The Ghost Work: Inteligência Artificial e precarização do trabalho
Por Rodrigo Ramírez Autrán
Rodrigo Autrán é pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Investigaciones Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México. Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade de Campinas. Antropólogo social interessado pelos tópicos da apropriação tecnológica, transferência de conhecimento e, mais recentemente, pelos impactos socioculturais da Inteligência Artificial.
I
Uma mão automática se move e uma peça do xadrez avança “magicamente”. Uma após a outra as partidas eram sempre ganhas por esta proeza da mente humana. No entanto, dentro dele estava um segredo que não seria revelado até quase um século depois. “O Turco” foi uma famosa estrutura que se pensava ser um autômato jogando xadrez. Foi construída por Wolfgang von Kempelen (1734-1803) no ano de 1769. Tinha a forma de uma cabine de madeira, com um manequim vestido com túnica e turbante sentado sobre ele. A cabine tinha portas que uma vez abertas mostravam um mecanismo de relojoaria e quando estava ativada era capaz de jogar uma partida de xadrez contra um jogador humano em alto nível. A cabine era uma ilusão de ótica bem projetada que permitia um mestre de xadrez de baixa estatura se esconder dentro dela e operar o manequim, graças ao fato de que os olhos do manequim enviavam ao mestre de xadrez as posições das peças do tabuleiro por meio de espelhos. Já no século XVIII o artista Joseph Racknitz desenhou como poderia ser este manequim, nomeando-a anos depois: a Máquina Turca.

II
Avançamos no tempo quase 200 anos, agora estamos em Palo Alto Califórnia, na meca das Big Tech, o Silicon Valley. Uma mulher de meia idade, antropóloga de formação e especialista em inovação tecnológica por caprichos do destino, junto com um programador renomado, escrevem um livro revelador: Ghost Work. Como impedir que o Vale do Silício crie uma nova subclasse global. Mary L. Gray não é uma antropóloga tradicional, ela trabalha no Microsoft Research1 como pesquisadora e preside o Comitê de Ética da empresa. Também é membro do Centro Berkman Klein para a Internet e a Sociedade da Universidade de Harvard, paralelamente é professora e membro do Comitê Permanente da Universidade de Stanford para seu projeto AI100, encarregado de refletir sobre o futuro da Inteligência Artificial (IA). Seu parceiro é Siddharth Suri, ele se considera também um “informático social” e trabalha há vários anos na Microsoft Research. Juntos fizeram uma etnografia instigante sobre o que podemos chamar de fábricas modernas. Sua inquietação nasceu quando eles perceberam que não tinham ideia de quem compunha essa massa gigantesca de pessoas, que passam horas e horas atrás de seus computadores em trabalhos que não estão catalogados e que não pertencem a nenhum lugar específico. Na sua etnografia, eles examinaram o impacto da automação no futuro do trabalho através das experiências dos trabalhadores da economia online sob demanda (a chamada Gig Economy), muitas vezes caracterizada por longas jornadas de trabalho mal pagas, que carece de leis trabalhistas associadas e de benefícios sociais: o trabalho “fantasma”.
III
“Turkin” é como tem sido chamado de tarefas rotineiras como a marcação, moderação, comentar, traduzir, ou classificar publicações e outros tipos de trabalhos de “computação humana”2: trabalhos que começam e terminam online e que executam qualquer tipo de tarefa que possa ser gerenciada, processada, executada e paga online. Assim vemos como as interfaces de etiquetagem de dados evoluíram para tratar este tipo de trabalhadores como máquinas, muitas vezes atribuindo-lhes tarefas altamente repetitivas, monitorando seus movimentos e penalizando desvios através de ferramentas automatizadas. Segundo Gray e Suri, essa forma de trabalho, ainda por classificar, não é intrinsecamente boa ou má, no entanto, o problema reside no que poderia tornar invisível o trabalho de centenas de milhões de pessoas, e enquanto eles permanecem na sombra, sem definição e escondidos dos consumidores, não terão direitos.
Agora, com a promessa de maior flexibilidade no uso do tempo pessoal, empresas globais como a Amazon implementaram há alguns anos uma plataforma chamada Mechanical Turk (MTurk)3 (lembram-se do “autômato”, a Máquina Turca da qual lhes falei parágrafos acima?). “Mais trabalho, mas pior”, afirmaram categoricamente Gray e Suri sobre este tipo de “novo” trabalho nas sombras; ao mesmo tempo, para esses autores seu livro quebra com a linha de pensamento que assegura que as máquinas substituirão os seres humanos no trabalho e que a automação destruirá o emprego: isto é o que eles chamam o paradoxo da última milha de automação “o grande paradoxo da automação é que o desejo de eliminar o trabalho humano [agora fortemente apoiado pela IA] sempre gera novas tarefas para os humanos” (Gray e Suri, 2019).

IV
A Amazon, por sua vez, chama HIT (Tarefas de Inteligência Humana em português), a estes trabalhos por encomenda. Para ser candidato a esses trabalhos, você precisa mostrar certas “qualificações”. Mas, este termo não se relaciona com as habilidades (cognitivas, manuais, intelectuais, etc.), no mundo de MTurk, as qualificações podem ser aspectos como a idade, o sexo e muito especialmente a localização de quem trabalha. A Amazon afirma ter 500 mil trabalhadores registrados em seu modelo MTurk, e se aplicarmos essa lógica a todas as plataformas on-demand, poderia haver milhões de empregos em tempo integral na sombra do trabalho fantasma.
Como se não bastasse, para toda essa situação de opacidade e precariedade, encontramos outro aspecto extremamente alarmante na história por trás de uma série de documentos internos da Amazon. A história conta o vazamento de documentos confidenciais por ex-funcionários da empresa, em tais documentos alguns dos CEOs alegaram a seus acionistas que vários de seus processos de Turkin foram realizados apenas por algoritmos baseados em Inteligência Artificial, porém, mais tarde descobriu-se que isso era mentira e que não só não estava sucedendo e isso nem chegava perto da realidade da empresa. Aquele vazamento de documentos colocou em questão um dos mantras das grandes empresas autodenominadas de AI First, como a própria Amazon, no qual se prioriza fortemente a automatização e digitalização de seus processos em toda a costa e custe o que custar.

V
No novo mundo do trabalho na “linha de montagem digital global”, as pessoas são a pequena engrenagem desta enorme maquinaria. Assim, no mainstream da cultura pop, a ideia de máquinas superinteligentes (Hall 900, o T-800 ou TARS)4 com sua própria agência e poder de decisão, não só está longe da realidade, mas nos distrai dos riscos potenciais reais para as vidas humanas que cercam a implementação de sistemas de IA. Enquanto o público, estamos distraídos com a promessa de máquinas conscientes inexistentes, um exército de trabalhadores precários apoia/suporta as supostas conquistas dos sistemas de Inteligência Artificial atuais: “[…] longe das sofisticadas máquinas conscientes que se apresentam nos meios e na cultura pop, os chamados sistemas de IA alimentam-se de milhões de trabalhadores mal pagos em todo o mundo, que realizam tarefas repetitivas em condições precárias de trabalho. E ao contrário dos pesquisadores de IA que ganham salários milionários nas corporações do Vale do Silício, esses trabalhadores explorados são geralmente recrutados em populações empobrecidas e recebem salários de apenas 1,46 dólares por hora após impostos”5. Em outras palavras, todo um exército industrial de reserva global, no estilo do pensamento de Marx: despossuído e pronto para trabalhar quando for designado.
De fato, achamos o caso empírico da Builder.ai, empresa sediada em Londres e financiada pela Índia e Dubai, que prometeu desenvolver um software de IA revolucionário e até enganou a gigante Microsoft. Em vez de algoritmos baseados em IA, descobriu-se que se tratavam de 700 engenheiros de computação precários. A empresa alegava que sua plataforma sem código e alimentada por IA poderia construir software em módulos, como “peças de Lego”. No entanto, a realidade era bem diferente e, após o pedido de falência e a intervenção de seus credores, descobriu-se que por trás dessa fachada tecnológica havia apenas um exército de programadores humanos: a necessidade da inteligência natural, não da artificial.
Nesse sentido, considera-se interessante a pesquisa social futura que avalie os impactos e as mudanças decorrentes desse novo tipo de trabalho não profissional planetário. Por exemplo, encontramos o projeto internacional Ghostwork6, inspirado nas pesquisas de Gray e Suri, que é conduzido pela Universidades de Utrecht e financiado por instituições renomadas como o Conselho Europeu de Pesquisa e a União Europeia. O primeiro resultado desse projeto é o artigo científico Lost in the Crowd? An investigation into where microwork is conducted and classifying worker types, recentemente publicado na European Journal of Industrial Relations. Nele, os pesquisadores e pesquisadoras levantam duas questões fundamentais: Onde na Europa esse tipo de microtrabalho é realizado? Quem o realiza? Com base na geolocalização de 5.239 trabalhadores na União Europeia, eles conseguiram identificar variações na prevalência relativa do microtrabalho em comparação com outros países do norte global. Além disso, eles distinguiram quatro classes diferentes de microtrabalhadores em termos de diversidade laboral e dependência econômica. A identificação dessa variação geográfica na prevalência dessas diferentes classes de microtrabalhadores sugere a importância tanto da heterogeneidade laboral quanto dos contextos geográficos para o futuro estudo e regulamentação do microtrabalho.
Infelizmente, este tipo de microtrabalho ou trabalho fantasma que os especialistas descreveram não mostra sinais aparentes de declínio. Em vez disso, ele estará se constituindo nos próximos anos como uma das principais formas de extração global e precarização, possivelmente uma forma de divisão internacional do trabalho para a qual não estamos preparados como sociedade. Em 2006, o matemático britânico Clive Humby cunhou a frase que tem sido repetida incessantemente “os dados são o novo petróleo”, por isso sob esta nova configuração, as novas refinarias planetárias podemos encontrá-las em “qualquer lar” do mundo, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano.
Epílogo:
Os Humanos Trabalhando por Trás da Cortina da IA
Mary L. Gray, Siddharth Suri na The Harvard Business Review

“Sejam os trending topics do Facebook; a entrega do Prime pela Amazon via Alexa; ou as inúmeras respostas instantâneas de bots que agora recebemos às atividades ou reclamações de um consumidor, as tarefas anunciadas como impulsionadas pela IA envolvem humanos trabalhando em frente a telas de computador, pagos para responder a consultas e solicitações enviadas a eles por meio das interfaces de programação de aplicativos (APIs) dos sistemas de crowdsourcing. A verdade é que a IA é tão “totalmente automatizada” quanto o Mágico e Poderoso Oz era naquela famosa cena do filme clássico, onde Dorothy e seus amigos percebem que o grande mago é simplesmente um homem puxando alavancas freneticamente por trás de uma cortina”.
Notas
- A Microsoft Research (MSR) é a divisão de pesquisa da Microsoft. Foi fundada em 1991 para aprimorar o estado da arte em computação e solucionar problemas desafiadores. Atualmente, emprega mais de 1.000 cientistas da computação, físicos, engenheiros e matemáticos, incluindo vencedores do Prêmio Turing, da Medalha Fields, do MacArthur Fellows e do Prêmio Dijkstra, entre muitos outros especialistas renomados em ciência da computação, física e matemática. ↩︎
- https://www.xataka.com/robotica-e-ia/falacia-destruccion-empleo-investigadora-microsoft-mary-gray-trabajo-no-desaparece-se-precariza ↩︎
- https://www.fastcompany.com/90349046/what-its-really-like-to-be-one-of-the-ghost-workers-on-amazons-mechanical-turk ↩︎
- Exemplos de inteligência artificial avançada retirados, respectivamente, dos filmes hollywoodianos 2001: A Space Odyssey (Kubrick, 1968), Terminator (Cameron, 1984) e Interstellar (Nolan, 2014). ↩︎
- https://www.noemamag.com/the-exploited-labor-behind-artificial-intelligence/ ↩︎
- https://www.ghostwork.org/ ↩︎
0 comentário