A “bíblia” da neurociência – use com moderação

kandel livro.JPGNa minha saga em começar a estudar neurociências (que será documentada neste blog – este já é o segundo post) eu optei por começar lendo o “Princípios de Neurociências” do Kandel, como já havia dito antes.

E este é o primeiro livro-texto que leio desde o começo. Sim, livros-texto são aqueles gigantes usados como as bíblias duma disciplina de faculdade. Geralmente o professor da tal matéria só indica os capitulos que lhe interessam e que o tempo do curso permite desenvolver.

Mas começar a ler desde o começo é muito interessante. Os 2 primeiros capítulos do Kandel são muito legais, além de informativos, contando a história da neurociência. Não como um livro de história, mas uma história escrita por um cientista. A diferença é que vai se construindo uma história baseada nos trabalhos e desenvolvimentos da pesquisa, assim eu fui me sentindo mais embasado e preparado para conversar com quem trabalha na área.

Ramon y Cajal, Golgi, Wernicke, Broca, Gazzaniga, são nomes que eu sempre ouvia mas não tinha entendido até então sua posição e importância dentro dessa história toda da decifração do cérebro. Acompanhar seu erros e acertos faz com que várias idéias surjam e muitas outras morram no leitor – morte esta que é muito importante, já que algumas idéias que nós temos e nos fazem achar muito inteligentes por isso, acabam nos deixando com cara de idiotas quando percebemos que a dois séculos atrás alguém já pensou, testou, e refutou ou confirmou tudo que você tinha cogitado. Assim nós podemos nos localizar melhor na linha do tempo de desenvolvimento desta área, sem ter que reinventar a roda.

No ombro de gigantes eu me apoiei… escorreguei e caí.

O problema dos livros-texto é o mesmo de todo gigante: geralmente são lerdos.
Esta edição que eu estou lendo é de 2000, quando o Projeto Genoma Humano estava para ser terminado, pelo menos o rascunho dele. No livro ele fala que “os mais de 80 mil genes da célula humana…” e isto esta errado!

Pelo menos em parte. Antes do sequenciamento do genoma humano, achava-se que em média um gene corresponde a uma proteína. Como temos muitas proteínas devemos ter também muitos genes, mais ou menos uns 100mil. Qual não foi a surpresa quando descobriram que há menos de 30mil genes! Foi um tapa na cara da comunidade científica, e isso mostra que o genoma é mais complexo do que se esperava, porque poucos genes conseguem fazer muito mais proteínas.

E foi um tapa na minha cara também. Afinal, o livro de 2000 já está muito ultrapassado!
Mas afinal, que livro consegue acompanhar o desenvolvimento das coisas? Por definição um livro é “obsoleto” assim que nasce. Por isso já percebi que nas questões mais polêmicas e de áreas mais dinâmicas, como a biologia molecular, vou ter que dar umas olhadas nos trabalhos científicos recentes, principalmente nas famosas revisões, que são artigos que compilam o que há de mais novo em um determinado assunto.

E é isso mesmo, porque no fim das contas não podemos pôr a culpa no livro ultrapassado, quando o responsável pelo seu conhecimento é exclusivamente VOCÊ mesmo!

dialogue-kandel.jpg

Olha aí o Kandel com aquela cara de quem tem um Prêmio Nobel no bolso.

E a neuro-saga continua, o próximo tema será: como entender seu cérebro pelos erros.

Revista Veja quebra o côco científico mas não arrebenta a sapucaia

veja errou.jpg

Essa doeu na gente! Esta capa é velha mas representa a dor que sentimos.

Confesso que tenho uma certa tendência de ver um assunto sempre pelo outro lado e tentar defendê-lo, o famoso “advogado do diabo”. Mas acho que este tipo de atitude é saudável para qualquer discussão se usado com moderação.

capa veja.gif

A bola da vez é a revista Veja e suas escorregadas científicas desta semana. Uma das críticas é a de plágio sem citar a fonte da reportagem de capa “Genética não é espelho”. Clique aqui para entender.

Outra crítica, com relação à reportagem na sequência da já referida, traz um erro muito crasso, um gráfico mostrando pontes de hidrogênio, que só têm função estrutural, como genes. E o pior não é isso, mas sim a carta de resposta a uma crítica enviada à revista:

“Por não ser uma revista científica, VEJA pode sim representar os genes como bolinhas. Cometeríamos erro se tivéssemos trocado os genes pelo DNA ou coisas do gênero.(…)” Veja a história e a figura no Brontossauros em Meu Jardim.

Plágio e erro gráfico/conceitual sem retratação não têm desculpa, concordo plenamente. Mas afirmar que a reportagem toda é um lixo acho que já é um exagero.

Alguns pontos positivos:
-A reportagem de capa, fala de epigenética e da ação do ambiente sobre os genes e características (fenótipos) das pessoas. É uma idéia difícil de se ver na imprensa, que está cheia de determinismo genético com seus “gene da violência”, “gene do câncer de mama”, gene disso, gene daquilo. Esta é uma das poucas reportagens que eu vejo que abordam a importância do ambiente diretamente sobre a expressão dos genes.

-Trouxe um glossário para explicar o que é genoma, DNA, RNA, micro-RNA e epigenética.

-Explicou também como funcionam os estudos com gêmeos, importantíssimos quando se quer ver os pesos da genética e do ambiente.

-Falou até da importância e do mistério que é o desenvolvimento de um organismo, desde o zigoto até o nascimento, que é realmente uma das fronteiras mais importantes de nosso conhecimento.

Como disse, estou sendo advogado do diabo. Não simpatizo com a Veja em muitos aspectos, principalmente nos científicos. Fica aqui o contra-ponto e a sugestão de passar as matérias científicas por um consultor científico. Aposto que custará menos que estas manchas na reputação da revista.

Mapa gênico do cérebro.

ff_brainatlas3_f.jpg
A foto acima não é de um serial killer ou mesmo da série de TV Dexter. Talvez Hannibal Lector, do filme Silêncio dos Inocentes, preparando um jantarzinho? Também não. Isso, meu amigo, é cartografia genética cerebral (neologismo meu, mas ficou legal, não?).
Sequenciar o DNA humano foi a parte fácil, ficou agora o desafio de saber como a coisa toda funciona. E saber quais genes estão ligados e desligados nas diversas partes do corpo é um passo importante no entendimento do sistema.
O Allen Institute for Brain Science não pensou pequeno, começou logo pelo cérebro e por mapear a situação dos 20.000 genes de cada região dele. Gastarão 55 milhões de doletas até 2012. E nada de hipótese, teoria ou algo assim. Apenas coleta de dados. E é uma montanha de dados, bem maior que o seqüenciamento.
A idéia é coletar o máximo possível, sem tendências ou preconceitos. Analisar só depois de ter tudo na mão. Maneira interessante de trabalhar.

Oportunidades que o mapa abriria

Com este mapa na mão, pesquisadores poderiam unir áreas de pesquisa isoladas. Estudos de atividade de áreas cerebrais com ressonância magnética poderiam ser comparados com estudos de genética, ajudando por exemplo no estudo do autismo, que tem forte característica genética.
Outra frente legal do trabalho é no desenvolvimento do cérebro, usando camundongos em diferentes idades, esclarecendo assim como um órgão tão complexo se desenvolve.
O mapa do camundongo já está disponível, e é uma ferramenta que já vem sendo usada por pesquisadores no mundo inteiro, já que os dados são públicos.
O que é “normal”
Mas existem algumas preocupações. O projeto com humanos usará 15 indivíduos. Mas e se as diferenças entre os indivíduos for tão grande que seja impossível comparar e montar um consenso? Estes cérebros podem vir de fumantes, alcoólatras, pacientes psiquiátricos, ou seja, fatores que podem mudar a expressão dos genes. Assim, como considerar o que é um cérebro “normal”?
Além disto, analisar tão de perto pode ser como olhar uma pintura impressionista. Quando muito próximos não se identifica nada. Só com uns passos para trás que se entende o que está representado no quadro. E se o nível de zoom do mapa cerebral estiver exagerado? Entenderemos alguma coisa do quadro de funcionamento do cérebro? Bem, é esperar pra ver.
Link
Leia a reportagem fantástica da WIRED sobre o tema