A saideira da salamandra

Modelo tridimensional do espécime MNHN.F.QU17755, que passou mais de um século engavetado antes de revelar uma surpresa no estômago.

Descobrir a última refeição de um animal morto parece algo simples, mas não quando o cadáver tem uns 35 milhões de anos

Antes do eterno descanso final, alguns mortos são examinados por anatomistas e médico-legistas para que se possa determinar a causa mortis. Às vezes, há quem morra pelo estômago — e, nesse caso, basta abrir o bucho pra saber do que morreu o falecido em questão. Autópsias desse tipo não são exclusividade dos seres humanos: médicos veterinários fazem algo parecido caso algum animal apresente sinais de morte por envenenamento.

Quando Jérémy Tissier, Jean-Claude Rage e Michel Laurin encontraram uma salamandra morta, era natural que fizesse o mesmo procedimento. Só que aquele cadáver salamândrico não era um presunto fresco; era um fóssil bem preservado. Extraordinariamente bem preservado para um animal que viveu há uns 35 milhões de anos.

Fósseis costumam ser definidos genericamente como o conjunto de estruturas ósseas de um animal submetido a um processo de petrificação. Só muito raramente aparecem fósseis com sinais de tecidos moles, como a pele. Era de se esperar que um fóssil de salamandra com metade do corpo quase inteiro chamasse a atenção de pesquisadores do mundo todo. Em vez disso, esse fóssil quase perfeito passou quase um século e meio engavetado sob o número MNHN.F.QU17755 em arquivos da França depois de ser identificado como um exemplar de Phosphotriton sigei ainda nos anos 1870.

Acima, à esq., o fóssil conhecido como MNHN.F.QU17755; em C e D, restos de algumas fibras musculares revelados pela tomografia
Acima, à esq., o fóssil conhecido como MNHN.F.QU17755; em C e D, restos de algumas fibras musculares revelados pela tomografia

Naquela época, como durante boa parte do século seguinte, os paleontólogos não acreditavam que órgãos e tecidos eram passíveis de fossilização. Por isso, o estado extraordinário daquela metade posterior de Phosphotriton jamais foi reconhecido como tal. Hoje sabemos que, sob condições muito especiais, pedaços de pele e até órgãos podem ser mineralizados. Nesses casos raros, é como se os fósseis fossem uma múmia petrificada.

Tomograma do tronco de MNHN.F.QU17755: a medula espinhal (azul) continua preservada no interior de uma vértebra (amarela).
Tomograma do tronco de MNHN.F.QU17755: a medula espinhal (azul) continua preservada no interior de uma vértebra (amarela).

É justamente esse o caso do Phosphotriton francês, que teve preservados a cauda, partes das patas traseiras, o quadril e o tronco. E foi só nos últimos anos que essa peça foi redescoberta e passou a ser estudada, revelando detalhes como a cloaca. Mas como diabos esse bichinho morreu há 35 milhões de anos? Será que seus órgãos internos estariam tão bem preservados quanto os externos? Para descobrir isso, seria necessário fazer uma autópsia. Infelizmente, esse procedimento acabaria por destruir o fossilzinho.

Para contornar essa limitação, Tissier e seus colegas realizaram uma autópsia virtual, escaneando o MNHN.F.QU17755 numa das linhas da European Synchrotron Radiation Facility (ESRF), em Grenoble, França. Ali, a luz síncrotron — uma espécie de raio-X superpotente — foi usada para fazer uma série cortes milimétricos sem destruir o corpo do animal. Na prática, foi como uma tomografia qualquer, só que com tecnologia de ponta (e um paciente velhíssimo).

Além da pele e do esqueleto, essa tomografia especial revelou a existência de pelo menos seis tipos de órgãos no interior do Phosphotriton: pulmões, nervos, medula espinhal, músculos, algumas glândulas e o trato digestivo. A maior surpresa estava escondida no estômago do fóssil: restos de ossos de sapo. Tudo indica, portanto, que o último repasto dessa salamandra foi outro anfíbio. Esses resultados surpreendentes foram publicados por Tissier, Rage e Laurin em outubro passado na revista PeerJ.

Em A e B temos os indícios dos nervos bem-preservados; em C-E, ossinhos de anuro localizados no interior do tubo digestivo (F e G).
Em A e B temos os indícios dos nervos bem-preservados; em C-E, ossinhos de anuro localizados no interior do tubo digestivo (F e G).

Pelo conjunto da obra, esse animal é ainda mais incomum: além de perfeitamente preservado, o fóssil do Phosphotriton parece ter tido um cardápio fora do normal. O consumo de carne de anfíbios é raro entre as salamandras — mesmo entre seus parentes mais modernos, conhecidos pelo redundante nome científico de Salamandra salamandra. Embora sejam animais oportunistas, elas só comem outras salamandras ou sapos em situações de extrema penúria, por pura falta de opção. Seria esse o caso do nosso amiguinho Phosphotriton ou essa espécie tinha mesmo um hábito alimentar quase canibal? Nunca saberemos — a não ser que apareça outro espécime extraordinariamente bem-preservado com uma surpresa no estômago.

Referência

Jérémy Tissier , Jean-Claude Rage, Michel Laurin. Exceptional soft tissues preservation in a mummified frog-eating Eocene salamander [Excepcional preservação de tecidos moles em uma salamandra consumidora de sapo mumificada no Eoceno]. PeerJ, 2017; 5: e3861 DOI:10.7717/peerj.3861

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