Como transformar evidências científicas em políticas públicas eficazes? Uma conversa com o Dr. Alexandre Marques

Publicado por GEICT em

Por Thais Lassali

O GEICT conta com um novo pesquisador de pós-doutorado! O Dr. Alexandre Marques iniciou sua pesquisa no Programa de Pós Graduação em Política Científica e Tecnológica no começo do primeiro semestre de 2025, sob supervisão do Prof. Marko Monteiro e com financiamento da CAPES. Sua pesquisa investiga de que modo as evidências fomentadas pelo projeto AmazonFACE — que simula os impactos do aumento de CO₂ na floresta amazônica — podem ser incorporadas pelas políticas públicas brasileiras. O Blog do GEICT conversou com Alexandre Marques para saber mais detalhes sobre sua trajetória e sobre o projeto que será desenvolvido nos próximos anos.

Foto de Alexandre Marques, novo pesquisador de pós-doutorado do GEICT.
Foto de Alexandre Marques, novo pesquisador de pós-doutorado do GEICT. Foto de arquivo pessoal.

Uma trajetória preocupada com a questão ambiental

Formado em Geografia e com uma trajetória acadêmica voltada para a questão ambiental, o interesse em problemas ambientais surgiu  para Marques antes mesmo dele entrar na universidade. Entre 2000 e 2005, ele trabalhou na Embraer como técnico de ensaios de voo, realizando testes nos radares de aeronaves produzidas para o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), que tinham como objetivo proteger o espaço aéreo, bem como vigiar desdobramentos em terra da Amazônia Legal.

“Sempre fui fascinado por tecnologia aeroespacial, mas foi ali, naquela interface entre ciência aeroespacial, território e preservação, que a questão ambiental realmente me pegou. Esse envolvimento me levou à graduação em Geografia, onde comecei a compreender mais profundamente as relações entre sociedade, território e meio ambiente.”

O Trabalho Conclusão de Curso de Marques, realizado em 2005 na Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP) sob orientação da professora doutora Sandra Costa (UNIVAP), intitula-se “Projetos de MDL no Médio Vale do Paraíba Paulista”. O trabalho consistiu em uma revisão teórica sobre o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), um dos mecanismos de flexibilização criados pelo Protocolo de Kyoto para auxiliar o processo de redução de emissões de gases do efeito estufa, investigando a possibilidade de aplicação desse procedimento na paisagem do Vale do Paraíba. 

Alguns anos depois, já em 2014, Marques defendeu seu mestrado, realizado no Programa de Planejamento Urbano e Regional da mesma universidade onde se formou, dessa vez sob orientação do Professor Doutor Mario Valério Filho (UNIVAP). Sua dissertação, intitulada “Ordenamento e governança territorial: estratégias para proteção ambiental na APA de São Francisco Xavier – São José dos Campos – SP”, aprofundou o interesse do autor pela interface entre ordenamento territorial, governança ambiental e gestão de recursos hídricos, com foco na Área de Proteção Ambiental (APA) de São Francisco Xavier, localizada na Serra da Mantiqueira, Mata Atlântica.

Vista aérea da APA São Francisco Xavier, onde Marques realizou sua pesquisa de mestrado. Fonte: Fundação Florestal - Governo do Estado de São Paulo.
Vista aérea da APA São Francisco Xavier, onde Marques realizou sua pesquisa de mestrado. Fonte: Fundação Florestal – Governo do Estado de São Paulo.

Marques é doutor em Ciência do Sistema Terrestre pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), onde defendeu a tese “Governança adaptativa dos recursos hídricos do Vale do Paraíba Paulista: rede de atores e estratégias políticas de adaptação às mudanças climáticas”, que investiga a governança adaptativa dos recursos hídricos frente a cenários de mudanças climáticas extremas.

“Minha pesquisa combinou análise de redes e modelagem socioambiental para entender como diferentes atores — públicos, privados, sociedade civil e academia — articulam estratégias de adaptação em contextos marcados por incertezas. O interesse crescente pela modelagem socioambiental me levou a realizar um estágio de pesquisa na Wageningen University, na Holanda, onde integrei, sob a liderança da antropóloga Myanna Lahsen, o projeto internacional Comparing Climate Change Policy Networks (COMPON), aprofundando meus conhecimentos em redes de políticas e testando os efeitos de organizações sociais, significado cultural e mobilizações políticas nas respostas nacionais às mudanças climáticas de vário países”.

Fotografia do Rio Paraíba do Sul (nas proximidades da cidade paulista de Jacareí), que nomeia a região conhecida como Vale do Paraíba. Fonte: Wikipedia – OS2Warp.

Após defender seu doutorado, Marques permaneceu como pesquisador CNPq no INPE, atuando inicialmente no Departamento de Sensoriamento Remoto e Observação da Terra (DSR–OBT) e, posteriormente, no Laboratório de Aplicações de Dados Espaciais de Apoio à Sociedade (LADES). Também integrou o Programa PRODES, que realiza o monitoramento, por meio do uso de satélites, do desmatamento por corte raso na Amazônia Legal, e o Climate Social Science Network (CSSN), da Universidade de Brown (EUA). Nesse segundo, participa, até hoje, de pesquisas voltadas ao papel do agronegócio brasileiro na política climática, analisando “os discursos produzidos por empresas do setor, suas preferências políticas e estratégias de financiamento, investigando como essas narrativas se conectam com o uso do solo e os processos de desmatamento no país”. Atualmente, o pesquisador desenvolve, no GEICT, um pós-doutorado voltado a uma pergunta que está no centro dos debates sobre o futuro climático do país: como transformar dados científicos robustos sobre a Amazônia em políticas públicas mais efetivas?

As arenas onde ciência e política se encontram

A pergunta acima não tem uma resposta simples. Em outras palavras, o que ela busca entender é a tensa e complexa relação entre a produção de conhecimento científico e a aplicação desse conhecimento em problemas concretos, na forma de políticas públicas, por entes das mais diferentes esferas governamentais. No cerne dessa questão está a ideia de governança. Como debatido por Mauricio Berger em um seminário que recebeu a cobertura do Blog, esse conceito tem um lado analítico que tenta compreender de que modo a produção de conhecimento auxilia no estabelecimento de políticas públicas, ao mesmo tempo que tenta entender essa relação como uma arena de disputas. Assim, a dificuldade em tornar o que se produz em grupos e projetos de pesquisa em impacto real na formulação de políticas não é meramente técnica.

Isso porque tanto a ciência quanto a criação de políticas públicas, ainda que tidas em geral como totalmente racionais e neutras, são permeadas por interesses, ruídos e complexidades. E é justamente essa compreensão que é basilar para a pesquisa de Marques. Segundo o pesquisador, 

“O que eu tento mostrar na minha pesquisa é que a interface entre ciência e política é atravessada por dinâmicas de poder, disputas de interesse, e diferentes formas de entender o problema. Ou seja, não basta produzir ciência de ponta, é preciso entender também como esse conhecimento circula, é interpretado e disputado por diferentes atores.”

Assim, ele critica a visão tradicional das chamadas Políticas Públicas Baseadas em Evidências (PPBEs), que frequentemente operam com uma lógica linear: como se a ciência simplesmente produzisse os fatos e os formuladores de políticas basicamente os traduzissem e os aplicassem. 

“Historicamente, o modelo linear [da PPBEs] reflete a ideia de que a ciência pode oferecer soluções universais para problemas políticos, apoiando-se em uma visão positivista, sistematizada pelas ciências naturais, [que crê em] um mundo singular para a ciência representar, e os formuladores de políticas governarem. Particularmente penso diferente, o meu projeto de pesquisa propõe mostrar as políticas climáticas como aquilo que o cientista político Guy Peters chama de “super wicked problems”, pautado pela não-linearidade, multicausalidade, apresenta resistência dos atores envolvidos a sua resolução, a sua solução não se baseia em apenas um tipo de conhecimento, e mesmo dependendo de grande ferramental técnico e científico, a avaliação do problema também é normativa e depende de valores.”

É nesse contexto que surge um conceito central para a pesquisa de Marques: as arenas transepistêmicas. Proposto pela socióloga austríaca Karin Knorr-Cetina (1982), o conceito descreve espaços onde se encontram cientistas, formuladores de políticas, sociedade civil e setor produtivo para negociar o que conta como conhecimento legítimo e relevante. Compreender a relação entre os entes citados como uma arena passa também pela compreensão que é necessário construir pontes entre o mundo científico e o político, e vice-versa, que são fundamentais para que nem a ciência nem a política se isolem uma da outra. “A [economista estadunidense Elinor] Ostrom também chama isso de “arenas de ação” (1990), e acho que esse paralelo é importante: são espaços de negociação, onde se disputa sentido, legitimidade e poder”, elucida Marques.

AmazonFACE e CIM como arenas transepistêmicas

Assim, colocando em termos práticos, a pesquisa de Alexandre Marques tem como objetivo observar como um ambicioso e complexo projeto de pesquisa com o AmazonFACE pode, ou não, influenciar as decisões tomadas por arenas de ação como o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM). O AmazonFACE tem como objetivo avaliar os efeitos do aumento de CO2 na resiliência da Floresta Amazônica. O escopo do projeto se encontra na relação entre duas siglas: AFOLU, acrônimo para Agriculture, Forestry and Other Land Uses (Agriculturas, florestas e uso do solo), e LULUCF, Land Use, Land Use Change and Forestry, ou “uso da terra, mudança no uso da terra e florestas”. Ambas têm um papel central tanto nas emissões quanto no potencial de mitigação do Brasil. Esses setores concentram as principais dinâmicas associadas ao desmatamento, uso do solo e emissões relacionadas ao agronegócio e à pecuária.

Gráfico demonstrando a importância do setor LULUCF para as emissões de gases no ano de 2022 no Brasil. Fonte: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Primeiro Relatório Bienal de Transparência do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. 2024. Disponível em: https ://www .gov .br /mcti /pt -br /acompanhe -o -mcti /sirene /publicacoes /relatorios -bienais -de -transparencia -btrs /BRA_BTR1_2024_ENG.pdf .
Gráfico demonstrando a importância do setor LULUCF para as emissões de gases no ano de 2022 no Brasil. Fonte: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Primeiro Relatório Bienal de Transparência do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. 2024. Disponível em: https ://www .gov .br /mcti /pt -br /acompanhe -o -mcti /sirene /publicacoes /relatorios -bienais -de -transparencia -btrs /BRA_BTR1_2024_ENG.pdf .

Colocando em dados concretos, tais setores foram responsáveis por cerca de 70% das emissões nacionais de gases de efeito estufa, segundo o Primeiro Relatório Bienal de Transparência do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, elaborado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em 2024. Isso ganha ainda mais relevância diante do compromisso, firmado pelo governo brasileiro na COP29, em relação às metas climáticas do Brasil, quando se estabeleceu o comprometimento em reduzir de 59% a 67% as emissões líquidas de gases-estufa até 2035, em relação a 2005, estipulando a meta de se atingir a neutralidade de carbono até 2050. 

Marques fará uma pesquisa com recorte específico: o CIM – Comitê Interministerial de Mudanças Climáticas. Ele foi criado pelo Decreto Federal 12.040/2024, sendo um comitê de caráter permanente e que tem por finalidade monitorar e promover a implementação das ações e das políticas públicas no âmbito do Poder Executivo Federal relativas à Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). O projeto de Alexandre Marques focará este comitê  para identificar como a produção de evidências científicas, por parte de um projeto do porte do AmazonFACE, pode percolar em arenas de ação como o CIM, servindo para, além de cumprir seus objetivos científicos, informar políticas em âmbito federal.

Estrutura de governança do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM). Fonte: . Ministério do Meio Ambiente, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mma.
Estrutura de governança do Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM). Fonte: . Ministério do Meio Ambiente, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mma.

Uma metodologia: a Análise de Redes Sociais

Para entender essa dinâmica, a pesquisa utiliza como metodologia a Análise de Redes Sociais (ARS). Oriunda da intersecção entre a antropologia e a sociologia, a ARS parte da ideia de “rede social” para compreender as complexidades das interações entre os mais variados atores sociais. Nesse contexto, se consideram como atores sociais os indivíduos, os grupos e as instituições. Ao invés de se focar apenas nas estruturas sociais ou apenas na ação individual, a ARS tenta aliar essas duas visões, compreendendo as relações sociais por meio dos padrões das interações entre os atores. A partir disso, o que essa metodologia procura tornar visível são as dinâmicas dos processos sociais, bem como o modo como elas se configuram.

Em outras palavras, esse instrumento metodológico permite mapear relações entre pessoas, instituições e fluxos de informação. No caso da pesquisa aqui descrita, a ARS permite observar quem são os atores que facilitam — ou bloqueiam — a circulação do conhecimento científico.

“Isso porque, quando a gente fala da relação entre ciência e política, não estamos lidando apenas com ideias ou dados, mas com relações sociais concretas — com pessoas, instituições e fluxos de informação. E é justamente esse componente relacional que o ARS permite mapear e analisar.  Essa abordagem parte do pressuposto de que a probabilidade de uma evidência científica ser usada em uma decisão política depende, em grande parte, da estrutura da rede em que ela circula.”

Exemplo de grafo gerado por pesquisa, de autoria de Alexandre Marques, dentre outros autores, que utilizou a metodologia da Análise de Redes Sociais. Fonte: Marques et al. "Governança da água no Vale do Paraíba Paulista: Rede de Atores e Sistemas Socioecológicos". Ambiente & Sociedade, Vol. 23, 2020.
Exemplo de grafo gerado por pesquisa que utilizou a metodologia da Análise de Redes Sociais, de autoria de Alexandre Marques, dentre outros autores, . Fonte: Marques et al. “Governança da água no Vale do Paraíba Paulista: Rede de Atores e Sistemas Socioecológicos”. Ambiente & Sociedade, Vol. 23, 2020.

Para a ARS, ao mesmo tempo que as estruturas da rede ajudam a moldar o comportamento dos atores, esses mesmos atores também podem reconfigurar a rede de modo a alcançarem seus objetivos. Nesse sentido, observa Marques, “certos indivíduos ou instituições funcionam como ‘nós de mediação’”. Elas podem tanto facilitar quanto dificultar a circulação do conhecimento, por exemplo, do AmazonFACE até os espaços decisórios, como o Comitê Interministerial de Mudança do Clima. Assim, a metodologia utilizada por Marques na pesquisa o permite não apenas visualizar as conexões entre diferentes atores, mas também entender quem influencia quem e como essas influências operam na prática.

“O que eu espero com esse projeto é justamente contribuir para o fortalecimento do uso de evidências científicas do AmazonFACE nas políticas climáticas brasileiras. Ao integrar métodos como ARS e a etnografia da ciência, eu quero entender melhor como o conhecimento científico é negociado, legitimado — e, muitas vezes, disputado — nas arenas onde ciência e política se encontram, especialmente nos setores AFOLU e LULUCF. A combinação de métodos qualitativos e quantitativos vai me permitir fazer um diagnóstico mais preciso das barreiras que ainda dificultam essa integração, mas também das oportunidades que existem para tornar as políticas públicas mais sensíveis à complexidade da realidade amazônica. O mapeamento das redes e fluxos de informação, por exemplo, vai ajudar a analisar o papel estratégico do Comitê Interministerial de Mudança do Clima, o CIM, e como ele pode se articular melhor com outros atores e incorporar a ciência de forma mais efetiva. No fim das contas, a ideia é que a pesquisa gere não só conhecimento acadêmico, mas também subsídios práticos para políticas públicas mais integradas, baseadas em evidências e voltadas à justiça climática.”

Referências bibliográficas

Knorr-Cetina, K. D. “Scientific Communities or Transepistemic Arenas of Research? A Critique of Quasi-Economic Models of Science”. Social Studies of Science, n. 12, vol. 1, 1982, pp. 101-130. https://doi.org/10.1177/030631282012001005.

Ostrom, E. Governing the commons. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1990.


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