Dr. Beddoes, um médico cheio de gás

Thomas Beddoes (1760-1808).

Thomas Beddoes não queria ser esquecido e fez tudo o que pôde para evitar isso. Entretanto, sua teimosia em se destacar custou-lhe justamente o que ele mais prezava e desviou completamente sua atenção. Nascido em 1760, em Shifnal, Shropshire, Beddoes foi um estudante notável. Além das excelentes notas na escola, o jovem Thomas aprendeu sozinho a falar Francês, Alemão, Espanhol e Italiano. Sua carreira acadêmica, porém, já dava sinais de sua personalidade meio hiperativa.

Ele começou os estudos superiores no Pembroke College, a faculdade de Direito de Oxford. No meio do curso, mudou-se repentinamente para a distante Universidade de Edinburgh, na Escócia, onde teve aulas de química e história natural antes de passar a estudar medicina. Depois, tão repentinamente quanto antes, voltou a Oxford, onde graduou-se em medicina em 1786. Em seguida, viajou para a França, onde encontrou-se com Antoine Lavoisier, de quem era grande admirador. Ao retornar, tornou-se lecturer na Oxford University com relativa facilidade e foi o primeiro a traduzir para o inglês as ideias de Lazzaro Spallanzani (1729-1799), pioneiro da biogênese.

Tudo isso parecia prometer a Thomas Beddoes um futuro brilhante e uma carreira segura. Autoconfiança não lhe faltava. Mas foi exatamente seu excesso de segurança em si mesmo que interrompeu rapidamente sua carreira acadêmica. Beddoes foi um entusiasta da Revolução Francesa e não escondia isso de ninguém. Seu ardor não arrefeceu nem quando o próprio Lavoisier foi guilhotinado pelos revolucionários franceses. Não demorou muito e Beddoes foi convidado a se retirar de Oxford em 1792 por suas posições politicamente radicais. Seu futuro brilhante parecia acabado.

Mas Beddoes não desistiu. Abriu uma clínica médica na cidade de Bristol, onde oferecia tratamento para doenças infecciosas. Dava especial atenção à tuberculose e à varíola. Livre das limitações de uma vida acadêmica, o Dr. Beddoes pôde cultivar os mais variados interesses científicos e passou a escrever avidamente sobre tudo o que aprendia em termos de medicina e ciência em geral.

Seus escritos iam de ensaios sobre cálculos renais e escorbuto até artigos científicos sobre geometria e geologia. Num de seus textos, Beddoes foi o primeiro a usar a palavra “biologia” no sentido moderno. Um de seus primeiros livros — The  History of Isaac Jenkins and Sarah his wife and three children [A História de Isaac Jenkins e sua esposa, Sarah, e seus três filhos] — foi publicado em 1793 e tornou-se um best-seller instantâneo ao descrever os males do alcoolismo na vida familiar. O sucesso deste livro garantiu-lhe acesso aos maiores autores de seu tempo. O jovem Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) tornou-se um amigo próximo. E a casa de Beddoes atraía visitantes da Europa inteira para Bristol.

Essa volta por cima seria o bastante para qualquer pessoa. Mas não para o Dr. Beddoes. Ele queria mais e passou a palpitar em tudo o que pôde, talvez por acreditar que assim multiplicava suas chances de fazer uma grande descoberta que lhe colocaria nos livros de História. Enquanto atirava para todos os lados, o Dr. Beddoes meteu o bedelho na controvérsia sobre a formação das rochas. As teorias da época dividiam-se entre a formação geológica por atividade vulcânica (plutonismo) ou por ação oceânica (netunismo). Essa polêmica, por sua vez, levou Beddoes a se interessar pela questão da idade da Terra, também muito debatida na época. Nisso Beddoes destacou-se: foi um dos primeiros proponentes da ideia de que o planeta Terra seria muito antigo do que os 6.000 anos do Gênesis.

Mas essa nem foi a teoria mais radical de Beddoes (até porque ele a deixou de lado bem depressa). Ele foi o grande defensor e praticante da chamada medicina pneumática — o tratamento de doenças pela inalação de um ou mais gases. Era uma ideia que estava no ar: o fim do século XVIII foi bastante gasoso, pois a Química estava descobrindo diferentes tipos de gases. O estudo do oxigênio, do dióxido de carbono, do hidrogênio e de outros gases borbulhava pelos laboratórios europeus. Isso incluía, claro, os laboratórios médicos.

O Dr. Beddoes passou a defender o uso de oxigênio e gás carbônico para tratamento de diversos males, incluindo tuberculose, escrófula, diabetes, úlceras e até doenças venéreas. Não importava que as evidências, muitas vezes, fossem mais anedóticas do que científicas. Não que Beddoes rejeitasse a pesquisa. Pelo contrário, ele tentou pesquisar do jeito que podia. Num tempo em que não havia financiamento público nem grandes indústrias farmacêuticas, o Dr. Beddoes não hesitou em usar seus próprios pacientes como cobaias — e ainda cobrar caro por isso.

Sua teoria mais notória surgiu da observação de que alguns profissionais pareciam menos propensos a contrair tuberculose do que outros. Beddoes notou que os açogueiros pareciam desenvolver a doença ainda mais raramente. Ele atribuía isso aos “vapores do matadouro” que os açogueiros inalavam enquanto trabalhavam. Mesmo para Beddoes, levar tuberculosos para açougues pareceu uma ideia absurda. Então, para testar um possível tratamento da tísica a partir disso, o doutor montou uma clínica anexa a um estábulo, de modo que, de vez em quando, as vacas pudessem meter as fuças pelas cortinas e respirar diretamente sobre os pacientes acamados. Parece bizarro, mas Beddoes não era o único médico a trabalhar com vacas, como veremos.

Houve quem se submetesse a esse tratamento experimental. E houve alguns casos bem-sucedidos. Entusiasmado, Beddoes divulgou sua descoberta: o tratamento vacum seria positivo em metade dos casos. Mesmo assim, não houve sucesso de público. Os pacientes ou seus familiares não tardaram a abandonar a terapia com vacas. Além do radicalismo do médico, a principal queixa era sobre o odor não muito agradável dos animais. Beddoes certamente deve ter argumentado que nenhuma cura é muito agradável, mas não deve ter convencido.

Nosso hiperativo médico percebeu que havia cometido um passo em falso ao começar a experimentar diretamente com seres humanos. Assim, ele passou a fazer experiências de maneira mais discreta — mas não menos intensa — com cobaias animais. Num dia, Beddoes cronometrava meticulosamente quanto tempo coelhos levavam para morrer intoxicados por gás carbônico; em outro dia, media dose exata de oxigênio necessária para apagar gatinhos. Na falta de novas cobaias humanas, ele passou a experimentar em si mesmo: Beddoes passou a respirar doses cada vez maiores de oxigênio puro. Mas foi forçado a parar assim que descobriu que isso (só) causava hemorragias nasais.

Nada disso o deteve. Ele continou a publicar uma enxurrada de monografias que relatavam curas quase miraculosas de pacientes através da inalação de hidrogênio, oxigênio e gás carbônico. Metodologia? Casos escolhidos a dedo entre seus pacientes e os relatados por médicos que lhe admiravam.

Novamente, Beddoes até tentou fazer pesquisa séria. Em 1799 ele estabeleceu seu Pneumatic Institute, um instituto dedicado à pesquisa médica com gases. Entre seus assistentes, James Watt (1736-1819) e Humphry Davy (1778-1829) eram os responsáveis pelo laboratório. Tudo parecia perfeito, mas ainda lhe faltava paciência e foco.

Thomas Beddoes e James Watt desenvolveram um aparelho para produzir o que chamavam de “ar factício” e administrá-lo aos pacientes. O envolvimento de Watt na pesquisa se deu por razões mais pessoais que científicas. Sua filha, Jessie, estava em estágio avançado de tuberculose quando Watt foi aconselhado por Erasmus Darwin a procurar a clínica do Dr. Thomas Beddoes. Jessie Watt não foi salva pelos gases de Beddoes, mas Watt foi encorajado pela observação do alívio temporário de sua filha e de muitos pacientes — o que certamente deve-se mais ao efeito placebo do que aos efeitos do gás carbônico, o tal “ar factício”.

Enquanto isso, Davy revelou-se um discípulo brilhante (depois de intoxicar-se durante experimentos como óxido nítrico e monóxido de carbono) e fez a principal descoberta do Instituto Pneumático ao descrever as propriedades do óxido nitroso — não sem antes testar o gás em si mesmo e apelidá-lo de “gás do riso”. No entanto, os primeiros a serem atraídos pela descoberta não foram médicos ou cientistas: foram os colegas literatos do Dr. Beddoes. Samuel Taylor Coleridge e Robert Southey (1774-1843) não tardaram a apresentar-se como voluntários. Coleridge louvaria o “grande êxtase” que sentiu ao respirar o gás do riso. Davy teria observado efeitos anestésicos do gás e teria sugerido seu uso cirúrgico ao Dr. Beddoes. Ocupado com a colaboração com Watt, Beddoes não levou essa proposta a sério e perdeu a oportunidade de descobrir a anestesia moderna com décadas de antecedência.

Outras circunstâncias também atrapalharam a atenção de Beddoes, fazendo-o perder o tão aguardado coche da História (os bondes ainda não existiam). Em 1800 houve um grande surto de tifo em Bristol. Beddoes correu para transformar seu Pneumatic Institute em um hospital (ele sempre quis abrir um). Houve algum êxito nesse plano ambicioso, mas durou pouco. O novo hospital evaporou-se no ano seguinte, quando a epidemia passou e Beddoes não conseguiu manter o apoio público nem o financiamento de que precisava. Pra piorar, o ignorado Humphry Davy demitiu-se em 1801. Desiludido, Beddoes foi forçado a fechar o Pneumatic Institute. Ele, então, tentou se dedicar à medicina preventiva para melhorar as condições dos cortiços de Bristol.

Até nesta área Beddoes acabaria falhando. Ele opôs-se veementemente às alegações de um tal de Edward Jenner (1749-1823), cujas pesquisas com a varíola haviam levado à descoberta da vacina. Após suas próprias experiências com vacas e varíolas e suas observações de que algumas pessoas não desenvolviam determinada doença sob certas condições, Beddoes deve ter se arrependido amargamente de não ter seguido nessa linha de pesquisa. Talvez tenha achado que Jenner também se iludiria. Depois de ignorar a descoberta da anestesia, Beddoes recusou-se a colaborar com o desenvolvimento da medicina preventiva através da vacina. Pela segunda vez, perdeu seu coche da História.

Seu radicalismo político, sua insistência em manter pesquisas com pouca consistência, sua falta de atenção para efeitos colaterais e sua inveja de Jenner acabariam lhe custando caro. Em poucos anos ele caiu no mais completo esquecimento e sua morte passou em branco em 1808. Ele acabaria sendo mais lembrado como pai do poeta Thomas Lovell Beddoes (1803-1849) do que por seus ambiciosos planos de revolucionar a medicina.

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