Matemáticas ⇔ Matema-Ticas
Embora seja bastante comum o uso da palavra Matemática no singular para denotar esta área do conhecimento, cabe observar que não existe uma “Matemática” que segue linearmente a trajetória dos livros didáticos, formalizando-se na Grécia com as demonstrações, sendo apropriada pelos árabes e depois devolvida à Europa (ROQUE, 2012). Pois mesmo neste percurso descrito, houveram ramificações por disputas de interesses que movimentaram seu desenvolvimento.
Dito isso, começamos este texto com uma hipótese a ser defendida, e para tal aplicamos a “técnica” de representar simbolicamente a relação conhecida por “se e somente se” para associar as Matemáticas com as Matema-Ticas, que podem ser interpretadas pelos termos Matema (conhecimento do mundo) e Ticas (técnicas) (BORBA, 1988).
Desse modo, defendemos que ao mesmo tempo que as Matemáticas são condições necessárias para as técnicas de conhecimento do mundo, estas são necessárias para as Matemáticas. Como destaca Pierre Levy (1993), a tecnologia da oralidade modificou a forma como o mundo pudera ser conhecido desde a Antiguidade, e em parafrase a esse autor, Borba, et al. (2014) afirmam que a informática modificou a Matemática.
Assim, para iniciarmos este texto, cabe diferenciarmos a ideia de tecnologia de tecnologia digital (representada por bits). Como mencionado anteriormente, a oralidade é uma tecnologia e que teve e tem até hoje um imenso impacto na construção do conhecimento. Da mesma forma que a escrita também é uma tecnologia que permitiu uma outra conexão mais independente entre quem registra e quem acessa, também o ábaco possibilitou a partir de operações mecânicas (manuais) a realização de cálculos. Mas mesmo dentre as tecnologias apresentadas sabemos de suas variações, a língua oral é diferente entre países (e até entre regiões ou grupos), a escrita também é específica para cada civilização e mesmo o ábaco não é único, temos por exemplo o escolar (dividido em 10 contas por coluna), o japonês (com cada coluna dividida, parte com 4 contas e a outra com uma) e o chinês (com cada coluna dividida, parte com 5 contas e a outra com duas).
Vemos que cada tecnologia não existe por si, mas com a sociedade e a necessidade específica. No Brasil por exemplo, a televisão analógica foi uma tecnologia que se espalhou em larga escala, e com isso passamos a ter formas de conhecer o mundo a partir dela, e formas de instruir utilizando-a, a lembrar do Telecurso 2000.
Embora possamos pensar na tecnologia digital nas aulas de matemática como algo inovador, Borba et al. (2014) nos ajuda a nos situar no tempo diante esse assunto, ao expor o que foram as 4 fases das tecnologias digitais na Educação Matemática no Brasil. A 1a fase, ainda nos anos 80, veio com a popularização da linguagem de programação LOGO e sua inserção nas escolas como forma de aprender Matemáticas programando. A 2a fase tem maior incidencia nos anos 90 com os softwares específicos, como Cabrii, que tinham interfaces gráficas e permitiam discernir entre desenhos e construções geométricas dinâmicas. No começo dos anos 2000 viemos para a 3a fase com a popularização da internet (discada ainda), mas já abrindo espaço para iniciativas de Educação Matemática Online, blogs, fóruns, MOOCs e AVAs. No começo dos anos 2010 viemos para a 4a fase com a popularização da banda larga e as mudanças que essa nova quantidade de dados transmitidos em tempo real viabilizavam. Borba em um livro publicado durante a pandemia de COVID sugere que tenhamos entrado na 5a fase dado a adesão massiva de docentes e discentes às lives e vídeos para ensinar e aprender Matemáticas.
Como enunciamos, nossa hipótese a ser defendida é de que não existe Matemáticas sem Matema-Ticas e nem Matema-Ticas sem Matemáticas. Assim, a LIBRAS (Lingua brasileira de sinais) tal como a oralidade é uma técnica, que desde 2015 pela lei 13.146/15 passou a ser componente curricular obrigatório nos cursos superiores de formação docente. Diante esta técnica é possível comunicar-se de forma não-orale portanto não corresponde à estrutura escrita do português que representa visualmente os sons da comunicação oral. Assim, a LIBRAS como uma técnica, modifica a forma como se conhece o mundo.
Do mesmo modo como as Matemáticas se moldaram a partir de cada demanda específica, não houve cérebros altruístas que se ocuparam no abstrato afim de produzir axiomas e propriedades. A própria contagem foi uma técnica para organizar rebanhos, que acompanhava instrumentos de registro, como ossos, pedras, riscos, de modo análogo as relações comerciais trouxeram a necessidade de representar saldos positivos e negativos. Com isso vemos que os números Racionais surgem historicamente antes dos Inteiros, como forma de expressar partes, embora usualmente confundamos a ordem da estrutura com as ordens da invenção, como reforça Roque (2012).
Para os gregos a representação de uma Matemática estava quase sempre associada a uma representação geométrica. No caso dos números Racionais não era diferente, e isso ocorria a partir do conceito de mensuração. Dados dois segmentos de reta de comprimentos distintos X e Y. Assim, seria possível alinhar N segmentos X e M segmentos Y, de modo que ao final tenham o mesmo tamanho. Expressando isto agora com a técnica da álgebra, temos X*N = Y*M ⇔ X = Y*M/N, para X e Y segmentos não nulos, e M e N números Naturais, com N diferente de 0.
Observe que a representação dos segmentos alinhados pode ser generalizada se assumirmos que Y seja uma unidade de medida. Logo X = M/N unidades, e assim, dado um problema de alinhar segmentos, chegamos a uma definição de número Racional: X é Racional positivo se pode ser escrito como M/N, com M, N ∈ ℕ, N ≠ 0. Assim, este problema de alinhar segmentos pode ser inicialmente enunciado sem a técnica da escrita, somente alinhando objetos que o representam, como tiras de papel, EVA, isopor, madeira ou qualquer outra tecnologia que esteja ao alcance.
Contudo, há duas questões que podem emergir deste processo, a primeira é a precisão da medida, e a segunda é o comprimento da soma dos segmentos. Basta pensarmos num exemplo com “100” e “101”. Precisaremos alinhar 100 segmentos de “101” e 101 segmentos de “100”, o que pode ser exaustivo e propício a falhas na precisão em que esses segmentos foram medidos. Uma alternativa para essa questão, é sua realização mediada por alguma tecnologia digital, que permita realizar um grande número de ações com medidas e espaço de tela dimensionáveis dinamicamente.
Ainda sob a ótica de representar números Racionais por segmentos alinhados, podemos pensar na mesma estrutura, mas agora representada por duas faixas de som digital com durações diferentes, por exemplo X tem 3 segundos, e Y tem 4 segundos. Se alinharmos repetidas vezes cada faixa de áudio teremos que em 12 segundos, X e Y tocarão intercalados, X terá tocado 4 vezes, e Y tocado 3 vezes, e ambos terminarão de tocar pela primeira vez juntos.
Com isso, vemos que é possível e necessário para cada tecnologia utilizada para acessar a informação, se pensar em seu efeito para com o conhecimento que será “criado” ou “recriado” a partir dela. Assim, na posição de quem ensina Matemáticas, há a necessidade de considerar as técnicas de cada indivíduo ou grupo para perceber e aprender, como são suas Matema-Ticas.
Referências:
BORBA, M. C; SCUCUGLIA, R. R. S.; GADANIDIS, G. Fases das tecnologias digitais em Educação Matemática: sala de aula e internet em movimento. 1a ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 152p.
ROQUE, Tatiana M. História da matemática: Uma Visão Crítica, Desfazendo Mitos e Lendas. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
LÉVY, P. As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
// Este texto foi elaborado durante a prova escrita da UNIRIO, como uma argumentação no contexto da formação de professores, que perpassa ao menos um tópico de cada item:
a) Tecnologias assistivas como recurso educacional na sala de aula de matemática e/ou Tecnologias digitais como recurso educacional na sala de aula de matemática.
b) Matemática para ensino de números Racionais na escola básica e/ou Matrizes, sistemas lineares e conexões com a Matemática da escola básica.
Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):
SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Matemáticas ⇔ Matema-Ticas. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 11. Ed. 1. 1º semestre de 2024. Campinas, 7 maio 2024. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/5690/. Acesso em: <data-de-hoje>.