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ResearchBlogging.orgPara quem ainda não sabe, hoje comemoramos 150 anos da publicação de um dos livros mais importantes de todos os tempos, não só para a ciência, mas para diversas áreas do conhecimento. O biólogo e divulgador científico Richard Dawkins no seu livro “O Capelão do Diabo” até classifica o darwinismo como uma “verdade universal”, proposta por um dos maiores pensadores de todos os tempos. Extremista ou não, o fato é que a importância de Darwin para o melhor entendimento da evolução das espécies é marcante.

Mas o post de hoje, em plena comemoração pelo livro mais conhecido de Charles Darwin (que era apenas um resumo de suas ideias, como ele mesmo dizia), não será sobre ele. Gostaria de propor hoje a reflexão sobre um personagem menos conhecido pelo público em geral. Não estou falando de Alfred Russel Wallace, co-autor da teoria da evolução. Estou falando do francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de la Marck. Ou simplesmente Lamarck, para os íntimos. Este ano comemoramos também os 200 anos de publicação do seu livro “Filosofia Zoológica”. Quando lembramos de Lamarck uma imagem vem rapidamente em nossas mentes: Girafas! E é lógico que logo depois lembramos que era uma pessoa que teve uma ideia sobre evolução das espécies… errada.

Lamarck Was a Dumbass shirt
Antes de andar com uma camisa com este logo, leia até o final do post

Este relacionamento quase indissociável entre Lamarck e o famoso exemplo das girafas é algo realmente interessante. Tão interessante que foi o material para um artigo publicado por Stephen Jay Gould na revista americana Natural History em 1996, intitulado “O conto mais alto”. Segundo o próprio:

“Lamarck fez menção aos pescoços das girafas como uma ilustração aproximada do aumento evolutivo pelos efeitos herdados do esforço de vida. Mas toda a sua discussão percorre um parágrafo em um capítulo cheio de exemplos muito mais longos que ele obviamente considerava muito mais importante. Lamarck tinha isso – e absolutamente nada mais – a dizer sobre pescoços de girafas, algumas linhas de especulação nunca pretendida como a peça central de uma teoria.”

Stephen Jay Gould, The Tallest Tale (1996)

Além de Lamarck nunca ter dado muita importância para o exemplo das girafas, o caminho evolutivo para os longos pescoços que vemos nos mamíferos mais altos do planeta é algo ainda em aberto. A resposta de Darwin, segundo os livros didáticos, ao exemplo feio, sujo e burro de Lamarck seria de que haveria no passado girafas com pescoços de diferentes tamanhos. Estes pescoços de tamanhos diferenciados surgiram de mutações aleatórias e os animais de pescoço mais longo foram selecionados pois eram os únicos que conseguiam se alimentar das folhas das árvores altas. As girafas avantajadas passariam esta informação genética para os seus descendentes. Bonito, não é? Mas parece que a história não é tão simples assim. O próprio Darwin não utilizou este exemplo na primeira edição do origem das espécies e, mais tarde, passou a defender que a competição das girafas com outros animais herbívoros (por tanto, interespecífica) é que resultou na seleção de girafas com pescoços mais altos. Esta hipótese foi questionada por um artigo publicado na American Naturalist de 1996, abrindo caminho para uma nova possível explicação: a seleção sexual. Segundo Robert Simmons e Lue Scheepers, girafas macho investem mais em pescoços longos do que as fêmeas, sendo um sinal de que o tamanho do pescoço é um parâmetro utilizado em disputas reprodutivas entre girafas machos. Esta hipótese foi enfraquecida por um artigo publicado na revista Journal of Zoology em 2007, que mostrou dados experimentais que não diferenciam o tamanho de pescoço de girafas machos e fêmeas. Machos mais velhos até teriam pescoços mais pesados, mas não mais longos. Parece que a pergunta infantil “Porque a girafa tem o pescoço tão longo?” continuará em aberto por algum tempo.

Primeiro mal entendido desfeito, vamos tentar refletir sobre a importância de Lamarck para a teoria da evolução. Todos sabemos que Darwin e Wallace não surgiram com suas ideias de um dia para o outro, que muitos nomes importantes enfrentaram conjunturas até mais difíceis para defender suas ideias pouco ortodoxas, mas algo de especial existe neste naturalista francês. Segundo o grande biólogo Ernst Mayr:

“Parece-me que Lamarck tem uma reivindicação muito melhor para ser designado ‘o fundador da teoria da evolução’ (…). Todos os outros antes dele tinham discutido a evolução en passant incidentalmente em outros temas ou utilizando termos poéticos ou metafóricos. Ele foi o primeiro autor a dedicar um livro inteiro principalmente à apresentação de uma teoria da evolução orgânica. Ele foi o primeiro a apresentar todo o sistema de animais como um produto da evolução.”

Ernst Mayr, Lamarck Revisited (1972)

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Eu e o Lamarck em outubro deste ano. Jardin des plantes, Paris, França.

Claro que Lamarck teve falhas, principalmente na explicação da evolução orgânica,  mas muitas destas foram superestimadas ao longo do tempo, contribuindo para a má compreensão da importância histórica do trabalho de Lamarck. Ele não nos trouxe uma boa explicação sobre a origem das espécies (na verdade nem era o seu intuito). Ele defendia que as espécies evoluiam de forma direcional, como se fosse uma escada rolante, onde os seres menos complexos evoluiriam em direção a perfeição. Além disso, segundo Lamarck o fator que mais contrubuiria para a evolução da espécies seria a famosa “Lei do uso e desuso”. Esta ideia, normalmente utilizada para diminuir a importância de Lamarck, foi utilizado em nada mais nada menos do que 13 páginas da primeira edição do “Origem das espécies” por Darwin, para explicar os seus exemplos. Já em relação ao mecanismo de hereditariedade, ambos os autores tiveram dificuldades de argumentação, sendo Lamarck o mais contido sobre o tema.

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“Ao Fundador da Doutrina da Evolução” – Detalhe do pedestal da estátua de Lamarck. Jardin des plantes, Paris, França.

Para fechar este post em homenagem a obra que há 200 anos abriu caminho para a teoria da evolução, a opnião de Ernst Mayr sobre um dos nomes mais injustiçados da história da biologia:

“(…) Foi Lamarck quem, desafiando o Zeitgeist preservou e propagou um conjunto de idéias impopulares entre os criacionistas, catastrofistas, e essencialistas. Curiosamente, Lamarck foi a maior parte das vezes mais correto onde ele mais diferia das ideias estabelecidas, como no seu apoio ao evolucionismo e uniformitarismo, enquanto os erros por quais ele é mais lembrado, como o uso e o desuso, a herança dos caracteres adquiridos, e grande parte de sua fisiologia, não eram de todo original dele, mas representavam ideias amplamente utilizadas, meramente adotadas por Lamarck. (…) Como todas as grandes figuras da história das ideias, Lamarck foi tanto o ponto final de uma longa história antecedente, bem como o ponto de partida para novos desenvolvimentos.”

Ernst Mayr, Lamarck Revisited (1972)

Será que não seria melhor ensinar aos nossos alunos sobre o quão é interessante a história da ciência? Não podemos deixar mais nossos alunos acharem que Lamarck e muitos outros contribuintes da teoria da evolução sejam apenas pessoas que tiveram ideias erradas ou, como afirma a camiseta, “dumbass” ou “estúpido“. Ensinar como ocorre o progresso do conhecimento científico pode ser a base da formação de alunos mais críticos e menos intolerantes. Não só em relação a ciência, mas em todas as áreas.

Referências:

Mayr, E. (1972). Lamarck revisited Journal of the History of Biology, 5 (1), 55-94 DOI: 10.1007/BF02113486

Mitchell, G., van Sittert, S., & Skinner, J. (2009). Sexual selection is not the origin of long necks in giraffes Journal of Zoology, 278 (4), 281-286 DOI: 10.1111/j.1469-7998.2009.00573.x

Simmons, R., & Scheepers, L. (1996). Winning by a Neck: Sexual Selection in the Evolution of Giraffe The American Naturalist, 148 (5) DOI: 10.1086/285955

Gould, S. J. (1996). The tallest tail. Natural History, v 105 , p18-25 . Baixar artigo