Para quem ainda não sabe, hoje comemoramos 150 anos da publicação de um dos livros mais importantes de todos os tempos, não só para a ciência, mas para diversas áreas do conhecimento. O biólogo e divulgador científico Richard Dawkins no seu livro “O Capelão do Diabo” até classifica o darwinismo como uma “verdade universal”, proposta por um dos maiores pensadores de todos os tempos. Extremista ou não, o fato é que a importância de Darwin para o melhor entendimento da evolução das espécies é marcante.
Mas o post de hoje, em plena comemoração pelo livro mais conhecido de Charles Darwin (que era apenas um resumo de suas ideias, como ele mesmo dizia), não será sobre ele. Gostaria de propor hoje a reflexão sobre um personagem menos conhecido pelo público em geral. Não estou falando de Alfred Russel Wallace, co-autor da teoria da evolução. Estou falando do francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de la Marck. Ou simplesmente Lamarck, para os íntimos. Este ano comemoramos também os 200 anos de publicação do seu livro “Filosofia Zoológica”. Quando lembramos de Lamarck uma imagem vem rapidamente em nossas mentes: Girafas! E é lógico que logo depois lembramos que era uma pessoa que teve uma ideia sobre evolução das espécies… errada.
Antes de andar com uma camisa com este logo, leia até o final do post
“Lamarck fez menção aos pescoços das girafas como uma ilustração aproximada do aumento evolutivo pelos efeitos herdados do esforço de vida. Mas toda a sua discussão percorre um parágrafo em um capítulo cheio de exemplos muito mais longos que ele obviamente considerava muito mais importante. Lamarck tinha isso – e absolutamente nada mais – a dizer sobre pescoços de girafas, algumas linhas de especulação nunca pretendida como a peça central de uma teoria.”
Primeiro mal entendido desfeito, vamos tentar refletir sobre a importância de Lamarck para a teoria da evolução. Todos sabemos que Darwin e Wallace não surgiram com suas ideias de um dia para o outro, que muitos nomes importantes enfrentaram conjunturas até mais difíceis para defender suas ideias pouco ortodoxas, mas algo de especial existe neste naturalista francês. Segundo o grande biólogo Ernst Mayr:
“Parece-me que Lamarck tem uma reivindicação muito melhor para ser designado ‘o fundador da teoria da evolução’ (…). Todos os outros antes dele tinham discutido a evolução en passant incidentalmente em outros temas ou utilizando termos poéticos ou metafóricos. Ele foi o primeiro autor a dedicar um livro inteiro principalmente à apresentação de uma teoria da evolução orgânica. Ele foi o primeiro a apresentar todo o sistema de animais como um produto da evolução.”
Claro que Lamarck teve falhas, principalmente na explicação da evolução orgânica, mas muitas destas foram superestimadas ao longo do tempo, contribuindo para a má compreensão da importância histórica do trabalho de Lamarck. Ele não nos trouxe uma boa explicação sobre a origem das espécies (na verdade nem era o seu intuito). Ele defendia que as espécies evoluiam de forma direcional, como se fosse uma escada rolante, onde os seres menos complexos evoluiriam em direção a perfeição. Além disso, segundo Lamarck o fator que mais contrubuiria para a evolução da espécies seria a famosa “Lei do uso e desuso”. Esta ideia, normalmente utilizada para diminuir a importância de Lamarck, foi utilizado em nada mais nada menos do que 13 páginas da primeira edição do “Origem das espécies” por Darwin, para explicar os seus exemplos. Já em relação ao mecanismo de hereditariedade, ambos os autores tiveram dificuldades de argumentação, sendo Lamarck o mais contido sobre o tema.
Para fechar este post em homenagem a obra que há 200 anos abriu caminho para a teoria da evolução, a opnião de Ernst Mayr sobre um dos nomes mais injustiçados da história da biologia:
“(…) Foi Lamarck quem, desafiando o Zeitgeist preservou e propagou um conjunto de idéias impopulares entre os criacionistas, catastrofistas, e essencialistas. Curiosamente, Lamarck foi a maior parte das vezes mais correto onde ele mais diferia das ideias estabelecidas, como no seu apoio ao evolucionismo e uniformitarismo, enquanto os erros por quais ele é mais lembrado, como o uso e o desuso, a herança dos caracteres adquiridos, e grande parte de sua fisiologia, não eram de todo original dele, mas representavam ideias amplamente utilizadas, meramente adotadas por Lamarck. (…) Como todas as grandes figuras da história das ideias, Lamarck foi tanto o ponto final de uma longa história antecedente, bem como o ponto de partida para novos desenvolvimentos.”
Será que não seria melhor ensinar aos nossos alunos sobre o quão é interessante a história da ciência? Não podemos deixar mais nossos alunos acharem que Lamarck e muitos outros contribuintes da teoria da evolução sejam apenas pessoas que tiveram ideias erradas ou, como afirma a camiseta, “dumbass” ou “estúpido“. Ensinar como ocorre o progresso do conhecimento científico pode ser a base da formação de alunos mais críticos e menos intolerantes. Não só em relação a ciência, mas em todas as áreas.
Referências:
Mayr, E. (1972). Lamarck revisited Journal of the History of Biology, 5 (1), 55-94 DOI: 10.1007/BF02113486
Mitchell, G., van Sittert, S., & Skinner, J. (2009). Sexual selection is not the origin of long necks in giraffes Journal of Zoology, 278 (4), 281-286 DOI: 10.1111/j.1469-7998.2009.00573.x
Simmons, R., & Scheepers, L. (1996). Winning by a Neck: Sexual Selection in the Evolution of Giraffe The American Naturalist, 148 (5) DOI: 10.1086/285955
Gould, S. J. (1996). The tallest tail. Natural History, v 105 , p18-25 . Baixar artigo
Cara, meus parabéns pelo post, concordo com vc em gênero, número e grau!
Parabéns, gostei muito. E vai me ajudar bastante no debate sobre a origem da vida da minha escola. Brigada 🙂
Olá Eduardo, sem dúvidas.
É muito importante passarmos para os nossos alunos que a ciência não é feita de "heróis". Normalmente é mais fácil passar a visão que teorias antigas eram completamente erradas. Mas não é assim que o conhecimento científico é construído...
Abraços e obrigado pela visita!
Olá!
Gostei deste post sobre a evolução. Será muito útil para meus alunos do colegial.
Lamarck não estava totalmente errado...e isso a mídia quase não fala.
Abraços e parabéns pelo trabalho
MSc. Eduardo Alexandrino (ESALQ/USP)
Veja o experimento que apóia a hipótese de que as girafas geralmente comem folhas das partes mais altas das árvores e que o aumento do pescoço é uma vantagem seletiva que evita a competição com animais que se alimentam das partes mais baixas das árvores:
Cameron, E. & Toit, J. T. du. Winning by a neck: tall giraffes avoid competing with shorter browsers. American Naturalist, 169: 130-5, jan. 2007.
Grande Luiz,
Antes de qualquer coisa, parabéns pela sua participação no MTV Debate!
É absolutamente necessário tratar a ciência como uma atividade humana feita por humanos, passíveis de erros, alguns com falta de escrúpulos, outros profundamente criativos... acredito que isso seja importante para a educação científica.
A molecada se identifica com o Pelé, o Maradona ou o Ronaldo (Gordo) não apenas porque eles são talentosos mas porque eles querem ser como eles ou mesmo MELHORES que eles. Além disso, o fato do argentino ter sido incostetável em campo não diminui em nada a importância do Pelé para o futebol mundial (ou do Puskas, do Euzébio, do Garrincha...). Por que todo mundo parece desconsiderar a história quando o assunto é teoria da evolução?
Se conseguirmos passar a idéia de que a genialidade é rara nas ciências - e não é condição sine qua non para ela - acredito que começaremos a trilhar um caminho menos íngrime para divulgar a beleza do pensamento científico.
Abraço
Maravilha, Luiz! Gostei muito mesmo!
Caro Luiz Bento
Tenho feito muita matéria sobre Darwin e Evolucionismo no meu blogue Bioterra!
Ao fim de alguns anos de blogosfera, cedi em relação aos selos (memetags), pronto porque alguns selos contêm uma mensagem intelectualmente cativante. E pois claro, foram nomeados. Podem ir buscá-lo ao BioTerra.
Saudações
Caro Manuel,
Complemento muito importante e coerente, como sempre.
Abraços.
Olá Mariana,
Não precisa de acesso ao CAPES não. É só pedir pro tio Google 🙂
http://www.blc.arizona.edu/courses/schaffer/449/Lamarck/Mayr%20-%20Lamarck%20Revisited.pdf
Quanto a estátua do Lamarck não seria má ideia...poderíamos colocar uma igual a que tem no Jardim botânico de Paris 😉
Abraços e volte sempre.
Caro Luíz Bento
"Ensinar como ocorre o progresso do conhecimento científico pode ser a base da formação de alunos mais críticos e menos intolerantes. Não só em relação à ciência,mas em todas as áreas."
Certíssimo,e os meus parabéns. Eu acrescentaria,pelo menos,e mais atentos aos outros,de modo a não ver neles uns meros competidores na caminhada da dura vida evolutiva.
Muito boa saúde.
Olá Bento, gostei muito deste post ... Fiquei com vontade de ler o artigo do Mayr de 1972. Mesmo tendo acesso ao CAPES não consigo pega-lo!!! Vc pode disponibiliza-lo como fez com o do Gould?
Para comemorar esse dia agora só falta a estátua do Lamarck ao lado da do Darwin na entrada do CCS hehehehhehe.
Olá Felipe, obrigado pelos elogios. Aqui é o Luiz, que escreveu o post.
Quanto as pesquisas que resgatam o lamarckismo acho que ainda teremos que esperar um pouco para as questões serem mais estudadas. Já falamos aqui no Discutindo sobre o tema, dá uma olhada aqui:
http://scienceblogs.com.br/discutindoecologia/2008/11/transferencia-horizontal-em-eucariotos-lamarck-sorri-em-seu-tumulo.php
Parabéns Breno! Excelente texto. Lembrando que hoje, existem grupos de estudos sobre algoritmos genéticos que estão se permitindo "experimentar" as ideias de uso/desuso que acabaram sendo associadas a Lamarck ao longo da história.
Foi um belo resgate do cientista este seu post.
Que legal alguém lembrar do injustiçado Lamarck nesse dia! Parabéns pelo texto, vou dar uma olhada nas referência que ainda não conhecia.