Uma fita magnética bem fina

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Fitas magnéticas podem estar ultrapassadas como mídia, mas um análogo molecular está comprovando uma teoria mais velha que os cassetes

Quem tem menos de 20 anos talvez não saiba do que estamos falado. Pra quem não sabe (ou já não se lembra mais), vamos rebobinar [<<] a memória: uma fita magnética era um estreito filme plástico revestido com um material magnetizável, que ficava enrolada dentro de uma caixa plástica chamada cassete, servia para gravar e reproduzir som e imagem quando não ficava embolada dentro de um gravador ou reprodutor.

Avanço rápido [>>] pra 2017: fitas cassete já estão obsoletas faz tempo, mas novos materiais magnéticos bidimensionais (realmente bidimensionais porque, como o grafeno, têm apenas um átomo de espessura) estão sendo desenvolvidos e estudados em laboratórios. Antes de descobrir para o que eles vão servir, é preciso entender como eles funcionam. Uma das questões que está sendo investigada pelos cientistas é a chamada transição de fase magnética em meios bidimensionais.

Pausa [||]: alguns materiais são magnéticos por causa do spin de seus elétrons. Os spins são como pequenos ímãs em miniatura, normalmente representados na forma de flechas (e bem que a gente podia chamá-los de espinhos). Em temperaturas muito baixas, os espinhos tendem a se alinhar, formando filas que diminuem a energia dos elétrons do material.

Esse é um estado análogo ao gelo, por exemplo. E como acontece com o gelo, acima de certa temperatura (que varia de material para material), esse estado fica mais fluido e mais desorganizado, com os espinhos virados de qualquer jeito pra todo lado. Tipo uma fita emaranhada:

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Isso aqui, crianças, era o inferno de qualquer um que tentava ouvir música.

Essa transição de fase magnética já foi observada e bem documentada em estruturas tridimensionais — como uma fita cassete que, apesar de fina, tem uma espessura maior que zero. Mas e quanto a objetos mono- ou bidimensionais? Veríamos uma transição de fase numa cadeia ou num plano de átomos magnetizados? Essas perguntas já estavam sendo feitas bem antes do surgimento da primeira fita cassete, lançada em 1963.

Em 1925, físico Wilhelm Lenz pediu que seu aluno Ernst Ising resolvesse esse problema para sistemas 1D. Os cálculos de Ising mostraram que materiais monodimensionais não passariam por uma transição de fase. Ising tentou aplicar a solução para materiais bidimensionais, mas descobriu um problema maior ainda, que passou anos sem solução.

Corta pra 1943, quando a solução foi encontrada por Lars Onsager, que descobriu que os materiais que seguem o modelo de spin de Ising têm uma transição de fase. Mesmo sem comprovar sua teoria experimentalmente, Onsager ganhou o Nobel de Química de 1968 (não exatamente por isso) e sua solução para os sistemas bidimensionais passou a fazer parte dos cursos básicos de mecânica estatística.

Corta de novo e emenda para o século XXI, num laboratório sul-coreano. Depois de estudar a solução de Onsager, o físico Park Je-Geun, do Instituto de Ciência Básica da Coreia do Sul e seus colegas da Universidade Nacional de Seul perceberam que a solução não tinha comprovação experimental. Será que Onsager realmente estava certo? Para descobrir, Park et. al. precisaram apenas de um espectroscópio, dois tipos de fita e uma tesoura sem ponta.

Nunca, jamais subestime a importância de uma tesoura sem ponta.

O material magnético que Park escolheu para estudar foi o tritiohipofosfato de ferro (FePS3). Fazer cristais tridimensionais do FePS3 é algo simples em um laboratório moderno com uma técnica chamada transporte químico por vapor. Como a estrutura cristalina desse material é formada por camadas ligadas por forças de Van der Waals, formar fitas a partir desses cristais é bem fácil.

Basta ter outra fita, capaz de vencer as forças de Van der Waals. Um pedaço de fita crepe serve. Da mesma maneira que a fita crepe pode tirar lascas de tinta da parede, ela extrai camadas superficiais do cristal de tritiohipofosfato de ferro. Para conseguir uma fita de FePS3 monodimensional, basta ir tirando lascas do cristal até ele ficar com um átomo de espessura. Se você está se perguntando onde entra a tesoura sem ponta, é pra cortar os pedaços de fita crepe.

Modelo planar de FePS3

Depois desse trabalho tão simples quanto delicado, é hora do espectroscópio. Mais especificamente, do espectroscópio de Raman. Embora haja diversas formas de medir propriedades magnéticas de estruturas volumosas, essas técnicas são inúteis para medir o magnetismo de uma folha de um átomo de espessura.

A espectroscopia de Raman normalmente mede as vibrações no interior de um material. Como essas vibrações podem ser causadas por aumento de temperatura, Park e sua equipe usaram essa grandeza como medição indireta do magnetismo do FePS3 2D: quanto mais vibração, menor o magnetismo.“O teste com a amostra volumosa mostrou que os sinais Raman podiam ser usados como um tipo de impressão digital pata a transição de fase em temperaturas ao redor de 118 Kelvin, ou -155º.C.”, explica Park em comunicado divulgado pelo Phys.org.

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Resultados da espectroscopia de amostra tridimensional (esq.) e bidimensional (dir.) de FePS3. Apesar de menos nítidos, os sinais da estrutura 2D se mostraram semelhantes aos de 3D. [gráfico de Park et. al. (2016)]

Quando o mesmo teste foi feito com a versão 2D do FePS3, foi encontrada a mesma assinatura da transição de fase vista na estrutura tridimensional. Os resultados, publicados em 8 de novembro passado no periódico Nano Letters, são a primeira comprovação experimental da solução de Onsager. Park e sua equipe, no entanto, ainda não estão satisfeitos: agora eles querem estudar a transição de fase magnética em estruturas bidimensionais formadas por outros metais.

Referência

rb2_large_gray25Jae-Ung Lee et al. Ising-Type Magnetic Ordering in Atomically Thin FePS [Ordenamento magnético de tipo Ising em FePS atomicamente fino], Nano Letters 2016, 16 (12), pp 7433–7438. DOI: 10.1021/acs.nanolett.6b03052

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