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Bem, depois de uma descrição tão distorcida do que é seleção natural, vamos por partes. O trecho acima fez parte do primeiro programa especial sobre Darwin (de um total de 4) que foi exibido na quarta-feira no canal a cabo GloboNews.

  • “A natureza é uma guerra(1) entre espécies(2)…”

(1) Não meu caro. Primeiro que a utilização do termo “guerra” leva a um erro clássico. É claro que a competição tem um papel muito importante na teoria de Darwin, mas cada vez mais vemos o relevante papel das interações positivas. Em um ambiente como o manguezal, o crescimento radial das raízes de plantas como a Laguncularia racemosa estabiliza o sedimento fino característico deste ecossistema. Desta forma, outras plantas podem agora ocupar a área, mais estável pela contenção do sedimento. É o que chamamos em ecologia de “espécies engenheiras”, que alteram o ambiente a sua volta e não estão apenas submetidas as suas flutuações.

(2) Não. A luta pela existência (em termos darwinianos) ocorre entre indivíduos e não entre espécies. O histórico deste pensamento essencialista é muito bem retratado por Ernst Mayr em seu livro “Uma ampla discussão” (FUNPEC editora, 2006), onde ele discute este assunto em um trecho intitulado “Luta entre espécies ou entre indivíduos?”. A unidade de seleção (onde realmente a seleção natural atua) é o indivíduo, já que a diferenciação das características “visíveis” pela seleção natural (fenótipo) ocorrem neste nível. Existe uma frente de cientistas que defendem o gene como a unidade de seleção. Segundo um de seus mais famosos defensores, Richard Dawkins, “(…) A unidade de seleção no sentido de replicador é o gene. E no sentido de veículo, o organismo. Ambas são igualmente importantes. Só fazem coisas diferentes. Não estão competindo pelo papel de unidade de seleção”. Divergências a parte, a unidade de seleção definitivamente não é a espécie. Quando definimos que a unidade de seleção é o indivíduo abrimos os olhos para a competição intraespecífica, que pode ser tão ou até mais importante do que a competição interespecífica. Se pensarmos apenas em espécie, esquecemos este componente tão importante das interações.

  • “(…) e que as mais fortes e mais adaptáveis são as que sobrevivem”
Mesmos erros do início da frase. Passar a ideia que as espécies (e não indivíduos) são as unidades da seleção. Usar o termo “mais forte” associado a imagem de um leão atacando uma hiena é uma péssima maneira de se passar o conceito de seleção natural. Parece que somente os organismos que forem mais fortes fisicamente sobrevivem. Diga isso as bactérias e archeas. Elas vão rir muito. Outra coisa, o que significa uma “espécie adaptável”? Segundo o tio michaelis, algo adaptável é algo que pode ser adaptado, como um livro é adaptável para se tornar um roteiro de filme. A péssima analogia passa o conceito de que as espécies (segundo o jornalista) podem se adaptar, como se fosse algo direcionado. Na verdade os indivíduos já nascem com um fenótipo correspondente a um genótipo que pode ser ou não vantajoso em seu ambiente específico.

  • “(…) Quando as espécies se reproduzem fazem cópias de si próprias, nem sempre idênticas, pois ocorrem mutações ou desvios que criam variedade. Darwin chamou isso de seleção natural.”
Tirando a definição que eu considero pessoalmente ruim de reprodução e mutação, podemos ver neste ponto que o jornalista se perdeu completamente. Será que eu estou sendo tendencioso ou ele disse Darwin chamou as mutações e os “desvios” de seleção natural? Como a geração de variedade pode vir depois do que ele chamou de “guerra”? Não há lógica nesta construção de frase. Primeiro devem ocorrer mutações para gerar variedade e, posteriormente, os indivíduos mais adaptados ao ambiente em que ele está inserido, sobreviverão e terão maior sucesso reprodutivo.

Depois dessa aula de como a divulgação científica não deve ser feita, nada melhor do que o grande biólogo Ernst Mayr para ensinar aos jornalistas da Globo o que realmente é seleção natural.

“(…) O termo, simplesmente, refere-se ao fato de que somente uma pequena parte da prole de um grupo de genitores sobrevive o suficiente para se reproduzir. Não há uma força seletiva particular na natureza, nem um agente seletivo definido. Há muitas causas possíveis para o sucesso de poucos sobreviventes. Alguma sobrevivência é devido a processos estocásticos, isto é, pura sorte. A maior parte, entretanto, é devido ao trabalho superior da fisiologia do indivíduo sobrevivente, que permite enfrentar as vicissitudes do ambiente melhor do que os outros membros da população. A seleção não pode ser dissecada em porções internas e externas. O que determina o sucesso de um indivíduo é precisamente a capacidade da maquinaria interna do organismo (incluindo o seu sistema imune) de enfrentar os desafios do ambiente. Não é o ambiente que seleciona, mas o organismo que enfrenta o ambiente com muito ou com pouco sucesso. Não há nenhuma força externa.”

Uma Ampla Discussão. Ernst Mayr. FUNPEC editora, 2006. Páginas 86-87.