A metamorfose dos sonhos inquietantes de Kafka

Com alusões a noites mal-dormidas e sonhos inquietantes, A Metamorfose é um reflexo da insônia crônica que assolava Kafka

“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.” A maioria das pessoas choca-se com o inseto que aparece na abertura da mais famosa obra de Franz Kafka, mas talvez devêssemos prestar atenção aos sonhos inquietantes que antecedem seu despertar entomológico. Para dois pesquisadores italianos, está aí a origem d’A Metamorfose.

Como o escritor checo sofria de uma insônia constante, ele costumava escrever durante a noite. Mesmo dormindo pouco ou nada, ele levantava cedo todo dia para trabalhar numa agência de seguros — um emprego que ele detestava. Parece uma rotina banal nos dias de hoje e talvez seja por isso que Kafka seja tão popular neste começo de século XXI.

Mas o problema do autor d’O Processo não estava exatamente no trabalho. O que lhe tirava o sono era o próprio sono: de certo modo, Kafka parecia ter medo de dormir. “Talvez eu tema que a alma, que me deixa no sono, não seja capaz de retornar”, confessou ele numa carta à escritora Milena Jesenská [1896-1944], que traduzia Kafka para o checo. Em um trecho do seu diário, ele diz que “era o poder dos meus sonhos, brilhando em meio à vigília, antes mesmo de eu cair no sono, o que não me deixava dormir”.

Essas e outras descrições da rotina insone de Kafka têm sido usadas por médicos e psicólogos para fazer os mais diversos diagnósticos. Polêmicos, os diagnósticos póstumos são sempre especulativos, baseados em poucas ou escassas evidências e por vezes exagerados. Independente de suas causas, essa ansiedade pré-sono teve papel importante na obra de Kafka. Essa é a linha de argumentação feita pelo médico italiano Antonio Perciaccante e sua esposa, Alessia Coralli, em paper publicado em setembro passado no renomado jornal médico The Lancet.

Para o casal italiano, as experiências relatadas por Kafka, especialmente daqueles sonhos que o impediam de dormir, “parecem ser uma clara descrição de uma alucinação hipnagógica, uma alucinação visual vívida experimentada logo antes do adormecer”. A maioria das pessoas passa por isso alguma vez na vida, mas para Kafka essa seria uma experiência recorrente. Temendo o sono, ele ficaria nesse estado intermediário o máximo possível. Não sabemos como ele fazia isso, mas esses sonhos intranquilos devem ter sido a inspiração do criador de Gregor Samsa.

Para chegar a essa conclusão, Perciaccante e Coralli buscaram evidências nos diários de Kafka e cartas que ele escreveu para a amiga Jesenká e sua noiva, Felice Bauer [1887-1960]. Também foram revisadas as obras do autor bem como suas biografias e interpretações. Juntando tudo isso, os italianos criam um panorama “psicofisiológico” dos sonhos kafkianos. Seu foco está menos nas causas e mais nos efeitos desse estado hipnagógico permanente.

Embora escrever possa nos parecer uma forma de alívio terapêutico para a insônia, não há indícios de que esse seja o caso de Kafka. Às vezes parece que escrever era tão sofrível quanto passar noites em claro. “Quando não escrevo”, ele contou a Jesenská, “estou apenas cansado, triste, pesado; quando escrevo, sou dilacerado pelo medo e a ansiedade”.

Além de apresentar um quadro de alienação social e familiar, A Metamorfose, segundo Perciaccante, “pode também representar uma metáfora dos efeitos negativos que o sono de má qualidade, curta duração e a insônia podem ter sobre a saúde física e mental”.

Mais do que isso, Kafka via na insônia uma espécie de mal da alma, inclusive com efeitos morais: “O sono é a mais inocente criatura que existe e o homem insone é o mais culpado”, escreveu em seu diário. Não é à toa que numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Franz Kafka tenha se sentido tão culpado que se viu transformado num gigantesco inseto.

Referência

rb2_large_gray25PERCIACCANTE, Antonio; CORALLI, Alessia. Franz Kafka’s insomnia and parasomnias [Insônia e parassônias de Franz Kafka]. The Lancet Neurology. vol. 15, n. 10, p. 1014, setembro de 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/S1474-4422(16)30168-5


Bônus: em que inseto se transformou Gregor Samsa? O autor de Lolita dá a resposta.


[via Open Culture]

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