
Texto de Sibele Huang
Aluna do curso de Fonoaudiologia da Unicamp
Como a associação de perguntas e palavras é realizada no jogo 94%?
O jogo 94% – Quiz, Trivia & Logic bombou e ficou famoso por muito tempo, por desafiar os jogadores a pensarem e associarem as imagens e os conteúdos com palavras. Atualmente, são mais de 300 fases disponíveis, e cada uma contém três enigmas para os usuários raciocinarem, obterem as estrelinhas e passarem de fase.
“Animais que nascem de um ovo?”,
“Frutas com sementes ou caroço?”,
“Isso faz bem quando estamos doentes…”,
“Coisas relacionadas ao Egito…”,
entre outras perguntas.
A tarefa do jogador consiste em pensar em palavras que tenham relação com os elementos indicados pelo jogo e escrevê-las. As respostas correspondem a uma porcentagem que equivale a uma média das preferências das respostas dos usuários, ou seja, quanto mais as pessoas respondem uma palavra, maior a porcentagem dela.
Feita a apresentação do jogo, por que estamos falando sobre isso num blog de Fonoaudiologia?
Como as palavras se organizam na nossa ‘mente’?
Uma das áreas da Fonoaudiologia é a Linguagem, que compartilha muitos estudos com algumas áreas da Linguística. Uma dessas áreas é a psicolinguística que tem como um de seus temas de estudo o que chamamos de Processamento de Palavras.
A área de processamento de palavras se refere ao estudo dos processos cognitivos (mentais/cerebrais) que auxiliam ou atrapalham a compreensão de uma palavra, seja escrita ou falada, o que pode envolver características como contexto, familiaridade semântica ou fonológica, diferença entre sotaques e línguas, frequência de uso e outros fatores.
Por exemplo, uma palavra mais frequente é lembrada mais fácil e rapidamente do que palavras menos frequentes, o que não chega a ser surpreendente. E com isso podemos pensar em como nos lembramos de palavras com peças morfológicas, por exemplo global (globo > glob[al] > glob[ al [izar]] > glob[al [iza [ção]]] etc). Essas palavras são lembradas inteiras ou lembramos do sentido e, depois, de suas partes?
Mas não é bem esse o tema desse post certo? Então, vamos voltar ao assunto:
Fatores que facilitam a recuperação das palavras?
Quando falamos em facilitação da recuperação de uma palavra em pesquisas científicas, geralmente estamos falando ou do Efeito de Cloze, ou do Efeito de Priming.
O efeito de Cloze acontece quando temos lacunas no texto e devemos preencher com a primeira coisa que nos vêm à cabeça. Assim, todo o contexto age para que pessoas muito diferentes tenham basicamente as mesmas respostas.
Já o efeito de Priming acontece quando mostramos uma palavra (chamada de prime) para uma pessoa e, em seguida, apresentamos uma segunda palavra (chamada de alvo) com a qual essa pessoa vai realizar alguma tarefa, como julgar sua frequência ou se ela é uma palavra da sua língua ou não. Nesse caso, o efeito de contexto é diminuído deixando a tarefa para a nossa mente e para a nossa memória.
No caso do Priming, podemos recuperar as palavras de acordo com
a. sua forma
ex. banco (de sentar) x banco (instituição financeira); manga (fruta) x manga (camisa)
b. sua semântica / contexto
ex. panela x cozinha; escola x professor (quase como o efeito de Cloze)
c. sua morfologia
ex. papel x papelaria; feio x feiura
d. sua fonologia
ex1. ovo x Kosovo (país) – semelhança pelo final facilita a recuperação da palavra;
ex2. caro x caroço – semelhança pelo início dificulta a recuperação da palavra;
Mas e o jogo?
No caso do jogo 94%, a associação das palavras está mais atrelada ao priming semântico, que acontece quando uma palavra ou um conteúdo vai desencadear no processamento do seguinte, uma vez que o contexto das palavras estão relacionadas como médico e hospital.
Segue algumas imagens para mostrar alguns enigmas apresentados nas fases do jogo:
Imagem 1. Perguntas do nível 1.
Imagens 2 e 3. Pergunta e as respostas de uma das fases do nível 1.
Imagens 4 e 5. Imagem e respostas de uma fase do nível 1.
Mas como sabemos que há facilitação na ativação dessas palavras?
No processo de reconhecimento visual de palavras, um contexto semântico é provido com a apresentação de uma palavra isolada (chamada prime), que é seguida pela apresentação de uma série de letras (chamada alvo), na qual precisamos dar uma resposta como, por exemplo, se é uma palavra da sua língua ou não. Nesse momento, o tempo de resposta é cronometrado e conseguimos comparar quais tipos de respostas são mais rápidas ou mais lentas.

Dessa maneira, podemos entender que, quando um conteúdo é apresentado, nossa mente consegue fazer esses caminhos e atalhos para acessar outras palavras que têm alguma relação semântica com o que exibido, afinal, provavelmente elas serão necessárias em algum momento.
Na pesquisa realizada pelas pesquisadoras Salles e Jou da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Stein da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, é realizada uma avaliação do efeito de associação semântica de palavras com crianças que estão na terceira série, na qual os pesquisadores solicitaram à criança dizer qual a primeira palavra que vem na cabeça após a apresentação da palavra-alvo. Após a coleta, verificou-se a porcentagem de ocorrência para cada palavra-alvo, analisando o associado semântico mais frequente (força de associação).
E é exatamente isso que acontece no 94%, os jogadores precisam digitar as palavras que surgem na mente que são associadas às perguntas e contextos para conseguir passar de fase. Quanto à porcentagem, o valor dependerá da força de associação de cada palavra, ou seja, quanto mais pessoas citá-la, maior a porcentagem dela, e quando a palavra apresenta uma associação semântica fraca, a porcentagem dela será menor.
Foi apresentado até o momento uma breve explicação de como conseguimos acessar e associar um conceito com o outro, exemplificando em um jogo. E agora é aquele momento que pensamos: “Nossa, um simples jogo tem toda uma base teórica para o seu funcionamento e grande sucesso. Que legal!”
E você, consegue lembrar de outros jogos que podem ser explicados através de conceitos estudados pela Fonoaudiologia?
REFERÊNCIAS
Salles, J. F.; Jou, G. I.; Stein, L. M.. O paradigma de priming semântico na investigação do processamento de leitura de palavras. Interação em Psicologia, 2007, 11(1), p.71-80.
Salles, J. F.; Machado, L. L.; Janczura, G. A.. Efeitos de priming semântico em tarefa de decisão lexical em crianças de 3ª série. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre , v. 24, n. 3, p. 597-608, 2011 .
Pinker, S. Words and Rules. New York, NY: Harper Perennial, 1999/2011.
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