Capítulo 17
A desinformação azeda sobre o limão na COVID-19p.122-127
10 de abril de 2020
Gildo Girotto Junior, Gian Carlo Guadagnin e Cyntia Vasconcelos de Almeida
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Revisão: Érica Mariosa Moreira Carneiro e Maurílio Bonora Junior
Edição: Carolina Frandsen P. Costa
Arte: Cyntia Vasconcelos de Almeida
A simples ingestão de um ou outro alimento poderia nos tornar imune ao coronavírus? Apesar de estranhas, tenho presenciado situações e recebido mensagens diversas sobre o pH dos alimentos e sobre diversos produtos que as pessoas têm utilizado em substituição ao álcool em gel.
Semana epidemiológica #15
Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto
211 óbitos registrados no dia (2.173 ao todo)
A primeira dessas mensagens, ocorreu logo após o governo de São Paulo decretar a quarentena oficial (anúncio feito dia 20/03 com quarentena a partir de 24/03). Confesso que precisei ir ao mercado para comprar insumos básicos e notei que, além da falta do álcool gel, o limão também era um item ausente nas gôndolas. Ao questionar um dos funcionários sobre o sumiço do limão, ele me informou que as pessoas estavam comprando pois acreditavam que o suco de limão preveniria a COVID-19.
A segunda situação ocorreu mais recentemente, quando recebi uma mensagem relatando que a ingestão de alguns alimentos poderia proteger nosso organismo devido ao pH do alimento versus pH do vírus. A mensagem afirmava que o pH do limão era 9,9 e o do abacate 15,6, enquanto que o pH do vírus variava entre 5,5 e 8,5. No entanto, alguns estudos mostram que o pH desses dois frutos são respectivamente 2,17 (em uma média de três tipos distintos de limões) [1] e 6,59 (na média de duas espécies de abacates) [2];
Bom, vamos buscar na Química o que é, qual a escala e como varia o pH para entender quais as explicações adequadas (se é que existem).
O que significa o tal do pH?
A medida de pH é um parâmetro que indica o quanto um sistema é ácido ou básico, algo que é uma das características das soluções químicas naturais ou sintéticas. Você provavelmente já ouviu falar que o limão ou laranja são frutas ácidas. Do mesmo modo, se olhar o rótulo de uma garrafa de água mineral, poderá notar a indicação do pH deste produto.
Mas a acidez não é igual em todos os casos. Existem soluções mais ácidas e menos ácidas e essa intensidade é medida por uma escala denominada “escala de pH”, que comumente é nos apresentada variando entre 0 (pH relacionado a uma solução mais ácida) a 14 (pH relacionado a uma solução mais básica – ou menos ácido), sendo o valor 7 um pH de uma
substância / solução neutra.
Assim, quanto mais distante da neutralidade (pH 7) maiores problemas as substâncias poderiam causar se consumidas. Ressalta-se, no entanto, que consumimos alimentos ácidos (como algumas frutas cítricas) e alimentos com pH básicos (o caju, por exemplo). No entanto, substâncias extremamente ácidas ou básicas podem apresentar caráter corrosivo.
Quimicamente falando, o termo pH significa potencial hidrogeniônico e se representa a capacidade de liberação da espécie química H+ (íon hidrogênio ou próton, de modo simplificado) ou liberação de H3O+ (íon hidrônio). Essa definição é a utilizada para o desenvolvimento de sistemas que permitem determinar os valores da escala mencionada. Mas de fato, o que nos interessa no momento é entender por que o pH está sendo associado ao combate do coronavírus.
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Ao questionar um dos funcionários sobre o sumiço do limão, ele me informou que as pessoas estavam comprando pois acreditavam que o suco de limão preveniria a COVID-19.
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O pH e nosso organismo?
No nosso caso, podemos citar o sangue, uma mistura de várias substâncias que circula por quase todas as partes do nosso corpo. Para que as transformações bioquímicas do nosso organismo aconteçam de modo adequado, o pH desse sistema deve estar com valores adequados.
No caso do nosso sangue, o pH varia entre 7,34 e 7,44 unidades, sendo a média aceitável de 7,43. Ressalta-se que dependendo do local em nosso organismo, esses valores podem ser distintos. Nosso organismo se esforça para manter esse valor, e qualquer alteração desencadeia diferentes respostas, com diferentes transformações para corrigir tal alteração.
Sim, nosso organismo possui mecanismos para manter o equilíbrio interno existente, de modo que dificilmente conseguimos alterar esse valor. E mais, caso isso ocorra, provavelmente teremos sérios problemas, podendo mesmo levar à morte.
Por exemplo, valores de pH sanguíneo muito baixos, podem gerar o problema denominado acidose (ou acidulose) o qual está associado a sobrecarga respiratória, vasoconstrição renal, entre outros. Enquanto valores de pH elevados estão associados a alcalose, associada a hipocalcemia, ou seja, taxa de cálcio no sangue baixa, hipopotassemia, quantidade menor de potássio do que a recomendada, entre outros.
Pois bem, o que as mensagens têm recomendado?
Cabe então comentar a respeito de duas informações / recomendações contidas nessas mensagens.
Será que ao passarmos substâncias ácidas na mão (como o limão que estava em falta no mercado) estaríamos nos protegendo contra o vírus? Neste caso, o limão seria um produto antisséptico?
Se por um lado, para que o vírus sobreviva são necessárias condições adequadas, incluindo o pH, por outro lado:
- Não se sabe quais valores de pH (ou níveis de acidez) são suportados pelo coronavírus;
- Não existem quaisquer estudos que avaliaram a eficiência de frutas cítricas em contato com a pele no combate ao vírus;
- Não existem produtos à base de limão testados para esta finalidade nem em termos de antissepsia, nem em relação possíveis problemas dermatológicos.
Para além de tudo isso, ao passar limão na pele você corre riscos de desenvolver queimaduras (alguns podem conhecer como queimaduras de limão), uma vez que a pele em contato com substâncias presentes no limão (e em alguns outros alimentos) em presença da luz solar gera o problema conhecido como fitodermatite. Portanto, ao passar limão na pele, você não só não terá certeza de que está protegido como poderá ficar com a pele queimada e manchada.
A segunda mensagem propagada é a de que ao ingerirmos substâncias ácidas ou básicas, nosso corpo teria seu pH alterado e o vírus então não sobreviveria. Nesse caso, não há muita lógica.
Qualquer alimento ingerido é metabolizado e passa por diversas transformações até seus nutrientes serem levados aos locais específicos. FELIZMENTE, o equilíbrio presente em nosso organismo faz com que o pH das diferentes partes do corpo se mantenha dentro da faixa adequada. Então, por mais que você consuma grande quantidade de limão, seu sangue não ficará mais ácido. Na pior das hipóteses você terá uma boa azia causada pelo excesso momentâneo da sua acidez estomacal.
Portanto, essa receita caseira não funciona. Se você deseja se proteger, as recomendações continuam as mesmas. Uso de máscaras adequadas e bem ajustadas, pouto tempo de permanência em ambientes não ventilados, distanciamento físico e social. Claro que valem as regras de higienização, mas não são mais consideradas centrais nestes cuidados básicos.
Não há soluções mágicas. Os estudos para o desenvolvimento de
Nota dos Editores:
Na época da escrita do texto, as vacinas para COVID-19 estavam no início de seu desenvolvimento. A primeira vacina para COVID-19 foi aprovada somente no final do ano de 2020.
PARA SABER MAIS
- Brighenti, Deodoro Magno, César Freire Carvalho, Carla Regina Guimarães Brighenti, and Stephan Malfitano Carvalho. Inversão da sacarose utilizando ácido cítrico e suco de limão para preparo de dieta energética de Apis mellifera LINNAEUS, 1758. Ciência e Agrotecnologia 35, no. 2, 297-304, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-70542011000200010
- Borges, C.D. et al. Características físicas e químicas de abacates das variedades Margarida e Breda. XXV Congresso Brasileiro de Ciência e Tecnologia de Alimentos. Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Gramado. 2016.
Outros materiais:
- Furoni, Renato Marinho, Sinval Malheiros Pinto Neto, Rafael Buck Giorgi, and Enio Marcio Maia Guerra. Distúrbios do equilíbrio ácido-básico. Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba 12, no. 1, 5-12, 2010. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/view/2407