Let me solve it
Tudo começou em meados de 2020, com o início da pandemia uma colega de doutorado me pede ajuda para criar uma versão digital do material fraction strips. Daí eu como sempre, gosto de explorar as possibilidades, decido propor um modo hard dessa atividade, reduzindo a quantidade de informações e oferecendo algumas relações geométricas que permitem encontrar o valor das frações.
A proposta era interessante, mas para testar sua eficácia com alunos do Ensino Fundamental Anos Finais decidimos lançar ela em um grupo da Unicamp como “desafio” e ver se universitários de uma das melhores instituições do país conseguiram entender aquela dinâmica (se eles não conseguissem, seria um indicativo de que exageramos na proposta). O resultado deu tão certo que passou a ser uma ação regular, todo fim de semana postava três novos desafios 🙂
Foram três anos postando desafios regularmente no grupo da Unicamp, com o passar do tempo esse pseudo-projeto foi se moldando e ganhando forma, transformando-se em algo próprio. Os desafios se tornaram mais variados, desde os de dificuldade “caramelo” (referência a única pessoa que resolvia os desafios mais monstruosos com extrema facilidade, geralmente no ônibus voltando da aula de teatro), até os triviais. Nesse período também tivemos vários desafios com temáticas específicas representadas a partir das suas formas ou paletas de cores (as três paletas mais comuns foram as bandeiras do arco-íris, trans e não-binária).
Houve também desafios que procuravam recriar obras de arte, ou referências famosas das mídias geek, até desafios que procuravam experimentar novas dinâmicas de desafios, como um desafio sem informação numérica nenhuma (precisava descobrir o ângulo), e outro com soluções complexas (a representação visual deste desafio não condizia com suas medidas).
Com o término do doutorado, meu vínculo com a Unicamp se encerrou e por isso decidi tirar essa referência de seu nome e de seu logo. Pois refleti que esse era um contexto que não se aplicava mais (durante sua existência nesta comunidade, eu procurava dentre as pessoas mais envolvidas nele, alguém que aceitasse dividir esse trabalho comigo, mas seguiu sendo algo solo).
Uma pergunta recorrente neste trabalho era de onde eu tirava os desafios?
Então, entre 2020 e 2024, criei 450 desafios diferentes para esse projeto. O método para criá-los era bem simples, eu abria uma página nova no LibreOffice Press (análogo ao Power Point no pacote Office), e começava a “mexer” em algumas formas geométricas pensando como elas ficavam se fossem encaixadas, e se aquela composição teria uma solução única.
// Determinar que uma composição tem solução única é “bastante simples”, basta checar se algum processo de deformação contraria seu enunciado ou sua solução. Existem desafios que podem ser deformados e mantém a mesma solução (por exemplo a área de infinitos triângulos diferentes com as mesmas medidas de base e altura, são iguais), e outros cujo enunciado impede que sejam deformados (por exemplo polígonos regulares).
Basicamente era isso, uma brincadeira de acoplagem de objetos coloridos até achar um arranjo que fosse legal, com cores legais e com solução única… daí você me pergunta, eu resolvia antes de publicar? Não!
// Por razões particulares (o desafio 36) eu passei a tomar o triplo de cuidado sempre que o desafio envolvia círculos. Mas sendo desafios que pudessem ser decompostos em triângulos, por mais difíceis que fossem, tinha jeito.
Assim que o desafio estivesse pronto, eu lançava ele, e então tentava resolvê-lo. Publicar sem ter resolvido antes era um “estímulo” para que eu mesma me esforçasse pra resolvê-lo, afinal, como eu saberia se quem comentou a resposta acertou, se eu não sei o resultado?
E te contar… que ideia ruim. Pois várias vezes o desafio era realmente bem mais difícil do que aparentava (por exemplo, o fatídico desafio 36, que não resolvi na época, e 3 anos depois tomei coragem para resolvê-lo). Coisa aqui, coisa ali, isolar uma informação, deduzir outra… até chegar numa expressão gigantesca que resolvesse o bichinho.
O que me ajudava bastante a resolver os desafios eram os softwares online Wolfram e MatrixCalc. O MatrixCalc me ajudava bastante quando ainda não entendia como expressar um sistema de equações lineares no Wolfram, mas depois de um tempo, o Wolfram passou a resolver tudo, desde equações com muitas incógnitas, potencias, raízes, arcostrigonométricos, e coisas que certamente você não quer encontrar em um desafio para resolver na mão.
Mas se o Wolfram “resolve” pra mim, então como posso dizer que sou eu quem resolve o desafio?
Esse é um pequeno dilema filosófico com o qual já me confrontaram algumas vezes, e que tenho a resposta bem formulada.
O papel do Wolfram é resolver a expressão que me dará a resposta do desafio. Meu trabalho é criar a expressão.
De forma geral, não é você quem ferve a água, e sim o fogo. Mas isso não te tira o mérito de estar cozinhando, afinal quem colocou a panela no fogo, selecionou os ingredientes e fez seu preparo, e retirará dela o produto, não é o fogo.
Assim como não é o Wolfram quem leu o desafio, interpretou suas informações e elaborou a expressão que relaciona a área conhecida com a área a ser descoberta.
Considero ainda que a experiência de semanalmente resolver desafios de matemática (criá-los também) me foi bastante útil quando me deparei com algumas questões do concurso público em que vim a assumir.
Eram perguntas complexas de matemática, mas que eu estava meio preparada para enfrentá-las, pois além dos desafios de matemática, eu seguia na minha pesquisa de doutorado sobre demonstrações de teoremas e era estagiária docente da disciplina Cálculo III, então foi um semestre em que eu mesmo estando em um programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, eu respirava diariamente muita matemática.
Daí, com o término do projeto, vim a organizar as resoluções que eu já tinha e elaborar as resoluções que faltavam nos desafios (pois várias vezes eu resolvia o desafio num rascunho e não guardava a resposta), formando a cada 30 desafios um Ebookzinho. Hoje a coleção de 15 Ebooks de desafios encontra-se completa e você pode consultar tanto os desafios quanto as resoluções de qualquer um dos 450 desafios deste projeto, no Kindle ou de graça em PDF 🙂
Espero que tenha gostado dessa história esquisita, abaixo aproveito para colocar outros posts deste blog em que falo sobre o projeto de desafios de matemática.
Desafios de facebook ganham página oficial da UNICAMP (09/02/2020)
A dificuldade de Taeko Okajima com divisão de frações: parte 4 (04/06/2021)
Consistência na solução de um desafio de matemática (01/01/2022)
Resolução estética (16/04/2022)
O poder da trigonometria te obriga! (05/10/2023)
// A capa desse post é uma referência ao jogador com o personagem “Let me solo her” do jogo Elden Ring. Imagem adaptada de https://danbooru.donmai.us/posts/5273956 do artista lautaro_havlovich.
Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):
SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Let me solve it. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 12. Ed. 1. 2º semestre de 2024. Campinas, 13 de julho 2024. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/5800/. Acesso em: <data-de-hoje>.