Diário de Israel #7: Já estivemos aqui antes

Para dar o tom:  “Sign of the Times”, de Harry Styles

Na sexta-feira, dia 06 de outubro de 2023, eu esboçava mentalmente uma entrada no diário sobre o medo de bombas, mencionado na postagem anterior De pé no chão. Refleti sobre a serenidade dos primeiros meses em Israel, interrompida pelos bombardeios de maio de 2021. 

Eu estava em Israel há seis meses e a crise entre Israel-Palestina parecia distante. A pandemia estava no auge e vencer a COVID-19 parecia um risco mais iminente do que uma guerra. Enquanto no Brasil, a vacinação ainda avançava lentamente nos grupos prioritários, eu já estava imunizada com duas doses da vacina da Pfizer. A rotina de trabalho seguia sem restrições e eu me sentia segura. 

Mesmo com a calmaria aparente, Reut ― uma das estudantes no meu laboratório ― considerou que era hora de me familiarizar com uma mamad (acrônimo do hebraico “merhav mugan dirati“, que significa espaço protegido em prédios). Essa decisão foi tomada depois de um debate acalorado entre aqueles que achavam o assunto desagrável para depois de um almoço preguiçoso.

A mamad representa o epítome da vida do cidadão israelense

Ao entrar na sala de estudos, sempre animada com alunos de pós-graduação e com a porta sempre aberta, surpreendi-me ao encontrar ali uma mamad. Estrategicamente localizada no centro do corredor e ao lado da escada de incêndio, a mamad é acessível aos pesquisadores distribuídos em três grandes laboratórios.

No edifício Nella & Leon Benoziyo de Ciências Biológicas, onde trabalho, há quatro mamadim (plural de mamad) por andar, totalizando seis andares. Em todo o campus do Instituto Weizmann de Ciência, existem onze miklatim (plural de miklat, abrigo anti-bombas) e seis mamadim em espaços públicos, como estacionamentos e jardins.

Logo depois do estabelecimento do Estado de Israel (1951), a construção de abrigos antibombas já era incentivada em todo o país. Em 1992, tornou-se obrigatória a construção de mamadim em todas as unidades habitacionais, e hoje mais de 40% das residências estão em conformidade com a lei.

A mamad é um quarto de cinco a doze metros quadrados, com paredes, piso e teto revestidos por 20 a 40 centímetros de concreto maciço, além de uma porta de aço que se abre para fora e uma janela à prova de explosões em formato quadrado, também revestida com aço. As versões mais modernas incluem até um sistema de ventilação para ataques biológicos e químicos.

No ambiente doméstico, a mamad desempenha diversos papéis, desde quarto de criança, quarto de visitas, escritório, sala de televisão até simples quartos de bagunça. Em edifícios mais antigos, como o meu atual, contamos com uma miklat comunal localizada no primeiro piso, utilizada pelos condôminos como um espaço extra de armazenamento.

Mamad na minha segunda residência em Israel (2023).

A mamad representa o epítome da vida do cidadão israelense, independentemente de sua etnia ou status socioeconômico. Essa construção é considerada um vetor de resiliência emocional, tornando a vida possível mesmo durante intensos bombardeios ao mesmo tempo que cria uma complexa e ambígua amálgama entre normalidade e estado de emergência.

A supressão moral da esperança pela paz, em troca de uma rotina possível, é também uma estratégia político-militar que torna o conflito administrável e menos suscetível à pressão popular. Em uma sociedade onde guerra e paz não são fenômenos distintos ― alguns autores a descrevem como um continuum “nem guerra, nem paz” ou “quase guerra, quase paz” ―, as mamadim, combinadas com a tecnologia do Domo de Ferro (sistema de defesa antimísseis), tornam-se quase terapêuticas, embora não sejam um antídoto para a depressão e o estresse pós-traumático.

Mamad na minha primeira residência em Israel (2021).

Antes do sono, revisitei as reações fisiológicas de viver em um país em estado de guerra, apenas para acordar no sábado (7) às 6:30 ao som estridente das sirenes. Meu coração acelerou, e uma onda de oxigênio e adrenalina inundou meu corpo. Levantei-me com agilidade da cama, calcei os chinelos, abri a porta com destreza e desci as escadas, pulando degraus. Em Rehovot, tenho um minuto e meio para alcançar um local seguro. A cada andar, as portas se abriam, e as famílias emergiam em filas, algumas com crianças ainda adormecidas no colo, acompanhadas por cachorros; a escada ficou cheia. Meu corpo, no modo autômato, conhecia o percurso de cor.

Leia mais:

BIRD-DAVID, N.; SHAPIRO, M. Domesticating spaces of security in Israel. In: LOW, S.; MAGUIRE, M. (Ed.) Spaces of security: ethnographies of securityscapes, surveillance, and control. Nova Iorque: New York University Press, 2019. p. 163-183.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: ChatGPT

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *