Celebrando Drª. Jane Cooke Wright – Cientista afro-americana pioneira no desenvolvimento de quimioterapia contra o câncer

Publicado por Bruna Bertol em

Sempre tive muito interesse, mesmo antes de ingressar na faculdade, no estudo do câncer, pelo fato de ser uma doença complexa e cheia de particularidades. A condição é iniciada quando uma célula passa a se proliferar de forma anormal e desenfreada ao perder a capacidade de controlar sua duplicação celular, dando origem a um tumor. O tumor pode invadir tecidos adjacentes e se disseminar pelo corpo em locais distantes da sua origem. Durante a duplicação celular, o genoma da célula é copiado, no entanto, este processo é extremamente propenso a erros, que pode resultar no surgimento de mutações se os erros não forem corrigidos. Por esse motivo, cada vez que uma célula cancerígena se duplica, há uma chance de que a célula duplicada adquira novas mutações. O resultado desse fenômeno é que as células cancerígenas se modificam continuamente, de forma que tratamentos que matam uma célula podem não funcionar contra outra.

No início e meados do século XX, o câncer era tipicamente tratado com uma combinação de cirurgia e radioterapia (aplicação de energia/radiações ionizantes diretamente no local do tumor). No entanto, embora muitas vezes eficazes, por inúmeras razões, alguns tumores são inoperantes e resistentes a radiação. Adicionalmente, um efeito rebote – surgimento de tumores mais agressivos – pode ocorrer com o uso da radiação. Estes foram as melhores opções de tratamentos disponíveis que tivemos por muito tempo, até que cientistas como a Drª Wright apareceram para revolucionar a ciência que conhecemos hoje.

Drª Wright foi uma médica oncologista de etnia afro-americana, nascida em Manhattan, Nova Iorque, EUA, no dia 30 de novembro de 1919. Ela obteve seu diploma médico, com honras, pela Faculdade Médica de Nova Iorque (New York Medical College) em 1945. Drª Wright descende de uma família de médicos que desafiou as barreiras raciais em uma profissão até então dominada por homens brancos. Seu pai, o Dr. Louis Tompkins Wright, foi um dos primeiros graduados negros da Escola de Medicina de Harvard (Harvard Medical School) e foi o primeiro médico negro indicado para a equipe de um hospital da cidade de Nova Iorque.

Esquerda: Jane C. Wright criança (à direita na foto) em 1921. Imagem: Sophia Smith Collection, Smith College, reprodução National Library of Medicine, NIH website. Direita: Jane C. Wright adulta em 1967. Imagem: New York Medical College, reprodução The New York Times.

O trabalho pioneiro de Drª Wright se iniciou em 1949 no laboratório de seu pai na fundação de pesquisa do câncer do Hospital Harlem (Harlem Hospital Cancer Research Foundation), ao analisar uma ampla gama de agentes quimioterápicos, explorando a relação entre a resposta do paciente e a cultura de tecidos e desenvolvendo novas técnicas para a administração de quimioterapia contra o câncer. Ela e o pai demonstraram que células tumorais poderiam ser removidas e estudadas em laboratório a fim de entender seu comportamento e investigar quais terapias funcionariam melhor para combatê-las. Atualmente, técnicas semelhantes são usadas rotineiramente e servem de base para o desenvolvimento de novas terapias. Ela foi uma das primeiras pesquisadoras a testar e prever a eficácia de drogas com ação quimioterápica em células cancerígenas advindas de tumores humanos em laboratório, que produziram resultados efetivos e ajudaram a salvar vidas. Quimioterapia refere-se ao uso de agentes químicos como forma de tratamento. No decorrer de suas pesquisas, eles identificaram várias novas abordagens terapêuticas passíveis de utilização para tratar diferentes tipos de cânceres humanos. Algumas dessas terapias ainda estão em uso nos dias de hoje, como é o caso do metotrexato, medicamento quimioterápico utilizado no tratamento de tumores como câncer de mama e leucemia infantil. Além disso, Drª. Wright foi uma forte defensora do uso da terapia combinada, na qual mais de um tratamento são usados em uma ordem precisa. Ela entendeu que, uma vez que o câncer está sempre se modificando, uma abordagem múltipla era necessária a fim de combatê-lo.

É difícil mensurar o impacto de seu trabalho na comunidade científica. Drª Wright ajudou a desenvolver muitas das ferramentas que usamos para combater o câncer nos dias de hoje, afetando inúmeras vidas desde então. Ao longo de sua carreira, Dra. Wright escreveu mais de 100 publicações científicas, foi homenageada com uma nomeação presidencial para a Comissão de Cardiopatias, Câncer e Derrame, ocupou cargos de liderança em diversas associações, como o Conselho de Administração da Sociedade Americana de Câncer (American Cancer Society) em Nova Iorque. Em 1955, Drª Wright tornou-se professora associada de pesquisa cirúrgica na Universidade de Nova Iorque (New York University) e diretora da Cancer Chemotherapy Research no Centro Médico da Universidade de Nova Iorque (New York University Medical Center). Foi a única mulher dentre 7 homens a fundar a Sociedade Americana de Oncologia Clínica (American Society of Clinical Oncology – ASCO) em 1964. Foi a primeira mulher afro-americana a ser nomeada reitora associada de uma instituição médica reconhecida nacionalmente em 1967 e, na época, era a mulher afro-americana de mais alto nível em uma escola de medicina dos EUA. Em 1971, ela se tornou a primeira mulher eleita presidente da Sociedade de Câncer de Nova Iorque. Liderou delegações de pesquisadores de câncer em diversas partes do mundo, ocupou inúmeras nomeações em hospitais e escolas médicas, recebeu inúmeros prêmios acadêmicos e inspirou gerações de pesquisadores.

Jane C. Wright em dois momentos de sua carreira, sem data. Reprodução: Imagens postadas em 14 de fevereiro de 2019 pelo site do programa Neighborhood House’s STUDIO, uma parceria com a Universidade de Washington, em celebração ao Black History Month.

Drª Wright faleceu no dia 19 de fevereiro de 2013 em sua casa em Guttenberg, Nova Jersey, EUA. Ela sofria de demência e tinha 93 anos. De acordo com uma matéria publicada pelo The New York Times logo após o seu falecimento no dia 2 de março de 2013, a presidente da ASCO na época Drª Sandra Swain, declarou, por meio de uma entrevista por telefone, o seguinte:

“O trabalho dela não era apenas científico, mas também visionário para toda a ciência da oncologia. Ela fez parte do grupo que primeiro percebeu que precisávamos de uma organização separada para lidar com os profissionais que cuidam de pacientes com câncer. Além disso, é incrível para mim que uma mulher negra, em seus dias e idade, tenha conseguido fazer o que fez”.

Ainda segundo a matéria do The New York Times, apesar de ser uma cientista de renome, Drª Wright mencionou em entrevistas que sempre teve consciência de que, como mulher negra, era uma presença incomum em instituições médicas, mas não se recorda de sofrer preconceito racial.

“Eu sei que sou membro de dois grupos minoritários, mas não penso em mim dessa forma. Claro, uma mulher tem que tentar o dobro. Mas, preconceito racial? Conheci muito pouco disso… pode até ser que eu tenha conhecido, mas não fui inteligente o suficiente para reconhecê-lo”.

Nesse mesmo sentido, um post sobre a carreira e Legado da Drª Jane C. Wright escrito por Victoria Forster (geneticista oncológica) e Elizabeth Wayne (cientista na área de imunoterapia do câncer) e publicado dia 15 de novembro de 2018 no site The New Inquiry me chamou muito atenção, por isso tomei a liberdade de citar um trecho aqui para finalizar este post.

“A ciência tem sido historicamente construída como uma disciplina masculina branca e permanece hostil às mulheres, principalmente às mulheres de cor, apesar do número crescente de mulheres que escolhem a profissão. A carreira de Drª Wright tem muitas das mesmas qualidades que nos ajudam a lembrar homens conhecidos da ciência, como a engenhosidade de Stephen Hawking ou a inovação de Nikola Tesla, mas ela não recebe o mesmo reconhecimento. Drª Wright estava na vanguarda da pesquisa sobre o câncer, mas o público se contentou em esquecê-la, contradizendo o refrão popular de que, se as mulheres cientistas realmente são iguais aos homens, suas realizações falariam por si mesmas e nós as reconheceríamos. Sua ambição, caráter e intelecto não devem ser apagados por causa de como pensamos que um cientista deveria parecer. Ela não estava tentando ‘calçar os sapatos de ninguém’ ou se encaixar na estrutura de como deveria ser uma cientista; ela cultivou seu próprio espaço e identidade. Sua história não deve ser ofuscada por um punhado de histórias sobre famosos cientistas masculinos e femininos brancos. Na comunidade de oncologia, Drª Wright é lembrada como uma “visionária” e já é hora de o público reconhecê-la como uma também”.

A luta contra o câncer ainda está em andamento, mas graças a pesquisadores como a Drª. Wright, muitas formas de câncer humano são passíveis de tratamento, e estamos cada vez mais perto de combatê-lo.

Referências

  1. New York Medical College. https://www.nymc.edu/faculty/directory/in-memoriam/jane-cooke-wright/
  2. American Association of Cancer research. https://www.aacr.org/Research/Awards/Pages/jane-cooke-wright.aspx
  3. The New York Times. https://www.nytimes.com/2013/03/03/health/jane-c-wright-pioneering-oncologist-dies-at-93.html
  4. Helix. https://blog.helix.com/jane-c-wright/
  5. The New Inquiry. https://thenewinquiry.com/blog/dr-jane-c-wright-and-the-making-of-modern-oncology/

Bruna Bertol

Possui graduação em Farmácia (2014) e mestrado (2016) em Imunologia Básica e Aplicada pela USP de Ribeirão Preto, onde cursa seu doutorado. Em 2019 realizou 1 ano de estágio sanduíche na Universidade do Colorado, Anschutz Medical Campus – Aurora, CO, USA. Trabalha com imunologia tumoral e imunoterapia. Acredita na educação como instrumento de emancipação feminina e transformação social.

0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *