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Julia Marcolan

Mulheres em ciência e tecnologia: as origens históricas da inversão de gênero

Três mulheres de épocas diferentes que contribuíram com a ciência.
Mulheres como Ada Lovelace e Marie Curie fizeram história na ciência, mas desafios de gênero persistem, reforçando a relevância da representatividade.

Autora

Julia Marcolan

As disparidades de gênero em relação à representatividade, ao acesso a oportunidades de pesquisa e ao reconhecimento acadêmico representam obstáculos significativos enfrentados pelas mulheres na carreira científica. Na história da tecnologia, no entanto, diversas mulheres fizeram contribuições expressivas e revolucionárias que têm sido fundamentais para o progresso da ciência. Um exemplo notável é Ada Lovelace, filha de Anne Isabella Byron, uma matemática da nobreza, e do poeta romântico Lord Byron. Sua mãe a incentivou a estudar música e a se aprofundar na lógica matemática. 

Além do estímulo materno, Ada também contou com a amizade e orientação da matemática inglesa Mary Somerville. Foi Mary quem apresentou Ada a Charles Babbage, o desenvolvedor da máquina diferencial, projetada para realizar cálculos de polinômios de forma mecânica. Em 1842, Ada escreveu o primeiro algoritmo a ser processado pela máquina analítica de Charles Babbage. Esse algoritmo tinha a capacidade de calcular a sequência de Bernoulli, e por esse feito, Ada é considerada a primeira programadora da história. As pesquisas de Ada estabeleceram as bases para a computação e programação, que moldaram o mundo da tecnologia décadas mais tarde. Ada Lovelace era uma verdadeira visionária, e sua contribuição pioneira foi essencial para o desenvolvimento da lógica de programação que usamos hoje. 

Grace Hopper é outro nome notável na história da tecnologia. Entre as décadas de 1940 e 1950, ela foi responsável pelo desenvolvimento da linguagem de programação Flow-Matic. Esta linguagem serviu como base para a criação do Common Business-Oriented Language (COBOL), que ainda é usado atualmente para o processamento de bancos de dados comerciais. Em 1959, Grace Hopper desenvolveu seu próprio compilador, reconhecido como o primeiro da história. Um compilador é capaz de traduzir um programa escrito em linguagem textual, que se assemelha à linguagem do programador, para linguagem de máquina, que o computador pode entender. Também foi Hopper quem popularizou o termo bug — inseto em inglês —, hoje amplamente utilizado nas áreas de tecnologia e no dia a dia. Segundo a história, enquanto tentava solucionar uma falha em seu computador, ela descobriu um inseto morto dentro da máquina. Desde esse episódio, o termo bug associou-se a erros ou falhas de código.

A origem da disparidade 

Apesar dessa representatividade histórica, se mantivermos o ritmo atual, seriam necessários cerca de 100 anos para alcançar a paridade de gênero em publicações científicas na área de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM). É o que revela um estudo publicado em 2019, pela uma pesquisa realizada pelo Allen Institute for Artificial Intelligence.

Historicamente, a sociedade patriarcal atribuiu às mulheres atividades tidas como mais simples e de menor importância, como, por exemplo, os cuidados com a casa e a criação dos filhos, enquanto aos homens foram destinadas as atividades entendidas como de maior prestígio, como garantir o sustento da família por meio do trabalho, seja ele braçal ou intelectual. A sociedade, entretanto, está em constante transformação, impulsionada pelo avanço da ciência. Nesse contexto, uma atividade anteriormente considerada fácil, que demandava pouco conhecimento e especialização é vista como uma atividade feminina, pode ser completamente redefinida pelos avanços tecnológicos. Assim, ela pode ganhar notoriedade e importância, passando a ser considerada pela sociedade uma atividade desafiadora e masculina.

O ato de programar passou por uma ressignificação ao longo do tempo. Houve um período em que programação era considerada uma atividade secundária e desimportante, sendo assim muitas vezes relegada às mulheres. Durante a Segunda Guerra Mundial, o ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer) — primeiro computador digital e eletrônico programável do mundo — foi desenvolvido com o propósito de auxiliar em cálculos balísticos. A programação do ENIAC envolvia a utilização de fios e interruptores para definir as operações. Além disso, cartões perfurados eram usados para armazenar informações. Programar o ENIAC era um trabalho manual, árduo e sujeito a muitos erros. Como resultado, seis mulheres desempenharam um papel fundamental como suas principais programadoras: Frances Bilas, Jean Jennings, Ruth Lichterman, Kathleen McNulty, Betty Snyder e Marlyn Wescoff.

Também podemos mencionar o caso das “mulheres computadoras” que contribuíram para o desenvolvimento do programa espacial da NASA na década de 1950. Essas “computadoras” eram responsáveis por calcular manualmente as equações de trajetórias necessárias para as viagens espaciais. A história dessas mulheres matemáticas, em particular das cientistas negras Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, foi recentemente retratada no filme “Estrelas Além do Tempo”, de 2016. As funções exercidas por elas eram extremamente mal remuneradas, uma vez que se tratavam de atividades secundárias. 

A computação passou a assumir um papel de destaque no mundo pós-guerra, em virtude de seu papel decisivo como uma ferramenta na máquina de guerra. Consequentemente, ela começou a ser percebida como uma atividade predominantemente masculina. Dessa maneira, a partir da década de 1970, houve uma grande inversão de gênero na área de tecnologia no mundo todo. Por exemplo, a primeira turma do curso de Bacharelado em Ciências da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME), em São Paulo, no ano de 1974, era formada por 70% de mulheres. Essa porcentagem se reduziu drasticamente não só no IME, que chegou à marca de 15% de mulheres em 2016, mas em diversos outros institutos das áreas de ciências exatas. 

O Instituto de Física de São Carlos, por exemplo, oferece três especializações dentro do curso de graduação em Física: Física Teórica e Experimental, Física Biomolecular e Física Computacional. Dados fornecidos pela comissão de graduação do instituto mostram que 36% dos ingressantes no IFSC no ano de 2023 eram mulheres. Esse número pode parecer alto à primeira vista. Mas, se analisarmos um recorte mais específico, podemos identificar que 51% dessas mulheres optaram pela especialização biomolecular, que apresenta uma interdisciplinaridade muito grande com a biologia, tornando o curso uma exceção nas áreas de exatas em geral. Analisando com mais cuidado, percebemos que apenas 25,6% do total de ingressantes na Física Teórica e Experimental são mulheres; na Física Computacional, o número se reduz para 22,5%.

O apagamento das mulheres na Física

Enquanto na área da tecnologia as mulheres eram direcionadas para funções secundárias e mal remuneradas, nas demais áreas acadêmicas elas enfrentavam um processo cruel de invisibilidade. O fenômeno de atribuir a homens o reconhecimento por trabalhos científicos que na verdade haviam sido realizados por mulheres foi identificado como um padrão persistente na comunidade científica, pela historiadora Margaret W. Rossiter, que cunhou o termo “Efeito Matilda”. Esse termo é uma homenagem a Matilda Joslyn Gage, que já percebia essa tendência de apagamento ainda no século XIX. Existem centenas de casos conhecidos de mulheres que foram afetadas pelo Efeito Matilda, e talvez mais uma centena de casos de mulheres das quais nunca ouviremos falar.  

Em 1883, Matilda Joslyn Gage escreveu o artigo “Woman as an Inventor,” publicado na The North American Review. Nesse artigo, Matilda refutou a ideia de que as mulheres não possuíam genialidade inventiva, citando exemplos práticos de invenções realizadas por mulheres em diversos campos criativos, que iam desde inovações na química até técnicas de parto. Ela destacou a contribuição significativa das mulheres para o mundo das inovações e desafiou os estereótipos de gênero que desvalorizavam suas realizações.

No início do século XX, a geneticista Nettie Stevens, responsável pela descoberta do sistema de cromossomos XY, viu seu orientador de doutorado, Thomas Hunt Morgan, receber todo o crédito pelo trabalho que ela havia realizado. Nettie faleceu em 1912, antes de conseguir uma posição como professora. Em 1933, seu orientador recebeu um Prêmio Nobel pela descoberta. Outra pioneira, a matemática Emmy Noether, contribuiu significativamente para a álgebra abstrata e formulou um dos teoremas mais fundamentais da física, conhecido como o “Teorema de Noether,” que estabelece uma relação entre simetrias físicas e leis de conservação. Embora seja agora reconhecida como uma das maiores matemáticas de sua época, Emmy Noether trabalhou por anos como assistente de um colega na Universidade de Göttingen, sem nem ao menos receber salário.

Marie Curie é considerada uma das maiores cientistas que já existiu. Ela foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel. Também a primeira pessoa a ganhá-lo duas vezes em áreas distintas, na química e física, ambos chamados de ciências duras. Marie Curie foi pioneira nas pesquisas sobre radioatividade, o que lhe rendeu o primeiro Nobel, o de Física, em 1903. Ela dividiu o Prêmio Nobel com seu marido, Pierre Curie, e com Henri Becquerel, que trabalharam junto a ela nas pesquisas. 

Ademais, Marie também descobriu dois elementos químicos, o polônio e o rádio, que lhe conferiram o Prêmio Nobel de Química em 1911. A vida acadêmica de Marie não foi fácil: logo após concluir o ensino médio, ela não conseguiu prosseguir com seus estudos em sua cidade natal, pois a Universidade de Varsóvia não admitia mulheres. Além disso, devido ao fato de ser mulher, Marie frequentemente teve que publicar artigos sob pseudônimos para que tivessem peso para a comunidade científica da época.

Dados mais recentes 

Voltando para os dias atuais, segundo dados da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), entre 2014 e 2017, o Brasil publicou aproximadamente 53,3 mil artigos, sendo que 72% deles têm autoras mulheres. No entanto, apesar desse impacto na pesquisa, as mulheres ainda enfrentam desafios significativos para alcançar cargos de liderança em grupos de pesquisa. De acordo com dados recentes apresentados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), apenas um terço dos bolsistas de pós-graduação nas áreas de exatas são mulheres. Dados públicos do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Física de São Carlos mostram que as mulheres representam apenas 37,83% dos ingressantes na pós-graduação em 2023. Fazendo uma análise mais precisa, 59% ingressaram no programa de pós-graduação em Física Biomolecular, 25% na Física Teórica e Experimental, e apenas 23% na Física Computacional.

Uma outra pesquisa revelou, por meio da  análise de dados da Digital Science, usando seu banco de dados de publicações, que as mulheres foram massivamente afetadas pelos lockdowns impostos durante a pandemia de COVID-19. De acordo com esses dados, a taxa de publicação de mulheres como autoras principais de artigos caiu sete pontos percentuais entre janeiro e maio de 2020, em comparação com o ano de 2015. Segundo as conclusões da pesquisa, uma das possíveis justificativas para essa queda é que os lockdowns obrigaram o confinamento em casa, resultando em um aumento da carga de trabalho relacionada ao cuidado, tanto nas tarefas domésticas quanto na educação das crianças, que recaiu majoritariamente sobre as mulheres acadêmicas neste ambiente.

Apesar da participação expressiva das mulheres na ciência, ainda persistem desafios consideráveis. Continuamos ocupando posições de menor destaque e enfrentando o apagamento de nossas vozes em muitos contextos acadêmicos. Além disso, existe a persistente ideia patriarcal de que as atividades de cuidado são predominantemente atribuídas às mulheres, sendo consideradas simples e de pouca necessidade de carga intelectual ou grande importância perante à sociedade capitalista, enquanto as tarefas de “maior prestígio” — trabalhos intelectuais em quaisquer campo, ou mesmo trabalhos braçais de pouco prestígio, mas que garantam o sustento do lar — são reservadas aos homens. Essas desigualdades de gênero no ambiente de trabalho e na sociedade como um todo são importantes e precisam ser abordadas para promover uma verdadeira equidade de oportunidades.

Incentivo e representatividade

Uma característica comum entre a maioria das mulheres que alcançaram notoriedade por seus grandes feitos na história da ciência e tecnologia é o incentivo que receberam. Ada Lovelace, por exemplo, contou com o apoio de sua mãe e de sua mentora, Mary Somerville. Marie Curie teve o respaldo de seu marido, Pierre, ao longo de toda a sua jornada acadêmica. Uma pesquisa realizada pela Microsoft revelou que, em geral, as meninas costumam manifestar interesse por ciência e tecnologia até os 11 anos, mas esse interesse tende a diminuir, e aos 15 anos, muitas delas começam a desistir. De acordo com o estudo, a ausência de modelos femininos nessas áreas é uma das razões para esse fenômeno. Desta maneira, é de extrema importância que continuemos a reescrever a  história das mulheres na ciência exaltando e compartilhando seu pioneirismo. 

Com o objetivo de promover a diversidade no campo de STEM, ao longo dos anos, surgiram várias iniciativas independentes destinadas a incentivar as meninas a seguir carreiras científicas. Uma dessas iniciativas é o projeto “Meninas Programadoras” do ICMC/USP, coordenado pela professora Maria da Graça Campos Pimentel. A principal meta desse programa é proporcionar às alunas do ensino médio e concluintes a oportunidade de desenvolver habilidades de programação e solução de problemas por meio de aulas que combinam teoria e prática.

Outro projeto de destaque é o “Laboratório de Talentos”, promovido pelo Instituto Angelim. Esse projeto tem como propósito sensibilizar jovens alunas do Ensino Médio da rede pública acerca das oportunidades de carreira nas áreas de ciência, tecnologia, artes e economia criativa, por meio de atividades práticas e do contato direto com mulheres que atuam ou estudam nos diversos campos do conhecimento.

Na Unicamp existe o projeto Meninas Supercientistas, que tem como objetivo apresentar a meninas do Ensino Fundamental II a carreira na área científica, incentivando-as a percorrer essa trajetória. O projeto é totalmente organizado por mulheres (docentes, funcionárias e alunas) e recebe cientistas para palestrar e debater ciência com as meninas em fase escolar.

A grande maioria das meninas que responderam à pesquisa da Microsoft acreditam que não estão tendo experiência prática suficiente com matérias STEM. Além disso, 60% delas admitiram que se sentiriam mais confiantes em seguir uma carreira nas áreas STEM se homens e mulheres fossem igualmente empregados nessas profissões, recebendo salários equivalentes. É imprescindível que políticas públicas sejam implementadas visando a equidade nos cargos de trabalho e salários para as mulheres nas carreiras de STEM. A revolução digital está transformando o mercado, e, atualmente, as mulheres representam apenas 25% da força de trabalho na indústria de tecnologia. Incluir as mulheres nesse mercado é fundamental para garantir sua autonomia e independência financeira.

Para saber mais 

Agência Brasil (2019) Mulheres assinam 72% dos artigos científicos publicados pelo Brasil, Agência Brasil

Câmara dos Deputados (2023) Mulheres são apenas 1/3 de pós-graduandos em ciências exatas e tecnológicas e têm financiamento menor, Câmara dos Deputados.

Gage, Matilda Joslyn (1883) Woman as an Inventor, The North American Review 136, n 318, p 478–89.

Pereira, LG, Da Silva, M N;Souza, VP de; Rezende, YC (2018) Hostilidade em jogos online: perspectiva feminina, Múltiplos Olhares em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v7, n2. 

USP (2018) Por que as mulheres desapareceram dos cursos de computação, Jornal da Universidade de São Paulo.

USP (2020) Produção científica feminina cai devido à pandemia, ABCD USP – Agência de Bibliotecas e Coleções Digitais da USP.

PIMENTEL, MGC; EUSEBIO, JML; GOULARTE, R; LEITE, UV; PICOLI, H (2023) Meninas Programadoras: Promovendo o Engajamento Feminino em Computação via Cursos Curtos Online de Programação, In: ANAIS DO WORKSHOP DE FERRAMENTAS E APLICAÇÕES – SIMPÓSIO BRASILEIRO DE SISTEMAS MULTIMÍDIA E WEB (WEBMEDIA), Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, p107-110.  

ANDREW, T (2017) Why don’t European girls like science or technology? Microsoft news.

WANG, LL et al (2021) Gender trends in computer science authorship, Communications of the ACM, v64, n3, p78-84.

Sobre a autora

Julia Marcolan é graduada em Física com ênfase em Física Computacional pela UFF/2019 e Mestre em Ciências pelo IFSC/USP. Atualmente, é doutoranda em Física Computacional também no IFSC/USP onde pesquisa Imagens por Ressonância Magnética (MRI) de tempos de relaxação ultra curtos, aplicadas a  avaliação de sementes. Além da pesquisa acadêmica, tem interesse em divulgação de ciência e tecnologia e neste sentido atua principalmente na divulgação e projetos de inclusão de mulheres nas áreas de STEM.

Nota da editora

Julia Marcolan é a autora convidada do vol.9, n.2, da Revista Blogs Unicamp.

Como citar: 

Marcolan, Julia. (2023). Mulheres em ciência e tecnologia: as origens históricas da inversão de gênero. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/27/mulheres-em-ciencia-e-tecnologia-as-origens-historicas-da-inversao-de-genero/ Acesso em dd/mm/aaaa

Sobre a imagem destacada:

Imagem gerada geradas em outubro de 2023 via Dall.e 3 (modelo de linguagem generativa multimodal). Edição por Carolina Frandsen.