Celebrando Ruth Nussenzweig – a mulher que abriu caminhos para uma vacina contra a Malária

Publicado por Giovana Maria Breda Veronezi em

Uma das coisas que mais gosto em colaborar no blog é a constante oportunidade de conhecer personagens e trajetórias tão inspiradoras, que muitas vezes estão tão próximas de nós e nem sabíamos. E inspiração é a palavra chave do que a vida e o trabalho de Ruth Nussenzweig despertaram em mim nestas últimas semanas em que pude descobrir mais sobre este grande nome da parasitologia para contar aqui.

Ruth Sonntag Nussenzweig nasceu em Viena, na Áustria, em 20 de junho de 1928, filha dos médicos Eugenia e Barouch Sonntag, ambos de origem judaica. Pouco tempo depois de seu nascimento, a Europa iria testemunhar a ascensão e expansão do regime nazista, ocorrendo em 1938 o Anschluss – a anexação da Áustria pela Alemanha nazista. No ano seguinte, a família de Ruth, mesmo não sendo religiosa, mudou-se para o Brasil para escapar à perseguição aos judeus, que só aumentava.

Ruth com colegas (à dir., seta) em São Paulo. Imagens: Arquivo pessoal da família Nussenzweig, reproduzido de Krettli 2018

Ruth chegou em São Paulo aos 11 anos e ali cresceu. Movida pelo interesse em ser pesquisadora, ingressou na Escola de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em 1948. Lá, conheceu o colega de classe Victor Nussenzweig, nascido no Brasil, filho de judeus poloneses também refugiados, que viria a se tornar seu marido e colega de profissão. Segundo o próprio já relatou em entrevistas, seu interesse maior era a política de esquerda, chegando até a ter sido filiado ao partido comunista, mas que Ruth o convenceu de que a partir da ciência ele traria mais benefícios às pessoas do que por meio da política.

Enquanto universitária, Ruth começou a fazer pesquisa em colaboração com Victor no departamento de parasitologia da USP. Seus primeiros estudos eram focados no parasita causador da doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi. Juntos, eles estabeleceram melhorias no método de detecção da doença e descreveram a capacidade do corante violeta de genciana de matar o parasita no sangue sem torná-lo tóxico. Esta descoberta teve grande impacto na prevenção da doença, que pode ser transmitida por meio de transfusão de sangue infectado, e por décadas as bolsas de sangue usadas para transfusão na américa latina eram azuis devido à presença do corante.

Ruth e Victor casaram-se no civil em 1952, na biblioteca da Faculdade de Medicina da USP, e graduaram-se um ano depois, em 1953, tornando-se professores associados da USP, ao mesmo tempo em que desenvolviam suas pesquisas de doutorado. Foram por um período de 2 anos para a França, retornando para o Brasil em 1960, mas perceberamque o país não oferecia condições para avançarem nos seus trabalhos tão rápido quanto gostariam, e então partiram novamente, dessa vez para os Estados Unidos, com bolsa para trabalharem na Universidade de Nova York (NYU).

Ruth e Victor Nussenzweig (à dir.) em cerimônia do seu casamento na biblioteca da Faculdade de Medicina da USP. Imagem: arquivo pessoal da família Nussenzweig

 

A vontade de voltar para o Brasil, que ambos sempre consideraram seu país de origem, falou mais forte, e em 1964 eles fizeram uma nova tentativa. Não contavam, no entanto, com a ditadura militar recém instaurada no país, e encontraram um ambiente opressor que os obrigou a retornar quase que imediatamente aos Estados Unidos. Em entrevistas, o casal conta como encontraram seus colegas de profissão presos, a Escola de Medicina da USP chefiado por militares e que Victor inclusive chegou a ser levado a interrogatório.

Ruth e Victor retornaram à NYU. Apesar de suas histórias se sobreporem em muitos aspectos, ambos construíram carreiras e linhas de pesquisa independentes ao longo da vida. Ruth começou a trabalhar com Malária, uma doença causada pelo parasita Plasmodium, e foi então que ela fez uma das descobertas mais importantes da sua carreira científica. A transmissão da Malária se dá pela picada do mosquito Anopheles infectado por uma forma do Plasmodium denominada esporozoíto. Ruth descobriu que a irradiação por raios X do mosquito infectado enfraquece o esporozoíto, fazendo com que este não seja mais capaz de desencadear a doença, mas ainda suficiente para gerar uma resposta imune de proteção contra a Malária em animais de laboratório. Abria-se, ali, o caminho para o desenvolvimento de uma vacina.

O trabalho foi publicado na prestigiada revista Nature em 1967. Ruth voltou brevemente ao Brasil para defender seu doutorado em 1968, e continuou com seus trabalhos na área de Malária na NYU. Posteriormente, em 1980, ela isolou a proteína do esporozoíto responsável por desencadear a resposta imune, a proteína CSP, e seus trabalhos serviram de base para se chegar na vacina RTS,S (ou Mosquirix). Apesar de esta diversas vezes ter dado resultados decepcionantes e a eficiência ser ainda baixa (em torno de 40%), é a que hoje demonstra maior potencial contra a Malária.

Ruth construiu uma carreira impactante, ocupando posições de prestígio na NYU e tornando-se a primeira mulher brasileira membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos. Não só ela e Victor construíram um grande legado para ciência, seus filhos Michel, André e Sônia também são grandes nomes na comunidade científica, e desenvolvem seus trabalhos na Universidade de Rockefeller (EUA), no NIH/Instituto Nacional do Câncer (EUA) e na USP, respectivamente, sendo Michel da membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos assim como a mãe.

O casal Ruth e Victor Nussenzweig, parceiros na vida pessoal e profissional. Imagens: superior: arquivo pessoal da família Nussenzweig, reproduzido de Krettli 2018; inferior: Fernando Cavalcanti/Veja.com

Apesar de nunca terem voltaram definitivamente para o Brasil, Ruth e Victor sempre mantiveram relações com o país. Em 2013, estabeleceram uma parceria com a Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP e com isso iam para o Brasil a cada 3 meses para acompanhamento do projeto de pesquisa. Mesmo vivendo tantos anos nos Estados Unidos, ela contou em entrevistas que nunca se adaptou, que todos seus amigos estavam no Brasil e não lá, mas que gostava de como os EUA oferecem facilidades para se fazer pesquisa. Ela também já relatou dificuldades na sua trajetória de cientista por ser mulher, e que apesar de difícil, a ciência é uma carreira que pode trazer muita satisfação.

Ruth faleceu em 1 de abril de 2018, aos 89 anos, em Nova York. Victor, 91, continua morando em Nova York e é professor emérito da NYU. Em suas próprias palavras, Ruth considerava que a dupla emigração pela qual teve que passar – primeiro da Áustria para o Brasil, e depois do Brasil para os EUA – foram uma “lesson of survival that strengthened my resources and hardened my will to be a scientist” (em tradução literal, uma lição de sobrevivência que fortaleceram meus recursos e endureceram minha vontade de ser cientista”). Assim, celebramos essa grande mulher cuja história de vida é tão marcante quanto seu impacto e importância na ciência.

 

Abaixo deixo os links para duas entrevistas concedidas pelo casal – uma para a revista Pesquisa FAPESP em 2004, e outra para a revista Science em 2013 (em inglês); e uma matéria recente da ONU sobre a aplicação da vacina RTS,S:

https://revistapesquisa.fapesp.br/2004/12/01/uma-quimica-que-deu-certo/

https://www.sciencemag.org/careers/2013/06/fresh-start-back-brazil-85

https://nacoesunidas.org/com-apoio-da-onu-nova-vacina-para-malaria-e-usada-em-bebes-no-malaui/

 

 


Giovana Maria Breda Veronezi

Graduada em Ciências Biológicas pela Unicamp em 2014 e Mestra em Biologia Celular e Estrutural pela mesma universidade. Com o sonho de criança em ser Bióloga realizado, almeja na vida adulta ver a ciência (e o mundo) cada vez mais pelos olhos delas.

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