José Fornari (Tuti) – 20 de fevereiro de 2019
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A segunda metade do século 20 DC também trouxe avanços no entendimento da mente humana. Um movimento acadêmico interdisciplinar iniciado nesta época é conhecido hoje como a “Revolução Cognitiva”. Este inicialmente associou as disciplinas: psicologia, linguística e antropologia, em estudos focados nos processos mentais de percepção, identificação, avaliação e memória. O termo “cognição” vem do Latim “cognitio”, que significa “conhecer” ou “entender”. Do mesmo modo, o seu oposto, referindo-se ao estado de “não entender algo”, é exprimido pela palavra “incógnita”. Posteriormente, outras disciplinas também passaram a fazer parte da revolução cognitiva, tais como: a computação, a inteligência artificial e a neurociência. Desta frente de estudos, composta por tantas disciplinas voltadas ao estudo da cognição humana, surgiu o termo “Ciências Cognitivas” que se refere à pesquisa interdisciplinar que trata do entendimento da mente e de seus correspondentes processos cerebrais. No caso da música, a obra de Leonard Meyer (mencionada anteriormente) alavancou uma série de estudos de ciências cognitivas em música, em especial na área conhecida atualmente como Psicologia Musical, de onde derivaram as áreas de pesquisa entrelaçadas, conhecidas como “Cognição Musical” e “Musicologia Cognitiva”.
Enquanto isso, a música acadêmica postonal do século 20 DC, formada por diversas vertentes, tais como a música: serialista, concreta, eletroacústica, acusmática, espectral, entre outras denominações, foi evidenciando despertar menos interesse de ouvintes e assim às pesquisas em cognição musical. Isto parece ter ocorrido devido ao fato de que os gêneros musicais da vertente postonal apresentam em comum a característica de terem uma abordagem estética experimentalista, onde a constante busca por novas sonoridades e estruturações, que sejam únicas e originais, necessariamente as afastaram de sonoridades tradicionais, historicamente embasadas e socioculturalmente conhecidas e estabelecidas. É compreensível que os compositores desta corrente estética quisessem se libertar daquilo que alguns deles se referiam como “as amarras da tonalidade”, ainda mais por estarem se sentindo simultaneamente acossados, tanto pelo tédio das cadências harmônicas clássicas e da solidificada paleta de timbres que os instrumentos tradicionais de uma orquestra ofereciam, quanto pela fruição de recursos e novas possibilidades que a tecnologia eletrônica passava a lhes oferecer.
A produção musical do postonalismo me parece ser majoritariamente auto-referenciada. Os elementos sonoros e estruturais de cada composição postonal tendem a apontar caminhos cognitivos apenas a outros elementos pertencentes à obra em si, na qual estes habitam, como num sistema fechado. Na medida do possível, o compositor postonal parece tentar evitar na sua obra o florescimento de referências externas, as quais passariam a ser elementos comuns com outras obras deste ou de outros compositores afins, o que permitiria o surgimento de um processo memético que amalgamaria, para cada uma destas vertentes exploratórias da música postonal, uma base de conhecimento socialmente comum que as caracterizariam, possibilitando assim a emergência de um verdadeiro gênero musical. Ao se encapsularem em si próprias, tais obras tenderam a se afastar de todas as possíveis bases cognitivas que as poderiam sustentar, o que possibilitaria a sua identificação como “música” pela maioria dos ouvintes leigos, ou seja, os “não iniciados” nesta estética sonora. Isto significou o rompimento com as sustentações do entendimento sonoro e musical; desde os mais atávicos, que foram moldados evolução e fazem parte da natureza da nossa percepção auditiva, até aqueles nutridos pelos processos sociais contemporâneos de cognição musical. Ao impedir que processos cognitivos aferissem significado musical externo, estas obras se tornam, para a maioria dos ouvintes, verdadeiras incógnitas sonoras. Talvez não seja por acaso que a produção musical postonal tem sido utilizada em trilhas sonoras de filmes de horror e suspense, para exprimir situações de pânico, medo, estranhamento, inquietação e desespero. Todos estes são sentimentos derivam de uma única raiz mental: a incompreensão.
Talvez este tenha sido um dos fatores que levaram teóricos musicais nas décadas de 1960 e 1970 a tentarem criar métodos de formalização do processo composicional não tonal. Allen Forte, influenciado pelos trabalhos de Schenker, criou nesta época uma teoria de análise da música atonal baseada na teoria dos conjuntos (e também inspirado pelos conceitos expostos por Howard Hanson, sobre música tonal, em seu livro “Harmonic Materials of Modern Music Resources of the Tempered Scales” de 1960). Forte lança, em 1973, o seu livro “The Structure of Atonal Music”, onde procura esclarecer e formalizar as técnicas de análise da música não tonal, onde desenvolve trabalhos anteriores em teoria dos conjuntos para a análise de música dodecafônica, como o exposto no artigo de 1961, “Set Structure as a Compositional Determinant“, do compositor Milton Babbitt.
Também na década de 1970, surgiram diversos modelos de explicação do fenômeno do entendimento musical. Estes foram predominantemente baseados em estudos musicais quantitativos, empíricos e sistemáticos; tentando especialmente abordar a questão do significado e da expectativa musical, dando assim continuidade à corrente formalista de estudo quantitativo e empírico em música, que se estende desde Aristoxeno de Tarento (no século 4 AC), passando por Hanslick, Wundt e Meyer.
Em 1977, Eugene Narmour propôs um modelo para a análise musical baseado na expectativa, conforme definida por Meyer. Este modelo é conhecido como IR (Implication-Realization). Este é apresentado por Narmour como uma alternativa para a análise musical de Schenker (mencionada anteriormente). Em IR, ao invés da análise se basear nos elementos notacionais em si (como é o caso da análise schenkeriana para música tonal) tem-se um maior ênfase nos aspectos cognitivos da expectativa musical do ouvinte. Este modelo propõe uma hierarquia top-down de entendimento da obra (oposta à estrutura bottom-up da análise schenkeriana, que procura desvendar na obra musical a sua “ursatz”, ou seja, sua “estrutura fundamental”). Em IR, a expectativa musical criada na mente do ouvinte é sucedida pela sua percepção automática do gênero e do estilo musical da obra que está sendo escutada, o que cria uma ordenação cognitiva de eventos da escuta, onde a inferência inicial do contexto musical, dado pela percepção musical do ouvinte (implication), antecede e assim influencia a percepção das sucessivas expectativas musicais que criam o significado musical (realization) . [1]
Em 1983, o teórico musical Fred Lerdahl e o linguista Ray Jackendoff publicaram juntos um livro com o mesmo título de seu modelo de entendimento da música tonal. Este é conhecido como GTTM (Generative Theory of Tonal Music) que trata dos processos mentais inconscientes que habilitam o ouvinte a entender e a apreciar música. GTTM apresenta 4 estruturas do processamento do entendimento musical que a mente do ouvinte realiza automaticamente ao escutar uma obra musical. 1) Estrutura de agrupamento: a mais básica das estruturas, que permite ao ouvinte entender a segmentação hierárquica da música em motivos, frases, períodos, etc. estabelecendo assim uma noção inicial de sua estrutura hierárquica; 2) Estrutura métrica: descreve a regularidade do andamento através da percepção da pulsação musical formada por diversos elementos, tais como a alternância entre tempo forte e fraco, cadências harmônicas, ataques, etc; 3) TSR (Time-Span Reduction): estabelece a estrutura hierárquica de uma peça musical em relação à duração temporal de cada segmentação (ex: motivos, frases, períodos, etc.), descrevendo assim a sua organização rítmica; 4) PR (Prolongational Reduction): estabelece a estrutura hierárquica de uma peça musical em relação à percepção do ouvinte em termos de contrastes entre tensão e relaxamento e fechamento (closure) de frases, descrevendo a estrutura de uma peça musical através dos seus padrões de continuidade e progressão. Enquanto TSR estabelece a estrutura musical em termos de organização rítmica, PR estabelece sua estrutura em termos da continuidade de progressão de frases e períodos. O modelo GTTM foi inspirada nas palestras intituladas “The Unanswered Question” ministradas em 1973 por Leonard Bernstein, em Harvard. Durante estas palestras, Bernstein tentou apresentar uma estrutura sintática e até mesmo semântica para a música tonal, o que ele mesmo admite ser puramente especulativo e sem bases investigativas formais, a não ser a da sua própria intuição. Bernstein então sugeriu que pesquisadores apresentassem modelos consistentes de gramática musical, tentando explicar cientificamente como ocorre o processamento mental de música, nos moldes da gramática generativa de Noam Chomsky. A resposta a esta questão em aberto veio na forma deste trabalho acadêmico, fruto da cooperação entre um teórico musical e um linguista. [2]
Referências:
[1] Richard R. Randall. A General Theory of Comparative Music Analysis. PhD thesis. University of Rochester Rochester, New York. 2006. https://pdfs.semanticscholar.org/d6cc/57118a0ca9bd4a409977ef04a362e6c13e1a.pdf
[2] Fred Lerdahl, Ray Jackendoff. “A Generative Theory of Tonal Music”. Cambridge, Mass.: MIT Press. 1983.
Como citar este artigo:
José Fornari. “Modelos musicais de expectativa”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 20 de fevereiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/02/20/8/