Você não, coração

você não, coração

Ser rejeitado dói, parece o fim da vida e nos faz procurar o motivo. A rejeição de um órgão transplantado é algo parecido e os motivos para isso estão ficando mais claros.

Você dá o coração pra pessoa — ou os pulmões, ou os rins, ou o fígado ou as córneas — e a pessoa não quer mais. Ou melhor, o sistema imunológico da pessoa é que rejeita o órgão doado, por mais necessário que ele seja. Do tipo sanguíneo a fatores genéticos sutis, existem muitas variáveis para a (in)compatibilidade entre o doador e o receptor da doação. Após meio século de transplantes, o mecanismo da rejeição é apenas parcialmente conhecido: sabemos muito bem como ele funciona em seus estágios mais avançados, mas suas etapas iniciais permanecem obscuras.

Parte do problema é que o sistema imunológico não é tão simples quanto parece. Da mesma forma como existem diferentes forças dentro de um exército (a infantaria é diferente da cavalaria e ambas distinguem-se de suas versões motorizadas, por exemplo), nossas linhas de defesa contam com batalhões mais ou menos especializados, que podem ser divididos em sistema imune inato e sistema imune adaptativo ou adquirido.

Os batedores que detectam células (ou órgãos) estranhos são do pelotão inato. Confirmada a existência do corpo estranho, os inatos chamam o pessoal especializado do batalhão adaptativo. O que os cientistas conhecem bem é a segunda fase dessa operação de defesa, o papel do sistema adaptativo na rejeição de órgãos. Mas o que leva as células inatas a dar o alarme e lançar o processo de rejeição?

Essa é a pergunta que os pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh (EUA) e da Universidade de Toronto (Canadá) buscaram responder. De acordo com o Dr. Fadi Lakkis, diretor do centro de transplantes da universidade americana, cerca de 50% de todos os órgãos transplantados acabam rejeitados dentro de 10 a 12 anos. “Interromper esse primeiro reconhecimento de tecidos alheios pelo sistema imune inato iria travar o processo de rejeição em suas etapas mais iniciais e poderia impedir a falha do transplante”, explicou Lakkis num comunicado ao MedicalXpress.

Para alcançar esse objetivo, os pesquisadores usaram uma abordagem genética em ratos. Nos roedores, eles demonstraram que uma molécula chamada SIRP-α é que dá o pontapé inicial na ativação do sistema imune. Essa molécula, que tem pequenas diferenças entre indivíduos sem parentesco, funciona como uma espécie de chave de alarme. Quando o tecido transplantado tem uma SIRP-α diferente da versão encontrada no organismo receptor, a molécula transplantada liga-se a uma fechadura chamada CD47, que fica nos monócitos, uma classe de células imunes inatas. Essa ligação dá início a uma série de reações bioquímicas que culminam na ativação completa do sistema inato e, mais tarde, do sistema adaptativo.

Nos roedores, foi possível bloquear a interação entre a SIRP-α e CD47, o que impediu a ativação dos monócitos. Em tese, isso poderia impedir toda a ativação do sistema imune contra o órgão transplantado. Embora a pesquisa — publicada na Science Immunology — tenha sido feita com ratos de laboratório, seus resultados podem ser facilmente adaptados à imunologia humana.

Como as cobaias, nós também produzimos SIRP-α, então uma maneira mais precisa e segura de garantir a compatibilidade entre o doador e o recebedor do transplante seria sequenciar o(s) gene(s) por trás dessa substância. O Dr. Lakkis acredita que esse procedimento poderia reduzir as taxas de rejeição no futuro. Antes disso, porém, novos experimentos serão necessários para determinar como a interação entre SIRP-α e CD47 ativa os monócitos.

Ainda não é a cura para um coração partido, mas pode ser a cura para um coração literalmente rejeitado.

Referência

rb2_large_gray25H. Dai el al. Donor SIRP-α polymorphism modulates the innate immune response to allogeneic grafts [Polimorfismo SIRP-α do doador modula resposta imune inata a transplantes alogênicos]. Science Immunology. 23 Jun 2017: Vol. 2, Issue 12, DOI: 10.1126/sciimmunol.aam6202

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