UM DOIS TRÊS QUATRO, UM DOIS TRÊS QUATRO, UM DOIS TRÊS QUATRO… É mais ou menos assim, numa espécie de compasso quaternário, que giram os quatro grandes planetas gasosos do sistema Kepler-223. Embora seja diferentes de Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, o ritmo desses quatro planetas pode ser bem semelhante às ressonâncias que haviam nos gigantes dos primórdios do nosso sistema solar.
Dos milhares de sistemas solares já observados pelo Kepler, a maioria é bastante diferente do nosso, com mundos estranhos como hot Jupiters e hot Netunos, por exemplo. Isso tem levado os astrônomos a questionar a formação de nossa vizinhança planetária — os gigantes gasosos teriam se formado mais perto do Sol? Como migraram para onde estão hoje? Seria possível ter planetas relativamente grandes em uma configuração orbital estável a longo prazo?
Situado a 4458 anos-luz de distância na direção da constelação do Cisne, o sistema Kepler-223 (também conhecido como KOI-730) parece indicar que sim. Os planetas ao redor daquela estrela são bem maiores que a Terra, sendo provavelmente núcleos sólidos envoltos por um envelope de gás um tanto denso. Essa classe intermediária entre planetas gasosos e terrestres é conhecida como sub-Netunos e eles estão entre os mundos mais comuns da galáxia.
Quando foi descoberto em 2011, pensava-se que dois dos planetas de KOI-730 compartilhavam uma mesma órbita. No entanto, essa configuração co-orbital e lagrangiana não se confirmou. O que torna o sistema Kepler-223 tão notável é a ressonância de seus planetas. Os planetas estão em ressonância quando, por exemplo, a cada volta que um dá ao redor do seu sol, outro orbita duas vezes. Esse fenômeno foi observado pela primeira vez no sistema das luas de Jupiter e se assemelha ao compasso do universo musical.
Quem está chamando a atenção para o sistema KOI-730 é um graduando de astronomia e astrofísica da Universidade de Chicago, Sean Mills. Usando dados do telescópio espacial Kepler e do telescópio havaiano Keck I, Mills e seus colegas inferiram os tamanhos, as massas e as órbitas dos quatro planetas de Kepler-223 (Kepler-223b, Kepler-223c, Kepler-223d e Kepler-223e).
São mundos que têm entre 1,8 e 4 massas terrestres e orbitam seu sol entre 7 e 19 dias. Com esses dados, a equipe de astrônomos fez uma simulação dessa configuração planetária, que poderia ter sido com a dos nossos vizinhos gigantes nos primórdios do nosso sistema. Mills et. al. relatam suas descobertas em artigo pré-publicado on-line em 11/05 pela Nature.
Segundo o artigo, os dois planetas mais internos de Kepler-223 (b e c) estão numa ressonância de 4:3 (i.e., a cada quatro órbitas de b, c completa três voltas). O terceiro e o quarto planetas (d e e) também ressoam em uma escala de 4:3. A única dissonância, por assim dizer, é entre o segundo e o terceiro planetas: a relação entre c e d é da ordem de 3:2.
Ressonâncias já haviam sido detectadas em sistemas com dois ou três planetas, mas essa é a primeira vez que se observa o fenômeno num sistema tetraplanetário. “Este é o exemplo mais extremo desse fenômeno”, disse ao Phys.org o co-autor Daniel Fabrycky, professor-assistente de astronomia e astrofísica da Universidade de Chicago.
Mais surpreendente que a ressonância quádrupla é a aparente estabilidade do sistema Kepler-223, cuja idade foi estimada em 6 bilhões de anos por análise espectrográfica. Em todos esses anos, segundo as simulações planetárias, pouco mudou no ritmo desses planetas. Essa relativa tranquilidade pode ser um indício de que nem todo sistema planetário se forma de modo violento.
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Em torno de Kepler-223, os planetas teriam entrado em sincronia ao se aproximar à medida que se formavam (vide animação acima). “Pensamos que dois planetas migram através desse disco [protoplanetário], se prendem e continuam a migrar juntos; encontram um terceiro planeta e migram juntos; encontram um quarto planeta e migram juntos”, explica Mills. KOI-870 é uma estrela menos metálica que o Sol. Provavelmente, seu sistema não tem um cinturão de asteróides, o que seria outro fator de estabilidade a longo prazo.
Esse processo harmônico de formação planetária difere radicalmente do que teria acontecido com Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Tudo indica que o nosso sistema planetário se formou de maneira mais caótica, com choques de grandes fragmentos rochosos — os planetisimais — entre as diversas órbitas.
Os destroços dessas colisões também poderiam migrar entre os mundos em formação, perturbando ainda mais as configurações orbitais, especialmente as dos gigantes gasosos. Júpiter e Saturno, por exemplo, tinham uma ressonância de 2:1, mas num ambiente assim, a frágil harmonia da ressonância não perdura. Comparada com Kepler-223 e sua longa melodia quaternária, a orquestra do Sol é uma cacofonia descompassada.
Referência
Sean M. Mills et al. A resonant chain of four transiting, sub-Neptune planets [Uma cadeia ressonante de quatro planetas sub-netunianos em trânsito]. Nature (publicado on-line em 11/05/2016). DOI: 10.1038/nature17445