O texto de hoje tem a contribuição do Biólogo Claudemir Rodrigues Dias Filho, Perito Criminal e Mestre em Genética e Biologia Molecular pela UNICAMP (e grande amigo desde o colégio). Ele também mantém um ótimo blog chamado Ciência Contra o Crime dedicado à criminalística, medicina legal e perícia criminal, leitura altamente recomendada!
Apresentações feitas, vamos ao que interessa: depois de termos visto que o genoma de um indivíduo pode não ser tão constante como se imaginava, agora, segundo cientistas israelenses, é possível fabricar provas periciais de modo a se falsificar até a “prova de ouro” na Criminalística, o DNA.
Os pesquisadores fabricaram amostras de sangue e saliva contendo DNA de uma pessoa diferente do doador original. Além disso, com acesso a um perfil de DNA armazenado numa base de dados qualquer, puderam construir uma amostra de DNA correspondente ao perfil desejado, sem necessidade de obter qualquer amostra da pessoa em questão!
Em entrevista ao New York Times, o autor principal do estudo publicado no periódico Forensic Science International: Genetics, Dan Frumkin, disse: “Você pode simplesmente montar sua cena do crime. Qualquer estudante de Biologia poderia fazê-lo.” Lembrem-se dessa frase, pois falaremos dela adiante.
As amostras falsas foram feitas de duas maneiras: a primeira precisa necessariamente de uma amostra de DNA real, mesmo que pequena, que foi amplificada (criação de cópias) por uma técnica chamada amplificação de genoma total (whole genome amplification, ou WGA).
Para testar se a falsificação seria viável numa análise, os pesquisadores realizaram um teste. Uma amostra de sangue de uma mulher foi preparada por centrifugação, sobrando só as células vermelhas (chamadas eritrócitos) e o plasma na amostra (lembre-se que essas células não têm núcleo, portanto, não fornecem DNA para análise). Em seguida, adicionaram o DNA que havia sido amplificado do cabelo de um homem.
Resultado: todo o DNA na amostra de sangue fabricada pertencia ao material do homem. Essa amostra foi até enviada para um laboratório americano de referência em medicina forense, que o identificou como uma amostra de sangue comum masculina, ou seja, a falsificação enganou a todos!
A outra técnica desenvolvida se baseia em perfis de DNA armazenados em bases de dados como números de série e letras que correspondem a variações de 13 locais no genoma de um indivíduo. A partir de uma combinação do DNA de várias pessoas diferentes, os cientistas clonaram pequenos trechos de DNA representando as variações mais comuns de cada um dos 13 locais, criando assim uma biblioteca desses trechos. Desse modo foi possível preparar amostras correspondentes a qualquer perfil desejado, somente misturando os trechos corretos como se fosse uma única amostra.
Para os pesquisadores, uma biblioteca com 425 dessas variações mais comuns no DNA seria suficiente para cobrir qualquer perfil imaginável! Imagine o tipo de precedente que um caso como esse pode abrir no sistema penal?
Se em UM caso for comprovado que a amostra de DNA que serviu como prova em um caso foi forjada, o que pode acontecer? Revisão de todos os casos em que esse tipo de evidência foi usado numa condenação ou absolvição? Difícil prever todas as conseqüências possíveis num caso assim…
Claro que as intenções do Dr. Frumkin estão longe de ser “em prol do bem-estar da Humanidade”. Além de pesquisador, ele é fundador de uma empresa de biotecnologia chamada Nucleix, que desenvolveu um teste para distinguir amostras de DNA reais das fabricadas, visando vender essa tecnologia aos milhares de laboratórios forenses. O teste se baseia no fato de o DNA amplificado artificialmente não possuir regiões metiladas, ao contrário do DNA “original”.
Considerando todos os aspectos da pesquisa e as implicações consideradas, uma coisa parece certa: o Dr. Frumkin vai ficar rico, certo?
Não necessariamente, e explicaremos por que.
Nas palavras do Clau: “A técnica de amplificação de genoma total (WGA) realmente veio para a glória e para a desgraça das análises de DNA forense. Essa técnica permite a amplificação do DNA de uma única célula, e é aqui que reside sua força: amostras forenses sempre são exíguas e isso impossibilita análises que demandam maiores quantidades de DNA. Por outro lado, a técnica realmente permite a criação de amostras falsas que, misturadas a um sangue livre de material genético, podem ser plantadas num local de crime, incriminando um inocente.”
Certo, então a premissa dos pesquisadores é válida, e o perigo disso acontecer é real?
Mais ou menos…
“Realmente, a análise da metilação é o meio mais preciso para verificar se o DNA é válido. Problema: essa técnica não é nada simples, e demanda um conhecimento de biologia molecular que hoje não se encontra em qualquer esquina. Há outras formas de detectar a falsificação, e uma delas é muito simples. De acordo com a pesquisa, a amostra fake é criada com o sangue centrifugado de uma pessoa X, sobrando os componentes que não possuem DNA, adicionando-se em seguida o DNA amplificado da pessoa Y (que se quer incriminar), certo?
Assim, o perfil genético adquirido seria da pessoa Y. Repare: o DNA é de Y, mas os eritrócitos são da pessoa X, portanto, se analisarmos moléculas (antígenos) da membrana dos eritrócitos podemos determinar se o ‘sangue’ é mesmo da pessoa incriminada (Y). Os antígenos A e B do sistema ABO ficam nas membranas das hemácias, e essa tipagem sanguínea diminuiria a dúvida.”
Para quem estava pensando em dizer ‘então, para o vestígio ser perfeito, não bastaria usar o DNA de Y no sangue de X, seria também necessário que X e Y fossem do mesmo grupo sanguíneo’, o Clau tem mais respostas: “Isso seria correto se os antígenos A e B fossem os únicos parâmetros para se analisar o sangue, havendo também o Rh, o MNS, Lewis, e 20 outros mais.”
Para terminar de detonar a fantástica idéia de lucro do Dr. Frumkin, aqui está a conclusão:
“Não é necessário contratar a Nucleix para saber se uma amostra de DNA forense é ou não verdadeira. Também não é ‘qualquer estudante de graduação’ que pode fabricar provas de DNA, como afirma o autor. Precisa ser um graduando que conheça muito bem as técnicas envolvidas, e tenha acesso a
(A) um bom laboratório de biologia molecular
(B) ao perfil genético de quem se quer incriminar
(C) a um local de crime
(D) técnicas para metilar o DNA fabricado
(E) um doador com sistemas sanguíneos idênticos ao de quem quer incriminar
Ainda parece fácil como disseram na entrevista ao New York Times?”
Por isso o conhecimento e a opinião de um especialista são importantes quando lidamos com reportagens técnicas: se o entrevistador do New York Times fosse o Clau, essa reportagem talvez nem saísse na imprensa.
Frumkin, D., Wasserstrom, A., Davidson, A., & Grafit, A. (2009). Authentication of forensic DNA samples Forensic Science International: Genetics DOI: 10.1016/j.fsigen.2009.06.009
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