Uma descoberta acidental e revolucionária durante a pandemia não era uma coisa nem outra. Foi apenas um engano.
Corria o ano de 2020 e, por causa da pandemia de coronavírus, inúmeros eventos foram cancelados. Na Índia, por exemplo, uma conferência científica de geologia deixou de ser realizada por causa da COVID-19. Diante do cancelamento, alguns cientistas que já haviam chegado ao local do evento tentaram aproveitar sua estadia na Índia da melhor maneira possível.
Foi assim que um grupo de geólogos foi parar nos Abrigos da Rocha de Bhimbetka, um conjunto de cavernas situado perto de Bhopal. Ao passar os olhos por uma parede do complexo, os pesquisadores um fóssil de Dickinsonia — um animal primitivo achatado, que viveu muito antes de organismos mais complexos. Como um Dickinsonia nunca tinha sido descoberto em território indiano, era uma descoberta importante — e talvez revolucionária.
Acontece que há controvérsias em torno da idade das rochas que formam o subcontinente indiano. As estimativas variam entre 500 milhões e 1 bilhão de anos de idade. Meio bilhão de anos é muito tempo e uma grande margem de erro. Qualquer evidência capaz de reduzir essa incerteza ajudaria a esclarecer quando e como se formaram as terras do que hoje é a Índia.
Por isso, a descoberta da Dickinsonia dava peso à hipótese da Índia mais jovem, com “apenas” 500 milhões de anos. Era também uma boa história de um achado acidental que se torna revolucionário, o que chamou a atenção de jornais indianos e do resto do mundo. Deu no New York Times, inclusive.
Só que o fóssil não era um fóssil…
Uma característica mais visível de um fóssil é a sua imutabilidade. Quando se fossilizam, os restos de qualquer animal ou vegetal morto tornam-se tão sólidos e invariáveis quanto qualquer pedra. Fósseis não mudam de cor nem de forma. Naturalmente, era isso que esperavam os pesquisadores da Universidade da Flórida, que retornaram no ano passado ao local onde o Dickinsonia indiano foi descoberto.
Muita coisa mudou entre 2020 e 2022, mas um fóssil jamais deveria ter mudado. No entanto, ao observar o fóssil indiano, os pesquisadores notaram que ele estava bastante apagado. O leitor pode supor que o fóssil foi destruído por vândalos e dar o mistério por encerrado, mas não foi nada disso.
Quando foi ver o resquício de Dickinsonia in loco, Joseph Meert, professor de geologia da Universidade da Flórida, notou várias inconsistências. Segundo Meert, os fósseis daquela caverna só podem ser encontrados em superfícies planas horizontais, como o chão ou o teto. A Dickinsonia, porém, estava numa parede. Pior, o fóssil parecia estar descolando da rocha.
Para esclarecer o caso, Meert organizou uma investigação com Samuel Kwafo e Ananya Singha, seus alunos de graduação. O professor Manoj Pandit, da Universidade do Rajastão, também colaborou. O grupo documentou a rápida degradação do objeto com fotografias. Entre uma foto e outra, olhando os arredores do suposto fóssil, eles notaram a presença de muitas colmeias — e perceberam que as moradias das abelhas deixavam marcas semelhantes na face da rocha.
Com base nestas evidências, Meert e sua equipe chegaram à conclusão de que o fóssil não passava de uma pegada deixada por uma antiga colmeia no paredão da caverna. O que parecia ser uma Dickinsonia não passava do equivalente natural de uma mancha de adesivo sobre uma parede velha. Essa conclusão foi publicada, em formato de carta, na Gondwana Research, a mesma revista científica que havia divulgado a descoberta da Dickinsonia indiana.
Desculpa o engano
Quando surgem evidências para derrubar uma teoria ou refutar uma descoberta, é natural pensar que seus descobridores vão reagir. Embora existam cientistas apegados a suas teorias — por diversos motivos — a maioria dos pesquisadores tende a receber bem uma correção.
O autor principal do paper original sobre a descoberta é Gregory Retallack, professor-emérito da Universidade do Oregon. Retallack leu o estudo feito por Meert et. al. e concorda com suas conclusões. Ele reconhece que se enganou ao ver um fóssil onde não havia nenhum. Agora, ele e seus co-autores vão publicar um comentário em apoio ao novo estudo, corrigindo sua pesquisa anterior.
Este caso é um exemplo de várias coisas. Primeiro, que cientistas também ficam entediados com o cancelamento de eventos. Mas nem toda descoberta feita nesse tédio pode ser verdadeira. Sempre existe o risco do viés de confirmação, de enxergar aquilo que se quer ver.
Em segundo lugar, esta situação demonstra o princípio científico da autocorreção. Uma das bases do método científico está na constante revisão de evidências pelos pares, por meio de novas pesquisas sobre os mesmos objetos. Os resultados nem sempre vão ser os mesmos e quando se descobre um engano ele deve ser corrigido.
Com essa correção, a formação do subcontinente indiano volta a ser uma questão em aberto. Enquanto não forem encontrados fósseis ou outras evidências, não saberemos ao certo se a Índia começou a se formar há 500 milhões ou 1 bilhão de anos. Mas agora teremos o cuidado de não confundir marcas de antigas colmeias com fósseis.
Referências
Joseph G. Meert, Manoj K. Pandit, Samuel Kwafo, Ananya Singha. Stinging News: ‘Dickinsonia’ discovered in the Upper Vindhyan of India not worth the buzz [Notícia Picante: Dickinsonia descoberta no Alto Vindhyan, na Índia, não merece o zumbido]. Gondwana Research, Volume 117, 2023, pp. 1-7, ISSN 1342-937X,
https://doi.org/10.1016/j.gr.2023.01.003.
Gregory J. Retallack, Neffra A. Matthews, Sharad Master, Ranjit G. Khangar, Merajuddin Khan. Dickinsonia discovered in India and late Ediacaran biogeography [Dickinsonia descoberta na Índia em biogeografia do Ediacarano tardio]. Gondwana Research, Volume 90, 2021, pp. 165-170, ISSN 1342-937X,
https://doi.org/10.1016/j.gr.2020.11.008.