Capítulo 14

COVID-19 e os riscos da modernidade: modernização como causa e como consequência

p. 103-107

Checagem de Fatos ou dos excessos de desinformação e tentativas de combatê-la

12 de abril de 2020
Mariana Delgado Barbieri

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Revisão: Érica Mariosa Moreira Carneiro e Maurílio Bonora Junior
Edição e arte: Carolina Frandsen P. Costa

Na sociologia contemporânea, principalmente na obra de Ulrich Beck, as pandemias já eram identificadas como um dos principais riscos da modernização. O caso atual da COVID-19 veio para confirmar isso, e mais que isso, é fácil identificar como o processo de modernização aparece como causa, mas também como consequência da pandemia. O difícil é vislumbrar quais serão os impactos das mudanças nos processos sociais no período pós-pandemia.

Semana epidemiológica #16

Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto

227 óbitos registrados no dia (1.237 ao todo)

Modernização como causa

A modernização, como causa, se apresenta a partir de duas transformações fundamentais vivenciadas pela humanidade no último século: degradação ambiental e desenvolvimento de meios de transportes, principalmente aéreo. A degradação ambiental, com redução das áreas de floresta, expansão das cidades, presença do homem em áreas de vida selvagem, propiciou o chamado spillover, isto é, o vírus deixou de ser hospedado apenas pelo morcego, migrando para outras espécies de hospedeiros. A alteração do meio natural é fruto direto do processo de modernização e um fator importante para a ocorrência de epidemias, como da dengue, malária, zika, etc.

A modernização do sistema de transporte possibilitou intenso deslocamento de sujeitos por entre diversos territórios. O grande volume de voos, que passavam dos 250 mil voos diários no período pré-COVID-19, e o barateamento do transporte aéreo, sem dúvida foram fundamentais para a disseminação tão rápida da COVID-19 por praticamente todos os países do mundo. Em outros tempos, quando os meios de transporte não eram tão rápidos e acessíveis, as epidemias se restringiam a determinados territórios, como foi o caso da peste negra, que se desenvolveu ao longo da rota da seda.

Ao analisarmos as rotas aéreas e a propagação do vírus entre as diversas localidades, percebemos que nas áreas com maior número de voos houve maior número de casos. As pessoas se deslocam entre países e com isso facilitam a propagação. A África e América do Sul, regiões com menor volume de tráfego aéreo, também tem apresentado até o momento menor número de casos. Obviamente, numa segunda fase, o contágio ocorre a partir da mobilidade dos indivíduos dentro do próprio país, e já não é possível traçar paralelo com o transporte aéreo. 

A situação atual ilustra perfeitamente a afirmação de Ulrich Beck “é o fim dos ‘outros’”. Todos os habitantes do planeta se veem ameaçados pela pandemia e, nesse momento, categorias tradicionais de análise sociológica, como as classes sociais, se veem fragilizadas, afinal a pandemia é, aparentemente, mais democrática, no sentido de ameaçar e atingir a todos, porém situações de vulnerabilidades podem potencializar a pandemia. Se dinheiro não impede a contaminação, a falta dele fragiliza ainda mais a população. Se todos somos igualmente atingíveis, o pobre, o negro, a mulher, o morador de rua, tem seus riscos amplificados.

Mapa de rotas da World Airline 2009 (wikipedia.org) e Mapa de epidemiologia genômica do novo coronavírus (nextstrain.org)

Essa situação é típica de países que ainda não solucionaram problemas da primeira modernidade e, num momento de modernização comprimida, tal qual o que vivemos agora, temos os riscos da modernidade intensificados, pois eles são cumulativos: não resolvemos o problema da distribuição de renda, da igualdade de gênero (problemas da 1ª modernidade) e temos novos problemas surgindo, como as pandemias, os riscos ecológicos, o desemprego por robotização (problemas da 2ª modernidade). Os países do sul global, de maneira geral, vivenciam essa tal de modernização comprimida, o que dificulta ainda mais a solução dos problemas atuais. 

Todos os habitantes do planeta se veem ameaçados pela pandemia e, nesse momento, categorias tradicionais de análise sociológica, como as classes sociais, se veem fragilizadas, afinal a pandemia é, aparentemente, mais democrática, no sentido de ameaçar e atingir a todos, porém situações de vulnerabilidades podem potencializar a pandemia.

Modernização como consequência

E dentro dessa ideia de modernização comprimida é que precisamos analisar a noção de modernização como consequência. Nas últimas semanas temos vivenciados uma modernização forçada em diversas esferas da nossa vida: seja pela obrigatoriedade do ensino à distância, pelo home office ou pelas tele consultas médicas ou psicológicas. Por tantos anos essas atividades foram barradas pelos conselhos de classe, e, de repente, nos vemos impelidos a executar.

Essa modernização forçada ocorre sem infraestrutura necessária (afinal, quantos lares possuem um computador para cada criança e cada adulto? Quantos dispõe de internet em velocidade adequada?) e sem formação adequada (quantos professores sabem usar as ferramentas para propiciar um ensino adequado? Quantos realizaram cursos para isso?). As empresas foram obrigadas a passarem por uma revolução digital que vinha sendo protelada ao longo das últimas décadas e o resultado disso é incerto. Será que o desemprego vai aumentar? O desenvolvimento de novos softwares para facilitar o trabalho remoto irá impactar no cotidiano das empresas e na maneira como estamos habituados a trabalhar?

A pandemia do COVID-19 forçou a modernização digital e se antes a internet era vista como responsável pelo distanciamento das pessoas, hoje ela é salvação para o encontro semanal entre amigos ou para a conversa com os pais. As relações sociais estão passando por uma profunda reestruturação e essa mudança em um curtíssimo período de tempo pode estar repleta de efeitos adversos. Saberemos lidar com a depressão e ansiedade? Substituiremos bem o contato pessoal pelo encontro virtual? Como ficarão as relações quando a pandemia passar?

A modernização como consequência nos traz dúvidas e ela materializa a noção de sociedade de risco. Estamos imersos em incertezas, ambiguidades, complexidades. O risco é invisível e ele só se materializa quando se confirma. A COVID-19 é um risco invisível, mas potente o suficiente para mudar as relações sociais e de trabalho, impactando tantas esferas de nossa vida, que é capaz de criar um novo mundo, uma nova ordem social – e não se sabe se ela será melhor ou pior que a atual.

E por se tratar de um impacto global, já se discute a necessidade de uma governança global, o que coloca em questão as fronteiras geográficas, as respostas políticas locais, assim como os processos de individualização. A humanidade pode estar entrando em um novo momento e a imaginação sociológica deve estar aflorada entre nós, para que possamos captar essas mudanças, analisando-as com criticidade, propondo alternativas e soluções possíveis aos novos problemas que surgirão. 

PARA SABER MAIS 

 

    • Beck, Ulrich. Sociedade de risco. São Paulo: Editora 34, 49-53, 2010.
    • Hadfield, James, Colin Megill, Sidney M. Bell, John Huddleston, Barney Potter, Charlton Callender, Pavel Sagulenko, Trevor Bedford, and Richard A. Neher. Nextstrain: real-time tracking of pathogen evolution. Bioinformatics 34, no. 23, 4121-4123, 2018. Disponível em https://doi.org/10.1093/bioinformatics/bty407
    • Quammen, David. Spillover: animal infections and the next human pandemic. WW Norton & Company, 2012.
    • Richards, Sarah Elizabeth. Como mutações do coronavírus podem ajudar a traçar rota de propagação e refutar conspirações. National Geographic, 2020. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/como-mutacoes-do-coronavirus-podem-ajudar-tracar-rota-de-propagacao-e-refutar

A desinformação azeda sobre o limão na COVID-19

A simples ingestão de um ou outro alimento poderia nos tornar imune ao coronavírus? Apesar de estranhas, tenho presenciado situações e recebido mensagens diversas sobre o pH dos alimentos e sobre diversos produtos que as pessoas têm utilizado em substituição ao álcool em gel. 

Como a desinformação tem atrapalhado nossa resposta à COVID-19

A notícia de que o Brasil atingiu, nesta semana, o segundo lugar de país com maior número de contaminados de COVID-19, tornando-se o novo epicentro da doença, mostra que estamos falhando miseravelmente no controle da pandemia. Uma avalanche de notícias e informações falsas tem nos distraído e dividido bem no momento crucial em que deveríamos focar todas as nossas energias no combate ao vírus.

Como se produz um resultado científico e o que isto tem a ver com a COVID-19?

Vocês já tiveram a impressão de que a ciência é uma bagunça esquisita? Uma hora lemos que o café faz mal, noutro momento, o café salva nossos corações… O chocolate então? Passa de vilão para herói ano sim, ano não… tudo isso faz com que a ciência, os resultados e conhecimentos científicos muitas vezes sejam desacreditados.

Corrigindo boatos de forma estratégica

Você não aguenta mais receber Fake News no grupo da família? Já cansou de corrigir os mesmos boatos toda semana? Pois você não está sozinho. Desde que os primeiros casos de COVID-19 começaram a ser registrados, os potenciais riscos das desinformações deixaram de ser assunto para pequenos grupos de cientistas e invadiram o dia a dia de boa parte da sociedade.

COVID-19 e o negacionismo

Enquanto a COVID-19 faz milhares de vítimas fatais pelo mundo e as autoridades em saúde pública orientam o isolamento social como método mais eficaz de contenção de sua disseminação, parte da sociedade assiste, estarrecida, ao discurso de políticos que seguem negando os fatos com foco na recuperação da economia, mesmo ao custo de “algumas” vidas. Veiculados como gesto em prol do trabalhador, conceitos formulados por Noam Chomsky e Antonio Gramsci mostram que o discurso negacionista tem outros beneficiários.

COVID-19 e os riscos da modernidade: modernização como causa e como consequência

Na sociologia contemporânea, principalmente na obra de Ulrich Beck, as pandemias já eram identificadas como um dos principais riscos da modernização. O caso atual da CO-VID-19 veio para confirmar isso, e mais que isso, é fácil identificar como o processo de modernização aparece como causa, mas também como consequência da pandemia. O difícil é vislumbrar quais serão os impactos das mudanças nos processos sociais no período pós-pandemia

Os 7 tipos de Fake News sobre a COVID-19

Conforme escrevi no capítulo 10, “A COVID-19 e o negacionismo”, há dois meses, a pandemia trouxe consigo a necessidade de estancar a disseminação de falsas informações a respeito dessa terrível doença. Neste sentido, o presente texto pretende analisar e classificar os tipos de desinformação que circulam relacionados à COVID-19 e indicar um roteiro de perguntas básicas que você deve fazer antes de acreditar e/ou compartilhar informações, que vale tanto para o Coronavírus quanto para as demais Fake News sobre saúde (que circulam desde sempre).

Pandemia acelera produção e acesso a preprints

“Cães e gatos podem transmitir o COVID-19?”; “Descoberto anticorpos com ação eficaz contra o novo coronavírus”; “Droga contra HIV tem ação animadora contra SARS-CoV-2”. Estas são algumas notícias que devem ter chegado a você, todas baseadas em artigos ainda sem avaliação por especialistas. São os chamados preprints, que são disponibilizados para acelerar o acesso à informação científica, o intercâmbio e as chances de a ciência achar respostas rápidas contra o novo coronavírus.

Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito “Backfire

Sabe aquela vez que você topou, nas redes sociais ou fora delas, com uma pessoa muito convicta defendendo algo que você tinha certeza de que estava errado? Pode ter sido um antivacina, um terraplanista, um negacionista da pandemia ou um apoiador ferrenho de algum político, daqueles dispostos a defender qualquer bobagem ou mentira que seu ídolo tenha dito.