentes características em ervilhas de jardim, Mendel propôs a teoria da herança particulada, na qual um par de “fatores” (que hoje sabemos são os alelos – formas alternativas de um gene) seria o responsável por uma determinada característica. Cada pai contribui com um “fator” para a formação de uma nova geração, e a característica apresentada na geração filial depende de como os “fatores” interagem entre si. Mendel publicou seu trabalho em 1866, mas em alemão, o que dificultou sua difusão no meio científico. Seu trabalho sobre hereditariedade com as ervilhas só começou a ser mais divulgado a partir de 1900, pelo biólogo inglês William Bateson (1861-1926).

O entendimento de como surgia a variabilidade em populações e da herança particulada permitiu a integração da seleção natural com a genética. A evolução gradual das espécies pode ser dirigida pela seleção natural e resulta de pequenas mudanças genéticas. O acúmulo destas pequenas mudanças explica a existência de variação entre indivíduos de uma espécie (chamamos isso de microevolução) e pode resultar em grandes mudanças a longo prazo, como a surgimento de espécies diferentes (chamamos isso de macroevolução). Portanto, agora podemos reescrever os princípios da seleção natural:

1- As mutações nos genes podem criar novos alelos, que de acordo com a teoria da herança de Mendel podem ser organizados em novas combinações, gerando as variações nas características dos indivíduos de uma população

2- A herança particulada garante que os alelos sejam repassados de forma intacta ao longo das gerações

3- Alguns indivíduos conseguem sobreviver e reproduzir mais do que outros em cada geração

4- Os indivíduos que sobrevivem e reproduzem mais são aqueles que possuem as combinações de alelos que os tornam melhor adaptados ao seu ambiente

Neste pequeno ensaio vimos como a genética e a seleção natural explicam como as características em uma população mudam (evoluem) a cada geração em resposta às condições ambientais. Atualmente, as atividades humanas (poluição, queimadas, desflorestamento, caça predatória etc.) têm influenciado bastante as mudanças ambientais. Sem dúvida as mudanças climáticas são um dos tópicos mais “quentes” da ciência moderna, bem como a crescente preocupação que este cenário traz ao futuro das espécies (incluindo a nós mesmos). Perceba que, a seleção age em uma determinada população, mas a mudança ocorrerá apenas na geração seguinte. Desta forma, a seleção natural não prediz o futuro e nem age para o bem da espécie: ela age apenas no sentido de adaptar melhor as populações às condições ambientais. Se no futuro houver mudanças no ambiente, a seleção poderá favorecer características diferentes das que foram favorecidas nas gerações passadas. Aqui reside a importância da variação: populações com maior diversidade genética devem ter mais facilidade para resistir às mudanças ambientais. Portanto, os estudos para entender a diversidade genética e os esforços de conservação da natureza são importantíssimos para garantir a preservação das espécies e manutenção do equilíbrio global no atual contexto de um mundo em mudança.

Saiba mais:

O grupo de pesquisas da professora Maria Imaculada Zucchi produziu um vídeo bem bacana sobre a importância da diversidade genética para a persistência das espécies. Observe o exemplo de seleção natural em passarinhos. Veja o vídeo aqui: https://vimeo.com/69343714

Outro exemplo:

Referências:

Freeman, S. & Herron, J. C. (2009) Análise Evolutiva. 4a ed. Editora Artmed. Porto Alegre, RS, 848p. Capítulos 3, 10 11 e 12.

Ridley, M. (2006) Evolução. 3a ed. Artmed, Porto Alegre, RS, 752p. Capítulos 1 e 2.

Futuyma, D.J. (2005) Evolution. Sinauer Associates, Inc, 603p. Capítulos 11 e 12.

CONHEÇA O AUTOR

Alessandro Alves-Pereira

Biólogo amazonense, filho de cearenses e devoto de Sanger. Sommelier de tapiocas e panetones. Ceramista aposentado e judoca frustrado. Nada peito melhor que crawl. Geneticista nas horas vagas. Estuda genética de populações e evolução de plantas nativas. Vamos trocar ideias?

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