A governança da C&T como uma arena arena de interface entre saberes, tecnologias e políticas públicas
O que é governança? E como refletir sobre governança da ciência e da tecnologia? A conversa que recentemente tivemos com Arquimedes Paiva aponta uma das possíveis compreensões sobre esse termo. Ainda assim, esse é um conceito profundamente debatido pelos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, que nos oferecem ainda mais possibilidades para ele. No dia 9 de maio, o Departamento de Política Científica e Tecnológica e o Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica da Unicamp receberam o pesquisador Maurício Berger para um seminário justamente sobre esse assunto, intitulado “Coprodução da interface ciência-política: governança, autoridade e políticas da evidência”. Berger é doutor em ciências sociais e atua como Investigador Adjunto do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) no Instituto de Estudios en Ciencia, Tecnología, Cultura y Desarrollo da Universidad Nacional de Rio Negro (CITECDE – UNRN).
Em seu seminário, Berger apresentou aos presentes um amplo e denso panorama sobre as múltiplas possibilidades de compreensão da governança da C&T. Para ele, trata-se de um termo com múltiplos significados, situados na interface entre ciência e política. Por um lado, a governança pode ser entendida de um ponto de vista analítico, compreendendo de que modo a produção de conhecimento auxilia no estabelecimento de políticas públicas. Por outro, é uma arena de disputas onde diferentes saberes — acadêmicos, populares, corporativos — competem entre si para definir o que será considerado ao se estabelecer parâmetros de risco na adesão de tecnologias que porventura ainda não estejam regulamentadas.
Falando assim, esse assunto pode parecer de difícil entendimento, mas ele é mais facilmente compreendido quando o abordamos por meio de exemplos práticos, tais como a aplicação de nanotecnologias no agronegócio. A nanociência é uma área do conhecimento que estuda a manipulação da matéria em uma escala muito, muito pequena (até 100 nanômetros — um nanômetro é a bilionésima parte de um metro). Diversas organizações e empresas estão preocupadas em pesquisar possíveis usos para esse tipo de conhecimento, criando novas tecnologias visando tornar o agronegócio mais eficiente, melhorando áreas como a rastreabilidade de produtos e a criação de insumos (fertilizantes e pesticidas).
Muito esforço de pesquisa (e dinheiro) tem sido aplicado nessa empreitada, mas existe uma preocupação sobre os possíveis efeitos dela por parte de quem investe em nanotecnologia aplicada ao agronegócio? É justamente esse o caminho dos questionamentos levantados por Berger em seu seminário.
“O que sabemos da nanotecnologia como consumidores? Temos acesso aos produtos, mas quais são os impactos à exposição crônica na saúde dos consumidores, ou então na dos trabalhadores, na dos solos, quando utilizados na agricultura? Esse conhecimento tem a ver com uma interface ciência-política porque temos uma produção de vivências sobre um provável risco que tem que ser traduzido para uma tomada de decisões.”

Historicamente, tais decisões costumam ser de atribuição do Estado. Entretanto, como aponta Berger, as novas tecnologias, como a nanotecnologia, têm surgido tão rápido e em tamanha quantidade que “o poder legislativo já não tem capacidade de gerar conhecimento rápido o suficiente para transformá-lo em lei”. Assim, tais tecnologias acabam sendo reguladas por meio de normas técnicas e diretrizes que, no fim das contas, são criadas por instituições (públicas e privadas) que não têm a mesma capacidade regulatória que as leis e a fiscalização estatal podem ter.
“Aí entra o mecanismo da governança, porque o Estado já não tem lugar central nessa organização. (…) No caso da nanotecnologia, estão sendo adotados outros mecanismos: a adoção voluntária de medidas de controle. Se tem uma ideia de autorregulação, então as próprias empresas vão fazer seu próprio controle. Já não temos o Estado tomando o controle e fazendo uma vigilância sanitária e ambiental. (…) A governança é uma função para que o processo produtivo e tecnológico possa continuar mas com a modulação de outros mecanismos que não os estatais”.
Esse processo é, evidentemente, marcado por desigualdades. Com o Estado se enfraquecendo, os interesses públicos muitas vezes são deixados de lado. Muitas populações afetadas pelas novas tecnologias não têm voz nas decisões que impactam diretamente suas vidas. Como articular os diversos saberes — técnicos, locais, empíricos — num processo democrático e inclusivo? Como garantir que o risco seja compreendido não apenas por parâmetros laboratoriais e privados, mas também pelas vivências de quem o enfrenta diariamente? Essas são algumas das perguntas para as quais os estudos sociais em ciência e tecnologia seguem tentando encontrar respostas.
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