Um jovem ainda inexperiente mas promissor e ambicioso. Um duque numa igreja. Um diretor teatral endividado mas com tino para o gosto do público. Um rei que queria óperas. E quatro óperas perdidas. O começo da carreira de George Frederic Händel é tão rocambolesco quanto as óperas daquela época.
Nascido em 23 de fevereiro de 1685 na cidade de Halle, Händel já era um organista aos 10 anos de idade, para desgosto de seu pai, Georg. Quem descobriu Händel foi o Duque de Saxe-Wassenfels, João Adolfo I [1649-1697], que ouviu o menino tocando numa igreja. E só o duque conseguiu convencer Händel-pai a educar o menino adequadamente. Pouco depois, Händel começava seus estudos musicais sob a orientação de Friedrich Zachow [1663-1712], organista de sua cidade-natal.
No começo de 1702, o jovem Händel matriculou-se na Universidade de Halle — provavelmente para estudar direito para agradar ao pai — e arranjou um emprego como organista na catedral calvinista da cidade. Alguns meses mais tarde, Händel visitaria Berlim, onde seu pai tinha sido médico do então rei da Prússia, Frederico I [1657-1713].
Na capital prussiana, Händel entrou em contato com a ópera italiana, por meio de compositores como Giovanni Bononcini [1670-1747] e Attilio Ariosti [1666-1729]. Frederico I ficou sabendo das habilidades daquele jovem músico e queria treiná-lo para ser o futuro compositor da corte. Händel, porém, rejeitou a oferta real e voltou a Halle.
Depois de um ano cumprindo contrato como organista de igreja, Händel mudou de ideia e de cidade. Agora ele queria estudar na Itália mas já lhe faltavam o dinheiro e os contatos. Por esse motivo, ele mudou-se para Hamburgo.
Mercado de Gansos
Aberta em 1677, a Ópera de Hamburgo (também chamada Gänsemarkt, por situar-se próxima a um mercado de gansos) foi a primeira casa do gênero a ser aberta fora da Itália. Com mais de 2000 lugares, era um dos melhores teatros do mundo na virada do século XVII para o século XVIII. Nesse período, as óperas com temática religiosa começavam a dar lugar a obras mais seculares, inspiradas na mitologia e na história de Roma. É nesse contexto que Händel se estabelece em Hamburgo.
Na Ópera de Hamburgo, o jovem de Halle começou sua carreira como um segundo-violino. É possível que o responsável pela contratação de Händel tenha sido Reinhard Keiser [1674-1739], diretor-musical e mais tarde gerente do Gänsemarkt. Keiser tinha sido muito bem-sucedido na montagem de uma dúzia de óperas entre 1697 e 1703 e mantinha contatos em Halle, por meio dos quais deve ter ouvido falar de Händel. Este por sua vez, logo passou de violinista a harpista-solo, chamando a atenção do compositor e cantor da casa, Johann Mattheson [1681-1764].
Foi o estagiário
Apesar do sucesso artístico, Keiser revelou-se um administrador atrapalhado. Em 1704 teve que ir às pressas para Weissenfels, para despistar seus credores. Foi assim que o gerenciamento do teatro caiu no colo de Händel, então com 19 anos. Com isso, ele acabou encarregado de produzir uma ópera, Almira, com base num libreto de Friedrich Christian Feustking [1678-1739].
Almira — que conta a história do amor secreto entre a recém-coroada rainha espanhola homônima e o secretário Fernando — era ainda uma peça típica do século XVII, cheia de influências venezianas e barrocas. Primeira ópera de Händel, Almira estreou em 8 de janeiro de 1705 e encontrou relativo sucesso, ficando em cartaz por 20 sessões. O libreto de Almira ainda existe, mas parte da música se perdeu.
O sucesso de Almira levou a Ópera de Hamburgo a encomendar outra peça melodramática a Händel. Novamente, Feustking ficou encarregado do libreto e Händel, da parte musical. Sob o título de Nero, a ópera conta a história do imperador romano a partir de fontes como os historiadores Suetônio [69-141] e Tácito [55-120].
No entanto, Feustking errou a mão: o texto foi feito inteiramente em alemão, cheio de personagens secundários e sub-tramas. Nero estreou em 25 de fevereiro de 1705 e teve apenas três apresentações antes do teatro suspender as atividades para a quaresma. Quando uma nova temporada começou, só em agosto, a peça não foi retomada.
Como aconteceu com Almira, o libreto de Nero sobreviveu, mas a música foi inteiramente perdida. Há registros de que uma cópia das partituras de Nero teria sido vendida por um empresário hamburguês em 1830, mas desde então ela está desaparecida — se permaneceu na Alemanha, é possível que tenha sido destruída durante uma das duas guerras mundiais do séc. XX. O texto de Feustking costuma ser responsabilizado pelo fracasso de Nero, mas Händel também pode ter exagerado na complexidade musical da obra. Consta que essa ópera seria formada por 20 ensembles (duetos ou trios) e 57 árias(!).
Ópera-dupla
Quando o Gänsemarkt reabriu em agosto de 1705, Keiser já havia retornado e estava montando sua nova ópera, Octavia. O gerente fujão deve ter retomado os negócios enquanto Händel parece ter sido rebaixado a alguma função na orquestra ou mesmo demitido. Händel ainda ficou em Hamburgo por mais um ano, dando aulas particulares e juntando suas economias para ir à Itália. Quando surgiu uma nova encomenda de larga escala da Ópera de Hamburgo, o jovem músico não guardou ressentimentos. O novo trabalho era baseado no mito de Apolo e Dafne e, com previsão de 100 números musicais, seria imenso.
No entanto, essa ópera monumental acabou sendo desdobrada em duas, Florindo e Dafne. O texto ficou por conta de Heinrich Hinsch, que tomou como base a história de Apolo e Dafne contada por Ovídio nas Metamorfoses. A maior parte do libreto é em alemão, mas há vários trechos em italiano.
Composta por Händel em 1705-06, essa ópera de Händel só foi estrear em 1708, quando o músico já estava na Itália. O atraso de Florindo e Dafne se deve a dois motivos: a complexidade de montar e exibir uma ópera-dupla e a mudança na direção do Gänsemarkt. No começo de 1707, Keiser arrendou a Ópera de Hamburgo a Johann Heinrich Sauerbrey.
Durante esse intervalo, Händel pode ter voltado a Hamburgo por breves períodos, para auxiliar na produção das duas óperas. Elas finalmente estrearam em janeiro de 1708 e foram apresentadas em noites alternadas. No entanto, pouco se sabe além disso. A recepção do público e da crítica, o número de apresentações, a duração dos espetáculos e até as partituras de Florindo e Dafne se perderam quase completamente. Restam apenas o texto e alguns fragmentos do 1º. e do 3º. atos de Dafne e do 1º. de Florindo.
Nada se perde, tudo se transforma
Porém, nem tudo estaria inteiramente perdido. Segundo alguns historiadores e especialistas em Händel, algumas passagens de Nero, Florindo e Dafne teriam sido reutilizadas em obras posteriores do compositor alemão. Para Charles Cudworth [1908-1977], por exemplo, alguns números de dança após a abertura da ópera Rodrigo (1707) teriam sido peças de balé para Nero ou outra das óperas perdidas. John E. Sawyer analisou a ópera Agrippina, que tem muitos personagens em comum com Nero, e concluiu que essa foi a peça que “contém a maior proporção de material emprestado” dentre as obras de Händel. Similarmente, segundo Cudworth, elementos de Florindo e Dafne teriam sido reciclados em Apollo e Dafne, cantata composta em 1709-1710.
Epílogo
Seja como for, a tão esperada viagem de Händel à Itália não durou muito. Ele permaneceu lá por apenas três anos e em 1712 se estabeleceu na Inglaterra, onde foi o principal divulgador do gênero operístico. Na Grã-Bretanha, Händel produziu cerca de 40 óperas, antes de falecer, em 1759, aos 74 anos.
Sem aquela que poderia ter sido sua principal estrela, a Ópera de Hamburgo fechou em 1738 e nos séculos seguintes seu espaço foi ocupado por um teatro (que também não resistiu) e um cinema (que já foi demolido).
Bononcini também se estabeleceria na Inglaterra, sendo um rival de Händel com suas óperas. Depois de Berlim, Ariosti iria para a Áustria e seria um dos grandes sucessos da época, com suas óperas sendo bem-recebidas em Paris e Londres.
Atrapalhado, Keiser teve idas e vindas no gerenciamento do Gänsemarkt. Além de compositor, Mattheson atuou como diplomata e lexicógrafo; boa parte de suas obras também se perderam, mas foram reencontradas na Armênia em 1998. Feustking, que era teólogo formado, abandonou os libretos e mudou-se para a Itália em 1706.
Após a morte de Händel, suas óperas caíram rapidamente no esquecimento, o que explicaria a perda do material dos seus primeiros anos — já em 1760, seu primeiro biógrafo, Mainwaring, lamentava que uma grande quantidade de música produzida entre Hamburgo e a Itália estivesse perdida. Händel só foi redescoberto como compositor de ópera nos anos 1920, quando passou a ser considerado um dos precursores desse gênero de música dramática.