Você enganaria seu Personal Trainer? // parte 4
Dando sequência para esta trajetória de narrativas sobre a escolha de admitir que os discentes alcancem o conceito máximo nas disciplinas sem realizarem avaliações escritas em sala de aula. Na parte 3 contei sobre como foi o planejamento do 1o semestre de 2023 e sua execução, e agora contarei como foi o planejamento do 2o semestre de 2023 e sua execução.
Neste semestre decidi experimentar reproduzir o mesmo planejamento de avaliações por atividades tanto para as turmas dos técnicos como para a graduação. Ainda que das minhas turmas eu tinha 2 de 2 créditos (Matemática VI e VII), 2 de 4 créditos (Matemática III e IV) e 1 de 6 créditos (Pré-Cálculo). Na real, eu achava que isso seria muito pesado para as turmas de 2 créditos (mas meio que deu certo).
Minha proposta foi planejar o semestre para 15 semanas de aulas, dividindo a primeira parte em 6 semanas e a segunda parte em 9 semanas. Definindo que a cada duas semanas de aulas com “conteúdos novos” a terceira semana seria chamada de Save Point, e teria como objetivo servir de uma aula extra, na qual não desenvolveríamos “conteúdos novos”, nem haveriam atividades para entregar na semana seguinte.
No Save Point fariamos uma revisão do conteúdo visto nas aulas das duas semanas anteriores, pois assim se houve falta ou algum conceito ficou parcialmente compreendido, aquele seria o momento de esclarecimentos. Essa aula também serviria para trabalhar com exercícios de fixação ou exercícios mais avançados, também poderia ser utilizada para apresentações, ou para realização de avaliações. Contudo, sinceramente a principal razão que me levou a criar e não abrir mão de considerá-las no planejamento, são os imprevistos recorrentes que impossibilitam as aulas. Digo isso pois nesse período trabalhando neste instituto, por várias situações foi preciso cancelar as aulas (falta de luz, falta de água, criminalidade…) e para preservar o calendário, coloco que na ocorrência destes incidentes, os Save Points seriam “aulas” a serem sacrificadas. Assim, o remanejamento do calendário não comprometeria (a menos de um excesso de incidentes) as aulas em que estava planejado desenvolver “conteúdos novos”.
// Se você acha que não entendeu sobre o Save Point, eu te entendo… meus alunos durante o conselho de classe elogiaram o Save Point e precisei explicar para o corpo docente o que era. Eles perguntavam se era aula vaga, mas não é, se era aula de exercícios, também não é… é uma aula em que posso fazer o que for preciso para melhorar a qualidade das duas aulas que a antecedem //
A outra “sacada” que tive nesse semestre foi deixar todas as atividades com o mesmo valor na nota dos alunos. Isto é, cada conjunto de atividades valeria 20% da nota.
- Listas de exercícios – fez pelo menos um (independente de estar certo), conta como atividade feita.
- Sínteses – enviou a foto das anotações (sejam lá quais tenha feito) daquela aula, conta como atividade feita.
- Exercício inventado – enviou a foto de um exercício inventado sobre o tópico da aula junto da sua resolução, a atividade está feita.
- Demonstração – enviou o print da tela com os bloquinhos da demonstração montados, conta como atividade feita.
- Audiodescrição (essa é nova) – criei um grupo no whatsapp para cara turma, e no classroom da disciplina eu lançava um problema que a resolução deveria ser enviada na forma de áudio no grupo do whatsapp, de modo que quem escute, seja capaz de entender o passo a passo da resolução.
- Seminário de coisas legais (essa também é nova) – em duplas, os alunos poderiam “marcar” de realizarem uma apresentação de seminário sobre algum tópico legal relacionado à disciplina durante o Save Point. A condição era realmente subjetiva, ser “legal”, algo que pudesse ser contado a outras pessoas com entusiasmo.
Observe que são 6 conjuntos de atividades, cada um valendo 20% da nota, logo o máximo atingível são 12 pontos. Essa foi outra questão que eu pensei bastante, pois assim os alunos podem escolher dentre esses 6 tipos, quais eles se sentem mais a vontade de fazer. Atendendo pelo menos 3, podem obter a nota para passar na disciplina, e atendendo 5 conseguem fechar a disciplina com 10. Isso também permite que o aluno não se sinta forçado a realizar um tipo de atividade que lhe cause desconforto, como por exemplo, se expor enviando áudios, ou apresentando um seminário.
Conforme previ, vários alunos começaram a pedir para enviar o áudio apenas no particular, pois não queriam se expor no grupo da turma. Contudo, explicando que a atividade valia uma parte da nota, mas eles poderiam compensá-la fazendo as outras, isto fez com que aceitassem a condição. De forma geral nos primeiros áudios os alunos escreviam um roteiro do que iriam dizer, gaguejavam, falavam com voz trêmula, ou acelerada. Eu geralmente ouvia os áudios no ônibus a caminho do trabalho, e ia comentando no próprio grupo do Whatsapp sobre alguns erros que observava. Mas ao longo do semestre, o envio dos áudios foi se naturalizando, e os alunos ficaram mais acostumados com isso, enviando-os várias vezes sem um roteiro, só com a resolução feita em mãos.
Os seminários eu considero que não saiu como imaginei. Acho que a liberdade para a escolha do conteúdo foi um dificultador a mais para as turmas, que não encontravam algo “legal” para apresentar. Na maioria dos casos de alunos apresentarem, geralmente eram os alunos que mais se sobressaíam na disciplina através dos métodos mais usuais. Em outras situações, a necessidade de apresentar em dupla era um impecilho, que levava a um aluno “puxar” o outro para frente, apenas para dar a quantidade solicitada.
Uma outra situação que eu fui naturalizando neste semestre, foram os “exercícios especiais”. Que sem prévio aviso, na oportunidade de ocupar um período de aula após ter revisado bem algum tópico, passava na lousa algo extremamente difícil (para aquela turma) e dizia que “valia tudo” para resolvê-lo, e caso alguém conseguisse ir até a lousa e mostrar a resolução adequadamente, a turma inteira receberia +0,5 na nota daquele período de avaliação. Isso deu bastante certo, pois fazia com que os alunos trabalhassem juntos, já que bastaria um conseguir para todos ganharem o prêmio.
Outra coisa que aconteceu meio que ao acaso, foi durante a última prova de recuperação daquele semestre. Quando na ocasião os alunos estavam desesperados e eu propús que sacrificando 4 questões certas (das 40 totais, pois a prova vale 20 pontos), eles poderiam utilizar o celular para consulta livre por 5 minutos. Em meio a isso, um aluno se propôs a perder um pouco a mais para ganhar um tempo extra, e foi concedido. E depois, outro aluno se propôs a perder novamente um pouco a mais da nota para ter direito a mais tempo de consulta, mas nesse caso eu concedi sob a condição de que ao terminar o tempo a prova deveria ser entregue, sem tempos extras.
Essa experiência de trapaças permitidas foi interessante, pois na prática elas ajudaram bem pouco, já que os alunos precisavam neste período de consulta, ultrapassar a quantidade de acertos gastos para utilizá-la, e isso também “gastava” as questões mais fáceis que eles já tinham resolvido, exigindo que na consulta fossem atrás de questões medianas ou difíceis.
Uma das coisas mais interessantes que essa forma de avaliar me trouxe, foi durante os conselhos de classe do técnico. Pois eu tinha em mãos os tipos de atividades que cada aluno fez, me dando um conhecimento mais claro sobre seu perfil, isto é, se era de quem enviava os áudios, resolvia as listas, anotava no caderno… o que inclusive ajudava os alunos mais desesperados, que no final do período, eu explicava quais atividades ainda estavam em aberto para serem feitas, e o quanto isso influenciaria nas suas notas.
Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):
SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Você enganaria seu Personal Trainer? // parte 4. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 12. Ed. 1. 2º semestre de 2024. Campinas, 13 de julho 2024. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/5796/. Acesso em: <data-de-hoje>.
Caramba que interessante, faço licenciatura em Física, vou me inspirar na sua organização pra fazer um histórico das aulas e uma análise depois, gostei bastante do texto e das atividades realizadas. Confesso que comecei lendo a parte 4, depois continuo kkkk
Bom dia Joao, te falar, essa não foi uma decisão fácil, e vire-mexe estou me questionando sobre o caminho que tomei. Mas confesso que quando reflito que sempre haverão alternativas para trapacear, entendo que o papel de quem ensina não é ficar vigiando se trapaças ocorrem ou não, e sim favorecer que a aprendizagem ocorra supondo que todos estão sendo honestos. Nessas postagens eu meio que escrevo para mim mesma, organizar o que estou fazendo e pensar se realmente o que faço está claro ou se me perdi no caminho :3 vou ler seus outros comentários e já te respondo
Muita sorte em ter a senhora como professora! Os "exercícios super difíceis" no final da aula são bem animadores! - Gustavo Qim221
Oiiiiiiii Gustavo, também gosto bastante da sua turma. Feliz que goste dos exercícios super difíceis :3 isso veio meio que por acaso mas eu tenho percebido que é um estímulo que independente do ganho da nota. Tipo, n sendo difícil tirar nota, o desafio é tipo um amistoso, não há riscos e me ajuda a ver como vcs estão na hora de fazerem sozinhos <3
Abraços
Att. Manu