Capítulo 37
Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemiap.265-273
14 de maio de 2020
Leonardo Oliveira da Costa
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Revisão: José Felipe Teixeira da Silva Santos
Edição: Ana de Medeiros Arnt
Arte: Carolina Frandsen P. Costa
O crescente número de infectados e mortos pelo novo Coronavírus (Sars-CoV-2) ao redor do mundo tem gerado preocupação e exigido a tomada de atitudes inéditas entre governos e cidadãos para frear a pandemia.
Semana epidemiológica #20
Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto
789 óbitos registrados no dia (14.070 ao todo)
As medidas de distanciamento social e isolamento recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, até então o meio mais eficaz de diminuir o ritmo de disseminação da doença e amenizar o iminente colapso dos sistemas de saúde, têm causado mudanças drásticas nos hábitos e comportamentos da população. O esforço dos agentes públicos e da mídia para efetivar o isolamento não tem surtido o efeito desejado [1]. Cultivando o desejo de retorno a uma normalidade cotidiana potencialmente mortal, ainda é possível verificar aglomerações e ruas com intensa circulação de pessoas, mesmo com a suspensão de todos os eventos e reuniões públicas e interrupção dos serviços não essenciais. Uma realidade alarmante diante da célere escalada da curva de infecções no Brasil.
A campanha “#FicaEmCasa” tem buscado conscientizar a população sobre a importância de sair às ruas apenas para as atividades estritamente necessárias e o respeito ao isolamento como uma atitude cidadã. Entretanto, como irão aderir à campanha aqueles que não possuem uma casa?
Somente em São Paulo, epicentro da epidemia no Brasil, são mais de 24 mil pessoas vivendo nas ruas em situação insalubre e vulnerável, segundo dados da própria prefeitura [2]. Como poderão evitar aglomerações pessoas que vivem em uma favela como Paraisópolis, que ostenta a maior densidade populacional do país? [3]. Isso, claro, sem contar a carência de tratamento do esgoto e fornecimento de água, numa situação onde o vírus pode ser transmissível pelas fezes [4] e a lavagem das mãos em água corrente é a forma mais eficaz de evitar o contágio. E o que dizer dos mais de 770 mil presos que compõem a população prisional nas penitenciárias brasileiras superlotadas? [5]. Um prato cheio para o vírus e uma bomba relógio para a sociedade. A situação de rua, a favelização e o encarceramento constituem ‘mundos de morte’ [6], espaços de concentração de determinadas parcelas populacionais sujeitas à uma situação de sobrevida, ao estatuto de mortos-vivos. Lugares submetidos ao império da necropolítica [7].
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Enquanto o vírus se alastra pelo território nacional, o atual mandatário da Presidência da República tem cultivado crises institucionais entre os poderes e dentro do próprio governo. Em entrevistas, ao comentar sobre a mortandade causada pela pandemia, Bolsonaro declarou: “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida” (…)
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Enquanto o vírus se alastra pelo território nacional, o atual mandatário da Presidência da República tem cultivado crises institucionais entre os poderes e dentro do próprio governo. Em entrevistas, ao comentar sobre a mortandade causada pela pandemia, Bolsonaro declarou: “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida”; “Brasileiro precisa ser estudado, pula no esgoto e nada acontece” e “E daí? Lamento. Quer que eu faça o que? Sou Messias mas não faço milagre”. Estas e tantas outras falas de flagrante descaso com a saúde e com a vida da população se alinham sob a ordem necropolítica.
O termo necropolítica, cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe [6], visa elucidar como a regimentalização do poder de matar nas sociedades modernas funciona como uma política de controle social. A distribuição desigual das oportunidades de vida e de morte que são base do modelo capitalista de produção impõe uma hierarquia em que uns valem mais que outros e aqueles que não têm valor são simplesmente descartados. Trata-se de uma radicalização e reinterpretação da biopolítica de Foucault, em que a administração da vida divide espaço com a administração da morte [8].
Segundo Valencia [9] quando a morte, mais do que a vida, se encontra no centro da biopolítica ela se converte em necropolítica. Através de estratégias de exploração e destruição de corpos como a execução, o feminicídio, a escravidão, o sequestro, o tráfico de pessoas, o encarceramento; práticas legitimadas por dispositivos jurídico-administrativos, são ordenados e sistematizados os efeitos, as causas e as justificativas das políticas de morte. O poder atua para a manutenção do sujeito vivo, mas em estado de marginalização aguda, injúria e intensa crueldade, implementando uma forma de morte em vida até que se alcance a morte de fato.
Mbembe parte do pressuposto de que a expressão máxima do poder soberano consiste em deixar viver, matar ou expor à morte. A partir do momento em que a soberania escolhe quem vive e quem morre, o próprio viver se torna uma manifestação do poder soberano [10].
E no Brasil?
No Brasil, a necropolítica não é algo inusitado, nem recém inaugurado. Na verdade, não existe história do Brasil apartada das políticas de morte. Estamos falando do país com a polícia que mais mata e mais morre no mundo [11]. Estamos falando do país que lidera o ranking mundial de homicídios em números absolutos [12]. Estamos falando do país que registra o maior número de linchamentos no mundo [13]. Estamos falando do país que mais mata LGBTs no mundo [14]. Estamos falando de um país em que a legislação contra a violência doméstica, uma conquista histórica, faz diminuir os casos de morte entre mulheres brancas e disparar os casos de feminicídios das mulheres negras [15]. Este cenário não surgiu de forma mágica ou repentina.
Estamos falando de uma nação inaugurada pelo genocídio dos povos originários, sustentada por séculos à base da mão de obra escravizada. Um território colonizado e arquitetado por um patriarcado conservador latifundiário e aristocrata [16]. Não houve, nem haverá no curto prazo, um dia em que, neste país, não esteja em curso um plano de genocídio, extermínio, marginalização, encarceramento, subjugação de algum ou de vários segmentos da sociedade. Sejam índios, negros, mulheres, travestis ou comunistas. O discurso do inimigo interno é parte estruturante da necropolítica de “segurança” nacional [17].
Quando, em um país com estas características, chegam ao poder políticos que em meio a manifestações, negam a ciência e a importância dos setores públicos na promoção da equidade social, a partir de dados técnicos, científicos e sociais, torna-se notória a iminência da catástrofe. Um exemplo do caráter funesto que revestiu a política nacional, coadunando com vários setores e grupos sociais, pode ser observado na popularidade do fetiche punitivista: bandido bom é bandido morto [18].
Ao traçar como objetivo político a aniquilação daqueles classificados como inimigos, a imposição da soberania se dá pelo exercício do poder de matar, como ocorre em um contexto de guerra. Está em andamento uma investida deliberada de necroempoderamento, visando à institucionalização da necropolítica como estratégia de poder consolidada no senso comum. Trata-se de um esforço de deformação da moralidade para a difusão, naturalização, aperfeiçoamento e perpetuação da necrofilia como pressuposto de um projeto nacional.
No escopo deste projeto, o Estado não monopoliza a soberania, mas disputa o poder com entidades privadas necroempoderadas, como as milícias e as facções que funcionam como um estado paralelo, controlando a população, o território, a segurança e a política; se apropriando criminalmente dos elementos fundamentais da governamentalidade, administrando a vida e a morte para exploração de recursos e obtenção de lucro nas lacunas e nos limites do poder Estatal [8, 9].
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Considerando a capacidade de atendimento hospitalar do país, o pico agudo de infectados e o colapso dos sistemas de saúde, questionamos: quem morrerá com falta de ar e quem continuará respirando? Quantos milhares de pessoas irão morrer? Quem serão estes mortos, suas classes, cores, idades e identidades? Como estes corpos adoecidos estão sendo inscritos na ordem do poder?
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A Necropolítica e a COVID-19: algumas considerações
Embora os aspectos sanitários e econômicos tenham tomado a centralidade na pauta da pandemia, outras questões de cunho político, social e cultural estão imbricadas nesta crise sem precedentes. Certamente sequelas e traumas próprios da nossa realidade nacional irão impor singularidades sobre a manifestação da COVID-19.
Considerando a capacidade de atendimento hospitalar do país, o pico agudo de infectados e o colapso dos sistemas de saúde, questionamos: quem morrerá com falta de ar e quem continuará respirando? Quantos milhares de pessoas irão morrer? Quem serão estes mortos, suas classes, cores, idades e identidades? Como estes corpos adoecidos estão sendo inscritos na ordem do poder?
Quando os governantes explicitam que não é preocupação política central garantir que cada cidadão tenha condições de continuar respirando, estão assumindo a responsabilidade de escolher quem vai ter a chance de lutar pela vida entubado num leito de UTI e quem vai ser lançado à própria sorte até o último suspiro. Esta gestão da morte deixa cristalino o funcionamento da necropolítica, pois nem todos são afetados da mesma forma.
Se o último grau de expressão do poder político soberano consiste em determinar quem pode viver e quem deve morrer, porquê e como, no Brasil desde sua fundação, à luz de sua história, fica nítido quem são os corpos selecionados para viver e quem são os corpos selecionados para sobreviver antes de morrer. Esta noção continua válida e certamente será acentuada nesta situação de crise, convertendo o que seria tão somente uma fatalidade epidemiológica em uma ferramenta de extermínio.
Se até então a escolha sobre quem vive ou quem morre era exclusividade do poder soberano, a pandemia transformou este cenário. Segundo Mbembe, a COVID-19 democratizou o poder de matar. Qualquer pessoa que tenha contraído o vírus, potencialmente mortal, tem condições de transmiti-lo inconsciente ou deliberadamente. Todos temos, neste contexto, o poder de matar. O isolamento e distanciamento social seriam, portanto, uma forma de regular este poder. Analisando através deste prisma, as manifestações Brasil afora que reivindicam o fim do isolamento pretendem justamente a revogação da regulação deste poder de matar.
Enquanto é amplamente reconhecida a possibilidade de diminuição da letalidade da doença através do isolamento e do distanciamento, estes grupos reacionários querem justamente o oposto: usufruir do direito de usar o próprio corpo como arma biológica, fazem questão de assumir o papel de vetores genocidas. Agentes voluntários da perversa administração necropolítica da pandemia.
Ainda não é possível estimar a dimensão dos impactos que esta pandemia irá causar no mundo moderno capitalista globalizado e financeirizado. Mas é certo que este lúgubre evento abre uma janela de possibilidades para a introdução de pautas que contribuam para a redução da desigualdade, proteção e seguridade social. A emergência de uma doença que afeta mais severamente os pobres e os idosos evidencia que o envelhecimento e a pauperização da população não se resolvem com reforma da previdência, mas com fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, assistência e seguridade.
Mais do que nunca, o SUS demonstra sua importância e reivindica a urgência de financiamento massivo. O subfinanciamento e sucateamento para o desmonte da saúde pública que estava a todo vapor encontra um enorme obstáculo e o fortalecimento do SUS deve assumir a centralidade na pauta progressista e no senso comum.
Além disso, ideias como a renda básica universal, a taxação de grandes fortunas, auditoria cidadã ou moratória da dívida pública, reforma tributária progressiva, que anteriormente eram tidas como pautas da esquerda, passam a ser consideradas medidas necessárias até por setores liberais. Dinheiro não é problema para a oitava economia mundial, mas as prioridades precisam ser revistas. Nunca foi razoável e agora é ainda mais absurdo escoar uma fatia gigantesca do orçamento da união na amortização de uma dívida nada transparente enquanto o povo perece.
Certamente iremos resistir e superar este doloroso teste de resiliência. Até lá nos resta cultivar a biofilia [20]: nos cuidar, cuidar de quem a gente ama e nos fortalecermos enquanto sociedade, para que a normalidade inaugurada pós pandemia seja melhor que normalidade por ela encerrada. ■
PARA SABER MAIS
- Governo do Estado de São Paulo.Isolamento social em SP é de 49%, aponta Sistema de Monitoramento Inteligente. 2020. Disponível em https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/isolamento-social-em-sp-e-de-49-aponta-sistema-de-monitoramento-inteligente/
- Prefeitura de São Paulo.Prefeitura de São Paulo divulga Censo da População em Situação de Rua 2019. Disponível em: http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-divulga-censo-da-populacao-em-situacao-de-rua-2019
- Nielmar de Oliveira. IBGE divulga Grade Estatística e Atlas Digital do Brasil. Agência Brasil, 2016. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-03/ibge-divulga-grade-estatistica-e-atlas-digital-do-brasil
- Tormente, Fabiana Vieira. O vírus da COVID-19 pode ser transmitido através das fezes?Microbiologando. UFRGS, 2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/microbiologando/o-virus-da-covid-19-pode-ser-transmitido-atraves-das-fezes/
- Governo do Brasil.Dados sobre a população carcerária do Brasil são atualizados. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacao-carceraria-do-brasil-sao-atualizados
- Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed., São Paulo, 2018.
- Moreira, Rômulo de Andrade. A Necropolítica e o Brasil de ontem e de hoje. Justificando, Disponível em: https://www.justificando.com/2019/01/08/a-necropolitica-e-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje/
- Estévez, Ariadna. Biopolítica y necropolítica:¿ constitutivos u opuestos? Espiral (Guadalajara) 25, no. 73, 9-43, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.32870/espiral.v25i73.7017
- Valencia, Sayak.Capitalismo Gore. 2010.
- Mbembe, Achille; Meintjes, Libby. Public culture, v. 15, n. 1, p. 11-40, 2003.
- Câmara, Olga. Polícia brasileira: a que mais mata e a que mais morre. Jus, Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74146/policia-brasileira-a-que-mais-mata-e-a-que-mais-morre
- Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Estudo Global sobre Homicídios, 2019. disponível em: https://dataunodc.un.org/GSH_app
- de Souza Martins, José. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Editora Contexto, 2015.
- Grupo Gay da Bahia. Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: Relatório 2018. Bahia, 2018. Disponível em: https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2019/01/relatório-de-crimes-contra-lgbt-brasil-2018-grupo-gay-da-bahia.pdf
- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).Atlas da Violência. 2018. Disponível em:ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf
- Sader, Almir. O Maior massacre da história da humanidade. Viomundo, 2011. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/emir-sader-o-maior-massacre-da-historia-da-humanidade.html
- Mendonça, Thaiane Caldas. Política de segurança e a construção do conceito de “inimigo interno” no Brasil. I Seminário Internacional de Ciência Política da UFRGS (2015). Disponível em: https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/Thailane-Mendonça_Política-de-segurança-e-a-construção-do-conceito-de-inimigo-interno-no-Brasil-Thaiane-Mendonça.pdf
- Prado, Monique Rodrigues. O fetiche punitivista: bandido bom é bandido morto? Âmbito Jurídico, Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/noticias/o-fetiche-punitivista-bandido-bom-e-bandido-morto/
- Mbembe, Achille. Pandemia democratizou o poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’, Folha de São Paulo, Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml
- Fromm, Erich.Ética e psicanálise. Minotauro, 1996.