Juntas e barulhentas: conheça a Rede Latinoamericana de Antropologia Feminista das Ciências e Tecnologias (RAFeCT)

Publicado por GEICT em

Por Clarissa Reche

Faz mais de dez anos que construo relações de interlocução com jovens cientistas brasileiros que atuam no campo da Biologia Sintética. Este grupo é interdisciplinar e profundamente heterogêneo, abarcando pessoas de um amplo espectro político, desde hackers anarquistas anticapitalistas até cientistas empreendedores, passando por pessoas que verdadeiramente cultuam a Ciência. Para essas pessoas, que estão trabalhando dentro da universidade, até a menção de uma “política científica” é escandalosa e macula a noção de ciência pura e desinteressada que creem e praticam. Mas, felizmente, este espaço ainda se mantém ativo e aberto para acaloradas discussões sobre a natureza do fazer científico, mesmo depois da ascensão do tecnofascismo vivido nos últimos anos, que ceifou tantos espaços de troca entre pares tão diversos. 

Foram nestes espaços de troca que ouvi e vivi na pele, pela primeira vez na minha vida, a clássica acusação de que as feministas são seres barulhentos demais, histriônicos, e como tais não podem ser levadas a sério, ainda mais quando ousam opinar sobre ciência e tecnologia. Esse tipo de acusação costumava vir de cientistas que tinham um profundo interesse em filosofia e história da ciência. Armados com um monte de nomes de Grandes Filósofos do Ocidente (leia-se euro-estadunidenses), tratavam como extremamente perigosa as proposições das filósofas feministas, rapidamente relegando seu pensamento a, no máximo, base para “pseudociência”. E, em mais de uma ocasião, buscaram desmoralizar toda uma corrente teórica com base em trechos isolados de uma ou outra pensadora feminista. Afinal, como essa mulher ousa nomear de ESTUPRO o que nossos Grandes Homens da Ciência criaram, e que moldam o que somos hoje?

Um fenômeno em que historiadoras feministas se concentraram são as metáforas de estupro e tortura nos escritos de Sir Francis Bacon e outros (por exemplo, Maquiavel) entusiasmados com o novo método científico. Historiadores e filósofos tradicionais têm afirmado que essas metáforas são irrelevantes para os significados e referentes reais dos conceitos científicos (…). Mas quando se trata de considerar a natureza como uma máquina, eles têm uma análise bem diferente: aqui, nos dizem, a metáfora fornece as interpretações das leis matemáticas de Newton (…). Mas se devemos acreditar que as metáforas mecanicistas foram um componente fundamental das explicações fornecidas pela nova ciência, por que deveríamos acreditar que as metáforas de gênero não o foram? Uma análise consistente levaria à conclusão de que compreender a natureza como uma mulher indiferente ou mesmo acolhedora ao estupro foi igualmente fundamental para as interpretações dessas novas concepções de natureza e investigação. Presumivelmente, essas metáforas também tiveram consequências pragmáticas, metodológicas e metafísicas frutíferas para a ciência. Nesse caso, por que não é tão esclarecedor e honesto referir-se às leis de Newton como “manual de estupro de Newton” quanto chamá-las de “mecânica de Newton”? (Harding, 1986, p. 113, tradução minha)

Hoje um texto fundante da cŕitica feminista à ciência e tecnologia, o livro “The Science Question in Feminism” de Sandra Harding, que contém o trecho acima, ainda causa turbulência e perturba a emoção daqueles que se alinham à uma visão política da Ciência como algo imaculado, mesmo depois de quase quarenta anos do seu lançamento. O trabalho de Harding se soma ao de tantas outras feministas que durante as décadas de 1980 e 1990 se dedicaram a esmiuçar as metáforas científicas, apontando o modo como a natureza é descrita e abordada na produção de conhecimento científico, e relacionando estes pensamentos e procedimentos às opressões sofridas por mulheres, pessoas racializadas e demais minorias historicamente marginalizadas. 

Esta agenda foi importantíssima para o desenvolvimento de pesquisas que se atentam para como os discursos e práticas científicas se constroem mutuamente, e ajudam na fabricação do que entendemos por realidade. Falando especificamente do campo em que atuo, a antropologia da ciência e tecnologia, a produção destas teóricas feministas está profundamente imbricada no tipo de pesquisa que fazemos hoje em dia. Mesmo importantes teóricos do campo que não são explicitamente feministas (como Bruno Latour, por exemplo) constroem amplos diálogos com pesquisadoras feministas, o que mostra o quão fundante é o pensamento feminista para a antropologia da ciência e tecnologia.

Mas, apesar disso, nosso campo de atuação, no Brasil e na América Latina, é altamente masculino e hostil. Ainda enfrentamos dificuldades para carregar para dentro de nossas pesquisas e de nossos departamentos questões que são importantes para nós. Quando nos posicionamos como feministas, o que encontramos são restrições de circulação que se traduzem em, por exemplo, a compreensão que determinados temas de pesquisa são mais “apropriados” para o que fazemos. Seguimos disputando espaços, mas também começamos a criar os nossos próprios meios para nos conhecer e nos fortalecer, pensando e trabalhando juntas. A RAFeCT surge dentro deste caldeirão.

A Rede Latino-Americana de Antropologia Feminista da Ciência e Tecnologia (RAFeCT) é composta por pesquisadoras, ativistas e profissionais latino-americanas comprometidas com a difusão de perspectivas feministas e interseccionais. Nossa rede é um espaço de acolhida, produção de conhecimento e articulação entre academia, movimentos sociais e outros campos. Desenvolvemos estudos sobre ciência e tecnologia a partir de um olhar situado, parcial e interseccional — uma perspectiva ética e politicamente engajada, voltada à promoção da justiça social, da equidade de gênero e ao enfrentamento das opressões estruturais. Atuamos sustentadas em princípios de criatividade, afetividade e cuidado, cultivando práticas e teorias feministas críticas que são transinclusivas, antirracistas, decoloniais, anticapacitistas, anticapitalistas e contrárias a todas as formas de LGBTQIAPN+fobia.

A RAFeCT começou a ser gestada em 2023, durante o 14º Encontro de Antropologia do Mercosul (RAM, Brasil), ocorrido entre os dias 1o e 4 de agosto na Universidade Federal Fluminense (UFF) e o 9º Encontro de Antropologia da Ciência e Tecnologia (ReACT, Brasil), que ocorreu entre os dias 21 e 24 de novembro na Universidade Federal de Goiás. O primeiro movimento para isso ocorreu dentro da pesquisa “Um mundaréu de histórias: antropologia feminista da ciência e da tecnologia na América Latina”, conduzida sob coordenação de Daniela Tonelli Manica (Labjor/Unicamp), em colaboração com Soraya Fleischer (DAN/UnB) e financiada pela FAPESP. Nesta pesquisa, realizamos um um mapeamento de pesquisas na área da antropologia da ciência e da tecnologia produzidas no Brasil, na Colômbia e na Argentina, com perspectivas feministas antirracistas, interseccionais e decoloniais. A partir deste mapeamento, Ppercebemos coletivamente a necessidade de nos organizarmos.

Reconhecemos que a academia ainda perpetua desigualdades, prejudicando determinados pesquisadores e marginalizando certos temas. Também afirmamos que a hegemonia heterocisnormativa na antropologia sufoca sua potência criativa. Somos múltiplas, diversas e atuamos de modos distintos. Trabalhar em rede é essencial para construir pontes entre resistências feministas dentro e fora da universidade, criando espaços de denúncia e enfrentamento de formas de opressão como o sexismo, o racismo, a LGBTQIA+fobia e outras violências. Nosso trabalho é garantir que as vozes, pesquisas e experiências de mulheres e pessoas dissidentes de gênero — especialmente aquelas em contextos de marginalização — sejam evocadas, escutadas e respeitadas. Nossas ações representam passos decisivos para transformar os campos acadêmico e científico, tornando-os mais inclusivos e comprometidos com a equidade.

Atualmente, reunimos mais de 28 grupos de pesquisa e laboratórios, além de 73 pesquisadoras, abrangendo áreas como antropologia, arqueologia, saúde pública, ciência da computação e artes. Temos presença em todas as regiões do Brasil, assim como na Argentina, no Chile e na Colômbia. A rede promove encontros de diálogo e apoio, organiza eventos, grupos de discussão e seminários, e fortalece a produção e a circulação do pensamento feminista. Buscamos expandir continuamente nossas conexões, aprofundar laços com movimentos sociais feministas e consolidar nossa presença em espaços estratégicos de tomada de decisão, tanto na academia quanto fora dela. Pretendemos ainda intensificar a realização de eventos, publicações, encontros e cursos em programas de graduação e pós-graduação, avançando na disseminação das teorias que sustentam os estudos de ciência e tecnologia (CTS) feministas. Nosso objetivo é incidir em políticas públicas e transformar a ciência e a tecnologia em campos efetivamente inclusivos e acolhedores.

Acreditamos no florescimento da ciência feminista. Um de nossos passos nesse caminho é a criação e manutenção de nosso blog, lançado em maio de 2025 com a colaboração de antropólogas da rede. Além disso, fazemos a divulgação de atividades realizadas pelas participantes da rede, e propomos ocupações em eventos científicos através de mesas, grupos de trabalho, etc. É assim, juntas, “de mãos dadas”, que seguimos caminhando dentro de nosso campo de atuação e ousando tecer conhecimento sobre ciência e tecnologia, buscando cada vez fazer mais barulho. Convido os leitores do Blog do GEICT a conhecerem nossa rede, nossas pesquisadoras, laboratórios e os textos que temos publicado.

Vida longa à RAFeCT!


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