Capítulo 27

Vacinas: de onde vêm e para onde vão

p.195-201

Vacinas: da produção às políticas públicas

 

24 de agosto de 2020
Maurílio Bonora Junior

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Revisão: José Felipe Teixeira da Silva Santos
Edição: Maurílio Bonora Junior
Arte: Carolina Frandsen P. Costa

Recentemente temos ouvido falar muito sobre todas as pesquisas que têm sido realizadas para se descobrir uma vacina contra a COVID-19: Inglaterra, China, Rússia, todos estão correndo para ser o primeiro país a ter uma vacina aprovada para uso humano e que seja realmente eficiente em gerar uma imunidade em nós. Mas como que realmente funciona uma vacina e por que – em geral – demora-se tanto para desenvolver uma?

Semana epidemiológica #35

Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto

1.242 óbitos registrados no dia (105.635 ao todo)

Imunidade ativa e passiva

Antes de falarmos sobre vacinas, precisamos ter dois conceitos muito bem claros em nossa cabeça: Imunidade Ativa e Passiva. A Imunidade Ativa é aquela em que o nosso próprio corpo desenvolve a resposta imune contra o patógeno, um processo demorado, mas que nos garante uma proteção que pode durar décadas, a chamada memória imunológica. Já a Imunidade Passiva, ocorre quando adquirimos anticorpos já prontos a partir de um outro organismo que os produziu. Esse processo garante uma imunidade rápida e eficiente, porém ela é temporária. A Imunização Passiva acontece, por exemplo, quando a mãe está amamentando o filho ou quando utilizamos de soros antiofídicos e antiaracnídicos, após picadas de cobras e aranhas.

O processo de imunidade ativa pode ser desencadeado tanto de forma natural quanto de forma artificial. O primeiro acontece quando entramos em contato com o patógeno no próprio ambiente, como quando pegamos uma gripe. Já o segundo processo acontece quando somos expostos de forma intencional ao patógeno – que muitas vezes está enfraquecido ou destruído – ou a partes dele, como ocorre no processo de vacinação.

 

Histórico da vacina e o que é vacina

O conceito de vacina foi criado no século XVIII por Edward Jenner, considerado o pai da imunologia, após observar que fazendeiros que contraiam a varíola da vaca, ficavam protegidos contra a varíola humana. A partir dessas observações, Jenner infectou pessoas com a varíola da vaca e após algum tempo, infectou essas mesmas pessoas com a varíola humana, observando que estas não ficavam doentes como as pessoas que não eram infectadas pela varíola da vaca anteriormente. Com isso, ele comprovou sua hipótese e criou a primeira vacina. Décadas mais tarde, no ano de 1980, a OMS declarou oficialmente a erradicação da varíola no mundo [1].

 

Mas afinal, o que é a vacina?

Vacinas nada mais são do que os patógenos – causadores de doenças que conhecemos – enfraquecidos, mortos ou fragmentos deles, que são injetados nos organismos para simular uma infecção natural (no processo dito acima de Imunização Ativa Artificial). Foi a partir desse processo que muitas doenças desapareceram de vários países, como a varíola, poliomielite, tuberculose e outras. Mas também é por causa da negligência e do crescente movimento Anti-vax que muitas doenças estão voltando a circular em países que anteriormente não a tinham mais, como é o caso do sarampo aqui nas Américas.

Leva-se anos para desenvolver uma vacina (a média de tempo é de 10 anos [2]), e durante todos esses anos ela é testada de inúmeras formas para ser segura para podermos tomarmos. Muito se fala sobre febre e a dor local após tomar uma vacina, mas isso nada mais é do que uma reação comum do corpo para qualquer infecção. A febre é inclusive uma forma do nosso sistema imune combater alguns patógenos e, desde que não seja alta, está tudo bem.

A única contra-indicação de vacinas são para pessoas alérgicas à algum componente dela. Contudo, essas pessoas são minorias na população e para elas estarem seguras contra o patógeno todos a sua volta precisam estar vacinados.

Tá bom, mas e o que isto tem a ver com o anúncio da vacina russa

A única contra-indicação de vacinas são para pessoas alérgicas à algum componente dela. Contudo, essas pessoas são minorias na população e para elas estarem seguras contra o patógeno todos a sua volta precisam estar vacinados. Neste ponto é importante lembrar que a vacina é um pacto social. Isto é, quando a maioria da população toma a vacina, protege também quem não pode tomar, pois diminui a circulação dos patógenos. Assim, todos nós precisamos nos vacinar para gerar a chamada Imunidade de Rebanho.

Tipos de Vacina

Mas voltando às vacinas propriamente ditas, não existe somente um tipo delas, mas sim vários. Aqui vamos explicar somente os principais [3, 4]:

  • Vacinas de Patógenos Vivos:

Calma, não entremos em pânico por causa do nome! Apesar desse tipo de vacina ter sim o patógeno causador da doença vivo ele está sempre atenuado, ou em outras palavras, enfraquecido. Nesse tipo de vacina, o patógeno (seja um vírus, bactéria ou outro microrganismo), passa por um processo que compromete sua habilidade de causar a doença em nós, apesar de ele ainda conseguir infectar nossas células. Em casos de vírus, muitas vezes o vírus que infecta humanos é cultivado em células de macacos ou outros animais por várias gerações, até que ele adquira mutações que fazem com que ele infecte muito bem células de macaco, ao mesmo tempo que perde a capacidade de infectar muito bem as nossas células, e então ele está atenuado.

Normalmente, esse tipo de vacina é o melhor, pois em geral é necessário somente uma dose, a resposta e memória imunológica é de longa duração, gerando uma resposta imune celular e humoral. Contudo, há uma pequena chance de reversão do vírus, em que ele readquire a capacidade de infectar nossas células com força total e causar a doença que estamos tentando prevenir. É por esse fato que tal vacina é tão difícil de produzir, pois os pesquisadores muitas vezes não conseguem diminuir esse risco e o projeto da vacina não segue em frente.

Nota dos Editores:

A imunidade celular tem como principais componentes as células do sistema imune (tanto inato, como os macrófagos e neutrófilos, quanto adaptativo, como os linfócitos T e B), combatendo principalmente os patógenos intracelulares (aqueles que se reproduzem dentro das células), como os vírus. Já a resposta imune humoral é o braço da resposta imunológica que está nos líquidos extracelulares (fora das células) como, por exemplo, o plasma do sangue. A principal atuação da resposta imune humoral é contra patógenos extracelulares, como bactérias e protozoários, e os seus principais atores são os anticorpos.

  • Vacinas de Patógenos Inativados (mortos):

Como o próprio nome diz, esse tipo de vacina nos dá o patógeno inteiro também, mas ele está morto. E com isso já temos uma vantagem logo de cara: não há o risco de reversão, como nos casos de patógenos atenuados. Contudo, também há alguns problemas. Pelo patógeno estar morto, ele não consegue se replicar dentro de nossas células, o que prejudica a formação de uma resposta imune celular. Assim, o tipo de resposta imune que vamos desenvolver é principalmente do tipo Humoral (focando nos anticorpos). Além disso, esse tipo de vacina, em geral, requer diversas doses de reforço e muitas vezes o uso de Adjuvantes: substâncias capazes de aumentar a eficiência da resposta imune contra o patógeno que estamos injetando junto.

  • Vacinas de Subunidades:

Graças a biotecnologia que temos hoje em dia, caso um patógeno seja muito perigoso e não possamos usar ele inteiro, podemos trabalhar com partes dele, como com alguma proteína dele ou outro fragmento. Dessa forma, nós tiramos todo o risco de patogenicidade da vacina, além de ser facilmente produzido em larga escala. Contudo, novamente temos problemas: o uso de adjuvantes, o maior número de doses de reforço e somente a resposta imune humoral participando. Além disso, ainda há um segundo fator problemático: algumas pessoas podem não responder a esse fragmento que está sendo utilizado na vacina. 

O caso mais emblemático é o da vacina de Hepatite B. É relativamente comum encontrarmos pessoas que tomaram diversas doses da vacina para Hepatite B e constaram como “não-reagentes”, isto é, não desenvolveram anticorpos contra o vírus. Por questões genéticas da própria pessoa, mesmo que ela tome 1000 doses dessa vacina, ela jamais vai responder a esse fragmento. Isso quer dizer que ela é mais suscetível ao vírus da Hepatite B do que eu (que hipoteticamente sou reagente) e vai morrer caso contraia a doença? Não, de forma alguma! Isso só quer dizer que para esse pedaço específico do vírus, usado para fazer a vacina, ela não é capaz de responder, contudo, caso ela entre em contato com o vírus inteiro, ela responderá normalmente a ele, como qualquer outra pessoa.

Vacinas contra COVID-19

Atualmente as duas principais concorrentes para ser a primeira vacina contra COVID-19 são as vacinas da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a vacina da Sinovac Biotech, uma empresa chinesa com base em Pequim. Enquanto a vacina da Sinovac Biotech se baseia no modelo de vacina com o vírus inativado [4, 5], a vacina da universidade de Oxford se baseia em um novo modelo nunca utilizado antes em vacinas, em que se usa um vetor viral [4, 6, 7]. Mas o que é isso? Um vetor viral nada mais é do que um vírus, criado geneticamente para carregar e produzir o material genético de outro organismo. No caso da vacina, esse vírus “caminhão” é responsável por causar um resfriado em macacos, mas foi inativado e engenhado geneticamente para ter as informações e ser capaz de produzir a proteína Spike, a principal proteína do SARS-CoV-2.

Nota dos Editores:

No fim, a primeira vacina aprovada não foi de nenhuma das duas empresas e sim da Pfizer/Biontech, seguida pela Moderna (ambas utilizando uma nova tecnologia, chamada Vacina de RNA), e então pela Universidade de Oxford e Astrazeneca.

Atualmente, ambas as vacinas já estão na fase 3 de testes onde milhares de seres humanos estão sendo testados com elas para se descobrir se a resposta imune que elas causam em nós é realmente protetora. Até agora, as informações que temos é que ambas as vacinas não são perigosas para nós e conseguem desenvolver anticorpos, mas a dúvida que fica é: será que essa proteção é realmente eficiente em nos proteger? E principalmente: quanto tempo essa proteção durará? 

Nota dos Editores:

Na época de publicação do texto, estavam saindo as primeiras notícias sobre os testes de fase 3 das vacinas, o que fez com que todos tivessem muitas perguntas. Hoje, mais de uma ano depois, já se sabe consideravelmente mais sobre a proteção garantida pelas vacinas e sua eficiência, apesar de ainda se ter dúvidas sobre a duração da imunidade gerada por elas.

PARA SABER MAIS 

  1. Organização Panamericana de Saúde (PAHO). Erradicação da varíola: um legado de esperança para COVID-19 e outras doenças. 2020. Disponivel em: https://www.paho.org/pt/noticias/8-5-2020-erradicacao-da-variola-um-legado-esperanca-para-covid-19-e-outras-doencas
  2. Pronker, Esther S., Tamar C. Weenen, Harry Commandeur, Eric HJHM Claassen, and Albertus DME Osterhaus. Risk in vaccine research and development quantified. PloS one 8, no. 3, e57755, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0057755
  3. Rauch, Susanne, Edith Jasny, Kim E. Schmidt, and Benjamin Petsch. New vaccine technologies to combat outbreak situations. Frontiers in immunology 9, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.3389/fimmu.2018.01963
  4. Callaway, Ewen. The race for coronavirus vaccines: a graphical guide. Nature, 576-577, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1038/d41586-020-01221-y
  5. Gao, Qiang, Linlin Bao, Haiyan Mao, Lin Wang, Kangwei Xu, Minnan Yang, Yajing Li et al. Development of an inactivated vaccine candidate for SARS-CoV-2. Science 369, no. 6499, 77-81, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1126/science.abc1932
  6. van Doremalen, Neeltje, Teresa Lambe, Alexandra Spencer, Sandra Belij-Rammerstorfer, Jyothi N. Purushotham, Julia R. Port, Victoria A. Avanzato et al. ChAdOx1 nCoV-19 vaccine prevents SARS-CoV-2 pneumonia in rhesus macaques. Nature 586, no. 7830, 578-582, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41586-020-03099-2
  7. Mullard, Asher. COVID-19 vaccines start moving into advanced trials. Nature Reviews Drug Discovery 19, no. 7, 435-436, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1038/d41573-020-00107-y

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