06 de abril de 2020
Cesar Augusto Gomes

_______

Revisão: Érica Mariosa Moreira Carneiro
Edição: Maurílio Bonora Junior
Arte: Carolina Frandsen P. Costa

Enquanto a COVID-19 faz milhares de vítimas fatais pelo mundo e as autoridades em saúde pública orientam o isolamento social como método mais eficaz de contenção de sua disseminação, parte da sociedade assiste, estarrecida, ao discurso de políticos que seguem negando os fatos com foco na recuperação da economia, mesmo ao custo de “algumas” vidas. Veiculados como gesto em prol do trabalhador, conceitos formulados por Noam Chomsky e Antonio Gramsci mostram que o discurso negacionista tem outros beneficiários.

Semana epidemiológica #15

Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto

73 óbitos registrados no dia (570 ao todo)

O fenômeno do negacionismo não é novo, remonta aos anos 1940, em que se tentou provar a ausência de culpa da Alemanha pela Segunda Guerra Mundial. Isso se fez a partir da banalização, justificativa ou mesmo negação da existência dos campos de extermínio e do holocausto. Em síntese, da defesa e da reabilitação de Adolf Hitler [1]. Apesar de se autodenominarem “revisionistas históricos”, os negacionistas nada têm de revisores, uma vez que a revisão histórica se dá diante de novas evidências ou de novas questões que se colocam. Já os negacionistas estão preocupados em negar as evidências, sem apresentar algum fato que o permita fazê-lo.

Sob uma perspectiva psicológica, o jornalista Michael Specter, explica que, para todos nós, que já estivemos diante de verdades dolorosas, a negação parece ser a única forma de lidar com elas. Specter afirma também que nessas circunstâncias os fatos, por mais detalhados ou irrefutáveis, raramente fazem diferença. Assim, para o escritor americano, o negacionismo “é negação em larga escala – quando um segmento inteiro da sociedade, muitas vezes lutando com o trauma da mudança, se afasta da realidade em favor de uma mentira mais confortável” [2].

Dessa forma, temos duas vertentes de negacionistas: os históricos, que negam o Holocausto, e os científicos, dentre os quais estão os climáticos (que negam o Aquecimento Global), os terraplanistas (que negam as evidências de um planeta aproximadamente esférico) e até os da AIDS (que negam, acreditem, o vírus HIV ser o causador da síndrome). Sem falar nos movimentos de design inteligente, antivacinas e outros tantos que ganharam força com o advento da internet e das redes sociais. 

Para estabelecer a relação deles com a Economia vamos relembrar um filósofo (por coincidência) italiano chamado Antonio Gramsci (1891-1937) que elaborou os conceitos de Bloco Histórico, Hegemonia e Bloco Ideológico. Para ele, o Bloco Histórico de um sistema é composto por uma Estrutura socioeconômica, relacionada às forças produtivas, e por uma Superestrutura de natureza político-ideológica. Deduz-se que as grandes corporações do setor privado atuam na estrutura do bloco, formando a classe dirigente fundamental e os políticos e os intelectuais atuam na superestrutura. Para que uma classe dirigente em minoria consiga subordinar uma maioria é necessário que estes tenham um comportamento social adequado à necessidade produtiva daqueles.

Esse comportamento pode ser conseguido por meio da força (a coerção é sempre latente, mas não desejável) e do consentimento. Na maioria das vezes, a hegemonia é suficiente para assegurar o comportamento social esperado [3]. Por isso, a atuação do Bloco Ideológico é tão importante, pois, formado pelos intelectuais orgânicos e atuando na superestrutura, ele vai impregnar na sociedade os valores culturais necessários para que os dominados sigam consentindo essa dominação. Ou como explicou o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) no texto Se Os Tubarões Fossem Homens:

“Se os tubarões fossem homens (…) Se cismaria nos peixes pequenos que esse futuro / Só estaria garantido se aprendessem a obediência” [4].

O fenômeno do negacionismo não é novo, remonta aos anos 1940, em que se tentou provar a ausência de culpa da Alemanha pela Segunda Guerra Mundial. Isso se fez a partir da banalização, justificativa ou mesmo negação da existência dos campos de extermínio e do holocausto.

E qual a relação disso com a atual negação da letalidade da COVID-19 por políticos?

O Bloco Histórico vigente é o sistema capitalista neoliberal. Segundo Noam Chomsky [5], o triunfo ideológico das “doutrinas de livre mercado” possibilita que decisões políticas se traduzam em polpudos lucros pagos a altos executivos e suas empresas. Na prática, as grandes empresas que têm grande poderio econômico, financiam campanhas eleitorais de atores políticos, de diferentes espectros ideológicos (diga-se). Isso, para que eles, uma vez eleitos e legitimados pelo voto popular (embora tenham prometido trabalhar em favor deste), possam ser representantes dos interesses dessas empresas, passando a legislar a seu favor, aqueles a quem Chomsky chama de “servos do capital privado”. Dessa forma, elas vão acumular ainda mais lucros e concentrar ainda mais renda, fechando o círculo.

Assim, à medida que a COVID-19 afeta a Economia, informações para minimizar esse impacto passam a ser produzidas e disseminadas pelo Bloco Ideológico (Blogs, sites, perfis de redes sociais, influenciadores) e pelos simpatizantes do sistema vigente. Então, não é difícil encontrar nos meios de comunicação dos apoiadores do atual governo mais e mais teorias da conspiração negando a letalidade do vírus e, mais recentemente, ao se depararem com a realidade das mortes, passaram a negar sua causa.

Entendidos esses aspectos, a frase do atual Presidente da República do Brasil, “Vão morrer alguns, do vírus? Sim, vão morrer (…) Lamento. Tá? Agora não podemos criar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia!”, suscita uma interpretação diversa daquela que inicialmente seu emissor pretendeu transmitir.

O Brasil não pode parar, sobretudo quando o interesse do grande capital está em jogo. Se todos vão morrer um dia, que seja indo alegres “para as goelas dos tubarões”. 

PARA SABER MAIS 

 

  1. Moraes, Luís E. S. O Revisionismo Negacionista In: Santos, Ricardo Pinto dos (org.) Enciclopédias de Guerras e Revoluções do século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
  2. Specter, Michael. Denialism: How irrational thinking harms the Planet and threatens our lives. Penguin, 2009.
  3. Cox, Robert W. Gramsci, hegemony and international relations: an essay in method. Cambridge Studies in International Relations, Cambridge, Cambridge University Press, v. 26, p. 49-66, 1993.
  4. Brecht, Bertolt. Se os tubarões fossem homens. Bertolt Brecht. Geschichten vom Herrn Keuner,
  5. Chomsky, Noam. Quem manda no mundo?, São Paulo, Planeta. 2017.
    1. Outros materiais:

      • Gastaldi, Fernanda Castro. Gramsci e o negacionismo climático estadunidense: a construção do discurso hegemônico no Antropoceno. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil 7, no. 1, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.12957/neiba.2018.39247
      • Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 2 — Antonio Gramsci: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Ed. e trad. de Carlos N, Coutinho. Coed. de Luiz S. Henriques e Marco A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

    A desinformação azeda sobre o limão na COVID-19

    A simples ingestão de um ou outro alimento poderia nos tornar imune ao coronavírus? Apesar de estranhas, tenho presenciado situações e recebido mensagens diversas sobre o pH dos alimentos e sobre diversos produtos que as pessoas têm utilizado em substituição ao álcool em gel. 

    Como a desinformação tem atrapalhado nossa resposta à COVID-19

    A notícia de que o Brasil atingiu, nesta semana, o segundo lugar de país com maior número de contaminados de COVID-19, tornando-se o novo epicentro da doença, mostra que estamos falhando miseravelmente no controle da pandemia. Uma avalanche de notícias e informações falsas tem nos distraído e dividido bem no momento crucial em que deveríamos focar todas as nossas energias no combate ao vírus.

    Como se produz um resultado científico e o que isto tem a ver com a COVID-19?

    Vocês já tiveram a impressão de que a ciência é uma bagunça esquisita? Uma hora lemos que o café faz mal, noutro momento, o café salva nossos corações… O chocolate então? Passa de vilão para herói ano sim, ano não… tudo isso faz com que a ciência, os resultados e conhecimentos científicos muitas vezes sejam desacreditados.

    Corrigindo boatos de forma estratégica

    Você não aguenta mais receber Fake News no grupo da família? Já cansou de corrigir os mesmos boatos toda semana? Pois você não está sozinho. Desde que os primeiros casos de COVID-19 começaram a ser registrados, os potenciais riscos das desinformações deixaram de ser assunto para pequenos grupos de cientistas e invadiram o dia a dia de boa parte da sociedade.

    COVID-19 e o negacionismo

    Enquanto a COVID-19 faz milhares de vítimas fatais pelo mundo e as autoridades em saúde pública orientam o isolamento social como método mais eficaz de contenção de sua disseminação, parte da sociedade assiste, estarrecida, ao discurso de políticos que seguem negando os fatos com foco na recuperação da economia, mesmo ao custo de “algumas” vidas. Veiculados como gesto em prol do trabalhador, conceitos formulados por Noam Chomsky e Antonio Gramsci mostram que o discurso negacionista tem outros beneficiários.

    COVID-19 e os riscos da modernidade: modernização como causa e como consequência

    Na sociologia contemporânea, principalmente na obra de Ulrich Beck, as pandemias já eram identificadas como um dos principais riscos da modernização. O caso atual da CO-VID-19 veio para confirmar isso, e mais que isso, é fácil identificar como o processo de modernização aparece como causa, mas também como consequência da pandemia. O difícil é vislumbrar quais serão os impactos das mudanças nos processos sociais no período pós-pandemia

    Os 7 tipos de Fake News sobre a COVID-19

    Conforme escrevi no capítulo 10, “A COVID-19 e o negacionismo”, há dois meses, a pandemia trouxe consigo a necessidade de estancar a disseminação de falsas informações a respeito dessa terrível doença. Neste sentido, o presente texto pretende analisar e classificar os tipos de desinformação que circulam relacionados à COVID-19 e indicar um roteiro de perguntas básicas que você deve fazer antes de acreditar e/ou compartilhar informações, que vale tanto para o Coronavírus quanto para as demais Fake News sobre saúde (que circulam desde sempre).

    Pandemia acelera produção e acesso a preprints

    “Cães e gatos podem transmitir o COVID-19?”; “Descoberto anticorpos com ação eficaz contra o novo coronavírus”; “Droga contra HIV tem ação animadora contra SARS-CoV-2”. Estas são algumas notícias que devem ter chegado a você, todas baseadas em artigos ainda sem avaliação por especialistas. São os chamados preprints, que são disponibilizados para acelerar o acesso à informação científica, o intercâmbio e as chances de a ciência achar respostas rápidas contra o novo coronavírus.

    Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito “Backfire

    Sabe aquela vez que você topou, nas redes sociais ou fora delas, com uma pessoa muito convicta defendendo algo que você tinha certeza de que estava errado? Pode ter sido um antivacina, um terraplanista, um negacionista da pandemia ou um apoiador ferrenho de algum político, daqueles dispostos a defender qualquer bobagem ou mentira que seu ídolo tenha dito.