Memória Fotográfica: Francis Browne

Deque do Titanic pouco depois de zarpar de Southampton em 10 de Abril de 1912. À direita, vê-se o paquete português Tagus.

Órfão e sortudo, o Rev. Browne foi um fotógrafo prolífico e célebre pelas imagens a bordo do Titanic

Irlanda, 3 de Janeiro de 1880: nasce na cidade de Cork um menino que vai ser batizado Francis Patrick Mary Browne. Oitavo e último filho de uma família influente — sua mãe era sobrinha do prefeito —, o pequeno Francis vai ter uma infância trágica. A mãe morreu apenas oito dias após seu nascimento e o pai faleceu vítima de um afogamento quando o menino tinha nove anos. Assim, Francis Browne vai ser criado pelo tio, Robert, Bispo de Cloyne.

Após passar por diversos colégios e internatos depois de adotado pelo tio, Francis ganha dele dois prêmios ao concluir os estudos: uma câmera fotográfica e uma viagem pela Europa. Foi durante esse tour, em 1897, que Francis Browne começou a fotografar. Sua carreira eclesiástica só começaria dois anos mais tarde, quando tornou-se noviço no St. Stanislaus College. Browne também frequentaria a Universidade Real de Dublin, onde seria colega de um tal James Joyce, que mais tarde viria a retratá-lo como o “Mr. Browne, the Jesuit” em Finnegans Wake.

Francis Browne (esq.) com o tio, Robert Browne, Bispo de Cloyne (centro) no início do século XX.

Graças ao tio bispo, Browne conheceu o papa Pio X em 1909 e, como um fanboy moderno, tirou uma foto do pontífice. De volta a Dublin, ele estudaria Teologia e Filosofia entre 1911 e 1916. Em Abril de 1912, recebeu outro grande presente do tio: uma passagem para a viagem inaugural do Titanic.

Cabine A37: Brown passou pouco mais de 24 horas a bordo do Titanic, fotografando tudo, inclusive o próprio alojamento de primeira classe. Acredita-se que o vulto no espelho seja o próprio reverendo.

O jovem reverendo só sobreviveu porque não fez o percurso completo. Instalado na cabine A37, na primeira classe, Francis Browne embarcou em Southampton e desceu em Queenstown (atual Cobh), Irlanda, com uma escala em Cherbourg, França. A parada irlandesa seria a última da travessia transatlântica.

Ginásio a bordo: hoje esse tipo de salão pode ser banal nos transatlânticos, mas era uma novidade quase extravagante no Titanic.

Embora tenha ficado pouco tempo a bordo, Browne tirou dezenas de fotos entre os dias 10 e 11 de Abril: o ginásio, o salão de jantar da primeira classe, sua cabine, passageiros nos deques e as últimas imagens feitas tanto de membros da tripulação, como o capitão Edward J. Smith, quanto de diversos passageiros desconhecidos da terceira classe.

O Comissário-chefe Hugh Walter McElroy (esq.) e o Capitão Edward J. Smith (dir.) posam para a câmera do Rev. Francis Brown no início da viagem inaugural do Titanic. Seria a última foto dos dois tripulantes, que morreriam no naufrágio poucos dias depois.

Durante o jantar, o reverendo fez amizade com um casal de milionários americanos que ficaram encantados com sua companhia. Eles ofereceram-se para pagar a viagem completa de ida e volta, mas o jovem religioso não recebeu autorização de seu superior pelo telégrafo. A resposta foi curta e grossa: GET OFF THAT SHIP – PROVINCIAL.

Embarque de passageiros da terceira classe, da bagagem e das malas postais no bagageiro do Titanic.

Obediente, Browne desceu e voltou às suas aulas teológicas em Dublin mas não demorou a perceber que suas fotos tiradas casualmente agora tinham valor histórico e jornalístico: o Titanic, quem diria, havia afundado. Esperto, ele negociou a venda das fotos (mas não dos negativos) para diversos jornais e agências de notícias. Suas imagens ganharam o mundo em questão de dias. Além disso, ele foi recompensado pela Kodak com um suprimento vitalício de filmes.

Última foto conhecida do Titanic, registrada pelo Rev. Brown pouco depois de desembarcar em Queenstown.

Com os estudos acidentados pela eclosão da I Guerra Mundial, Browne só seria ordenado padre em 31 de Julho de 1915. Entre 1916 e 1920 ele serviu como capelão da Guarda Irlandesa na Europa. Foi ferido cinco vezes e condecorado — mesmo assim, achou tempo para tirar centenas de fotos. Após a guerra, reuniria as imagens num álbum de circulação restrita aos seus colegas militares.

Batalha de Ypres: patrulha de infantaria atravessa uma área após uma nevasca. Enviado como Capelão à guerra, o Rev. Browne não deixou de praticar a fotografia como passatempo.

Nos anos 1920, retorna a Dublin, onde assume uma igreja, mas não fica muito tempo na capital irlandesa. Sua saúde começa a ficar frágil e ele busca refúgio em climas mais quentes. Passa um longo período na Austrália, onde também registra centenas de fotos, tanto de lugares quanto de pessoas como imigrantes e religiosos irlandeses. Browne tirou ainda mais fotos na longa viagem de volta à Irlanda, repleta de escalas em portos exóticos, como Ceilão, Áden, Suez, Salônica, Nápoles, Toulon, Gibraltar, Algeciras e Lisboa.

De volta ao solo irlandês, ele assumiria a Igreja de São Francisco Xavier (Dublin) e atuaria como uma espécie de missionário interno, visitando e pregando nas comunidades jesuítas de toda a Irlanda. Como essa obra religiosa ocupava apenas o período noturno e os finais de semana, o Reverendo Browne gostava de passar o tempo fotografando tudo o que encontrava em suas andanças. Estima-se que ele tenha registrado mais de 42 mil imagens ao longo da vida.

O Reverendo Brown e sua inseparável câmera fotográfica, em retrato de 1939.

Falecido aos 80 anos, em 1960, Francis Browne havia guardado a maior parte de seu material fotográfico num grande baú de metal. Essa arca só seria descoberta 25 anos após a sua morte, em meio aos arquivos jesuítas. Desde então, suas fotos já preencheram 25 volumes e vêm sendo digitalizadas nos últimos anos (infelizmente, parece que ainda não há um repositório digital único para sua grande coleção fotográfica). A vida e obra desse padre-fotógrafo ainda renderam uma biografia, um documentário e um selo postal em 2012, na época do centenário do Titanic.

É muita sorte para um menino que perdeu os pais tão cedo.

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