Tempestade em Titã

Alluvial-Fan-Earth
Leque aluvial em Xinjiang, China. Pode haver algo parecido em algumas regiões de Titã. Ou não. [Imagem: NASA]

Depois de muitos anos, nuvens carregadas estão chegando do sul, trazendo riscos de temporais e desmoronamentos. Esta é a previsão do tempo para Titã, a única lua do sistema solar com uma atmosfera.

Maior lua do sistema de Saturno, Titã tem chamado a atenção dos astrônomos desde que descobriram que sua densa atmosfera seria capaz de gerar chuvas — chuvas de hidrocarbonetos, para ser mais preciso. Mas como podemos observar a ocorrência de precipitações num mundinho tão distante e diferente do nosso?

Mesmo na Terra, pancadas leves e isoladas de chuva não deixam rastros por muito tempo: o solo se molha mas logo seca. Aqui ou em Titã, só seriam visíveis do espaço as chuvas diluvianas, capazes de alterar a superfície com inundações ou deslizamentos de terra.

Uma das evidências de chuva no nosso planeta, visível especialmente em áreas desérticas, são os chamados leques aluviais. Esses leques são arcos de detritos erodidos e espalhados pela chuva no sopé de montanhas. Basicamente, são de dois tipos. Um, menor porém mais denso, é formado pela erosão de solo pouco permeável, como argila e pode se espalhar por centenas de metros a poucos quilômetros. Outro, mais leve e formado por solo arenoso, é capaz de cobrir dezenas de quilômetros. Em comum, ambos são formados durante precipitações súbitas e intensas.

Nos primeiros dias do ano, após observações da sonda Cassini, a NASA anunciou o retorno das nuvens de chuva ao hemisfério norte de Titã. Mas a Cassini parece ter visto outro sinal de chuva na lua saturniana: arcos de sedimentos que podem ser leques aluviais.

“Com leques, estamos falando sobre precipitações ocasionais porém catastróficas que levam ao transporte em larga escala de sedimentos”, explica Richard Cartwright, cientista planetário da Universidade de Tennessee (UT) em comunicado do Sci-News. “Isso não é algo formado por uma chuvinha de fim de tarde.”

Os cientistas já suspeitavam que a formação de leques seria possível em Titã. O problema tem sido identificar o fenômeno em meio às imagens de baixa resolução do solo titânico que a Cassini consegue obter. Como Titã não é o único lugar do sistema solar onde leques se formam, podemos aprender como identificá-los em imagens de satélite da Terra.

Essa é a nova abordagem apresentada por Cartwright e seu colega da UT, Devon Burr. Antes de olhar para Titan, eles decidiram ver o que estava acontecendo no Vale da Morte, na Califórnia. Célebre por ser um dos lugares mais quentes do planeta, o Vale da Morte também está sujeito a pancadas súbitas e intensas de chuva, que causam inundações-relâmpago. Essas tempestades no deserto deixam um rastro de destruição na forma de leques aluviais. Em 2004, por exemplo, o leque de Furnace Creek inundou e deslanchou, cobrindo diversos carros com rochas e matando duas pessoas.

Mas o que interessa Cartwright e Burr no Vale da Morte é a área do Monte Panamint, onde há leques dos dois tipos, o mais denso e o mais leve, na mesma vizinhança. Esse seria um excelente laboratório natural para testar a habilidade de identificação por radar desse tipo de formação sedimentar. Outra vantagem, segundo Cartwright, é que o Vale da Morte já foi varrido por imagens de radar em diversas frequências, o que resulta em muito material para comparar com o da Cassini.

Possíveis leques aluviais identificados em Titã por Cartwright e Burr.

Evidentemente, não é fácil comparar imagens de radar de mundos diferentes. Os materiais superficiais e as frequências utilizadas são distintas. Por isso, os dois cientistas buscaram entender como distinguir entre os dois tipos de leques a partir de dados do Vale da Morte e criar um modelo que possa ser aplicado no caso de Titã.

Além disso, Cartwright e Burr queriam testar uma hipótese. Como existem grandes “mares de areia” no equador de Titã, os dois pensaram que ali seriam formados leques aluviais maiores e mais visíveis, enquanto os leques densos e menores ocorreriam em latitudes maiores, onde o terreno é menos arenoso.

No Vale da Morte, perceberam os dois cientistas, o fluxo dos leques arenosos forma superfícies ásperas e claramente visíveis nas varreduras de radar. Era de se esperar o mesmo em Titã, mas os dados revelaram o oposto. Lá eram os leques de alta latitude (e portanto menos arenosos) os mais visíveis.

Publicados na revista Icarus, esses resultados são ambíguos: temos evidência da existência de leques na lua saturniana mas já não há mais tanta certeza de que os leques de Titã sejam, de fato, formados por tempestades intensas. Como na Terra, nem todo leque pode ser aluvial (aqui existem leques fluviais, conhecidos como deltas). Para ter certeza, seria necessário ter amostras do solo das regiões estudadas ou imagens fotográficas ou de radar com uma resolução 10 vezes maior, estimam os cientistas. Infelizmente, uma missão mais próxima de Titã não deve acontecer tão cedo.

Referência

rb2_large_gray25R.J. Cartwright & D.M. Burr. 2017. Using Synthetic Aperture Radar data of terrestrial analogs to test alluvial fan formation mechanisms on Titan [Uso de dados de radar de abertura sintética de análogos terrestres para testar mecanismos de formação de leques aluviais em Titã]. Icarus 284: 183-205; doi: 10.1016/j.icarus.2016.11.013

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